A leitura é uma das práticas culturais mais fascinantes sob qualquer ângulo que se olhe. Impregnado de sutilezas incontáveis, o ato de ler suscita até mesmo estranhas e profundas reflexões, como a que consta em composição do roqueiro Raul Seixas, que em sua música “Eu Também Vou Reclamar”, lançada no ano de 1976 a partir de uma parceira com Paulo Coelho, cantava por entre acordes de guitarra: “Olho os livros na minha estante/Que nada dizem de importante/Servem só pra quem não sabe ler”.
?Nesse contexto, a figura contemporânea do leitor tem merecido o olhar atento de importantes estudiosos. É o caso do artigo intitulado “Morte ou transfiguração do leitor?”, da obra “Os desafios da escrita”, de autoria de Roger Chartier, numa publicação da editora da Unesp de São Paulo. Nesse estudo, o autor discorre acerca da concepção do leitor e põe em evidência seu nascimento em contraposição à morte do autor, do postulado de Roland Barthes.
Ao ampliar o seu olhar sobre a complexa figura do leitor e sua práxis, Roger Chartier torna evidente que há formas principais que atestam, após seu nascimento e longo percurso, o óbito do leitor, ao menos em sua formatação tradicional. A primeira forma que Chartier apresenta como evidência disso são as diversas transformações ocorridas nas práticas de leitura.
Há a comprovação, por meio de dados estatísticos, da diminuição da quantidade de grandes leitores em pesquisas que foram realizadas por editoras, que viam o número de consumidores cair drasticamente, constatando a “crise” na leitura. Há uma mobilização por parte delas, então, para tentar conscientizar acerca da importância do reconhecimento dos direitos dos autores e dos editores.
Chartier demonstra que há uma outra questão relacionada à “morte do leitor” e ao “desaparecimento da leitura” motivada pela popularização e pelas novas atribuições das telas relacionadas à comunicação eletrônica. As telas contêm não somente imagens, mas também textos, o que reflete em uma nova forma para os livros. Esta nova atribuição das telas demarca uma nova revolução do livro, tal qual a revolução realizada pelo códex, que mudou drasticamente a relação do leitor com o livro, trazendo possibilidades até então inexistentes em relação ao rolo.
Os livros eletrônicos, segundo o autor, encaminham um movimento revolucionário em relação às práticas de leitura, sendo questionado até mesmo se ocorrerá uma substituição ou o convívio entre o digital e o físico. Chartier infere que haverá a coexistência de ambos por um bom tempo, mas evidencia que alguns pontos irão mudar visto que há uma mudança epistemológica fundamental na produção e transmissão de textos.
Roger Chartier ressalta algumas mudanças estruturais encontradas no livro digital no que diz respeito à linearidade com que o texto se apresenta, o que difere do códex. O autor chama a atenção para os hipertextos e a hiperleitura que permitem a relação entre textos, imagens e sons. Chartier explicita que devido à falta de continuidade existente no livro digital, há uma preocupação em relação aos critérios aplicados ao livro físico que permitem distinguir, classificar e hierarquizar os discursos empregados.
São apontados diversos pontos de reflexão acerca das possibilidades do livro digital. O autor questiona a aceitação desse tipo de livro por parte dos leitores. Além disso, frisa acerca da interação possível entre autor e leitor, tornando o leitor uma espécie de coautor, uma vez que discussões acerca daquele texto sempre são possíveis.
São ressaltadas as principais características modificadas com o advento dos textos digitais, sendo elas de caráter técnico, em relação ao suporte do escrito e em relação às práticas de leitura. O autor afirma que o texto em formato eletrônico modifica substancialmente o contexto e o processo de construção de sentido, substitui a aproximação física do leitor com o texto impresso e, consequentemente, modifica todo o sistema de percepção e manejo nas práticas de leitura.
Chartier demonstra a possibilidade de que o texto em âmbito digital proporcione uma relação cumulativa e de continuidade do conhecimento. Ele aponta as possibilidades inerentes a este contexto, comparando-o a bibliotecas sem muros. Ainda neste contexto, o autor evidencia as possibilidades de comunicação existentes, sendo elas passíveis de agregarem ou destruir o processo comunicador. É evidenciada a importância de repensar algumas categorias, voltando-as ao novo contexto que envolve o texto digital, sendo elas: jurídicas, estéticas, administrativas ou biblioteconômicas.
Nota-se que a grande quantidade de textos disponibilizados possui a vantagem de uma “universalização” do conhecimento; no entanto, suscita a problemática relacionada à grande quantidade de informações que, por sua vez, precisam ser organizadas. Há, ainda, a tarefa inerente às bibliotecas, que devem coletar, proteger, recensear e tornar acessíveis os objetos informacionais que não “nasceram” em âmbito digital.
As bibliotecas, segundo Chartier, devem atuar de maneira que não se deixe de lado os conhecimentos passados, inclusive no que tange aos formatos não digitais. Além disso, devem atuar na aprendizagem dos instrumentos e técnicas que permitam a preparação dos leitores para as novas formas escritas.
Dentre as possibilidades descortinadas pelos textos digitais, o autor evidencia a possibilidade preocupante de consequências negativas relacionadas à falta de critérios daquilo que é publicado e apreendido pelos leitores. Constata-se que há uma pluralidade de usos possíveis dos textos digitais, podendo eles contribuir positiva ou negativamente para a sociedade.
Ressalta de toda essa gama de informações discutidas por Roger Chartier, que o indivíduo leitor passa nos últimos tempos por transformações viscerais em suas características. Com a revolução das Inteligências Artificiais, que começam a expandir ainda mais o acesso à informação, vislumbra-se que toda a problemática apresentada por Chartier em torno da constituição do indivíduo leitor ganhará novos e instigantes contornos.
Ler o cenário que se desenha nessa nova conjuntura é o desafio que se apresenta aos pesquisadores do letramento informacional em suas diversas especialidades, já que os conteúdos cada vez mais escapam das estantes para o mundo virtual dos dias presentes.
*Myriam Martins Lima é bacharel em Biblioteconomia pela UFG e mestranda em Comunicação pela Faculdade de Informação e Comunicação da UFG.
*Gismair Martins Teixeira é Doutor em Letras e Linguística pela UFG-GO; com Pós-Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO; professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduc-GO.