Entre os mais influentes da web em Goiás pelo 14º ano seguido. Confira nossos prêmios.

Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351

Luciano Alberto de Castro

Goiânia 90 anos: A cidade na contraluz

| 17.10.23 - 08:20
Andei pensando sobre a cidade onde envelheço. Fi-lo não porque qui-lo como um propósito estabelecido, mas como uma consequência natural do ato de andar. É que há algumas semanas, retomei (pela centésima vez) a rotina de caminhadas diárias no Parque Vaca Brava. Gosto de caminhar só, sem relógio, sem celular, levando apenas um documento e um cartão pra comprar água de coco. Essas peregrinações despojadas têm me induzido a pensar sobre a cidade que ora também envelhece. 
 
Digo isso porque estamos em outubro, mês em que Goiânia completará 90 anos. Outro dia, estava me lembrando de quando nos conhecemos. Isso foi em 1983, eu tinha 17 e ela, 50. Na época, tive o desafio de fazer uma redação sobre o cinquentenário da cidade aonde acabara de chegar. Hoje, após 40 anos de convivência, escrever sobre a aniversariante continua difícil, mas pelo menos assuntos não faltam. Vamos ver o que sai dessas matutações. 
 
Iniciemos pela de ontem, no meu novo way of life. Mal comecei a deambulação, o aeróbico teve que ceder ao poético: é que um sabiá-barranco se apresentava na palmeira jerivá e fui obrigado a parar pra ouvir o concerto. Reiniciando a marcha, reparei que estava dentro de um mosaico. À direita, os automóveis, a urbe nervosa; à esquerda, o lago, o verde e os edifícios do entorno, ao fundo o outdoor com a Hariany de biquíni. Uma sinfonia de cigarras, sabiás e curicacas se somava a frases voantes, de erres retroflexos. Os transeuntes, os mais variados: alguns velhinhos lentos, outros lépidos, rapazes espadaúdos, beldades de top, balzaquianas charmosas arrastando cachorrinhos. Era um dia normal em Goiânia. 
 
Depois de me esfalfar em seis movimentos circulares e desuniformes, veio a recompensa, a bolacha pro cachorro de circo: sentar-me numa cadeira de macarrão, resfolegar e embriagar-me com água de coco. A cidade se mostrava acolhedora. Assumi que gostava de viver aqui. Sentia-me seguro e à vontade, como se estivesse no meu quintal, debaixo de um pé de manga, ouvindo conversas amigáveis. A metrópole ainda não perdera sua essência roceira, interiorana, o que me acalentava e me dava uma sensação de pertencimento. 
 
Hidratado e refeito, tomei o rumo de casa, ainda envolto em lucubrações: quantas cidades coexistiam nessa Goiânia nonagenária? Muitas. A minha era a dos burgueses bem-alimentados que se dão ao luxo de fazer caminhada às 5 da tarde num parque de área nobre. Há patamares mais altos e mais baixos. Existe a Goiânia rainha rica, a meca agro-pop-sertaneja, a campeã de vendas da Louis Vuitton e onde existe fila pra se comprar um Porsche. A cidade dos condomínios de luxo e dos rooftops. E existe a Goiânia súdita pobre, feia, maltrapilha, faminta, viciada em crack, violenta, proletária, onde existe fila pra se subir em ônibus lotados. A cidade dos barracos e do feijão-com-arroz requentado.
 
Não precisei ir longe pra me encontrar com a última. Na calçada da farmácia, uma mulher de não mais que 30 anos amamentava um bebê enquanto vigiava outros dois menininhos enfarruscados que brincavam, em volta dela, com pedaços de lixo. “Compra um leite em pó pro meu filho, moço. Meu leite tá secando”. Entreguei-lhe o alimento — oferta infinitamente pequena — e pensei nas outras tantas vidas secas que sobrevivem nessa pólis plural, vidas invisíveis das ruas, dos becos, dos casebres à beira dos córregos. Pra essas é mais difícil sentir a segurança e o acalento a que me referi há pouco.  
 
Finalizo o papo com a matutação estática. Faço-a da minha sacada, mirante donde vejo a cidade em contraluz, seus esboços, seus tons claros e escuros. Vasta, profunda, desigual. Daqui a alguns dias teremos uma comemoração de aniversário e um bolo com 90 velinhas. Seria maravilhoso se aquela família que vi sob a marquise participasse da festa e os meninos recebessem uma generosa fatia do bolo, mas eles não serão convidados. Eles nunca são.    
 
*Luciano Alberto de Castro é escritor e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).
 

Comentários

Clique aqui para comentar
Nome: E-mail: Mensagem:
  • 26.10.2023 11:30 Robson Divino

    Obrigado Luciano, por me recordar da minha goianidade, nascida e criada neste chão. Vivi tudo isso que você escreveu mas, não tinha percebido. Aí, vem você e retrata fiel e sensivelmente esse sentimento de nostalgia. Te agradeço em nome de todos os goianos. Parabéns.

  • 25.10.2023 07:16 Anna Duarte

    Eu, natural de Goiânia e amante da minha terra, me vejo perdida em São Paulo e com saudade imensa. Obrigada Prof. Luciano por me fazer sentir estar de volta em casa. Texto maravilhoso.

  • 25.10.2023 00:17 Talitha Botelho

    Um texto para sentir! Sentir a realidade! Um texto para aprender! Um vernáculo sem comentários! Uma história de vida parecida com poucas outras que tem essa oportunidade mas que como poucos consegue ver o outro lado de Goiânia! Lindo texto! Sou suspeita em elogiar mais, pois como ex aluna e fã do melhor prof que tive na faculdade de odontologia, agora que fui conhecer o seu lado escritor espetacular! Parabenss

  • 20.10.2023 19:56 Marielsa Baptista

    Excelente! As crônicas do professor Luciano nos dão vontade de ler mais e mais. Escrita leve e que retrata com esmero tudo que se propõe a nos contar. Viva Goiânia e todas as suas idiossincrasias!

  • 19.10.2023 13:26 Alessandro A. de Castro

    Ótimo texto. Mostra as facetas das cidades ditas “grandes” (populosas). “Oh mundo tão desigual, tudo é tão desigual” (Paralamas/Gil), como já dizia o poeta. O texto escancara, de forma suave, os dois lados da moeda: A beleza da cidade e, por outro lado, os muitos moradores invisíveis, que sequer percebem a beleza da cidade, pois precisam simplesmente sobreviver e, consequentemente existir. O texto nos chama à reflexão de como podemos (devemos) contribuir com os nossos irmãos mais necessitados, para que esses possam, também, usufruir do belo que Goiânia proporciona. Parabéns Luciano.

  • 19.10.2023 12:29 Adriana Cristina Santiago Neves

    Prof Luciana, parabéns! Que inspiração para quem nos inspira diariamente. Ao ler seu artigo, me senti muito inspirada em olhar para minha cidade e contemplas as mudanças e movimentos. Ainda não tinha feito isso nessa consciência. Já serão 90 anos. E estou nela há algumas décadas. Quantas ideias vão surgindo a partir de uma reflexão " Goiânia 90 anos: A cidade na contraluz" . Parabéns pelas várias reflexões que estou fazendo. Abs. Adriana Neves

  • 19.10.2023 10:39 Jaime David Pinilla

    Li este artigo e escrevo este comentário de Santa Marta, Colômbia, a muitos quilômetros de Goiânia. As palavras de Luciano Alberto de Castro refletem, por um lado, a desigualdade, comum talvez a quase todas as cidades latino-americanas, mas, por outro lado, também a melhor forma de se relacionar com a cidade onde se vive: caminhando por ela, não apenas vendo suas paisagens, mas também ouvindo como soa, como cheira. Bom texto, obrigado.

  • 19.10.2023 10:11 Joao Gabriel

    Lindo texto. Consegue retratar a paisagem como se o leitor estivesse vivendo a situação. Muito bom!

  • 19.10.2023 00:27 Renato Alves Teixeira

    Parabéns, Luciano. Um retrato da Goiânia de 90 anos que mostra as várias facetas da bela e promissora cidade do Planalto. Ao mesmo tempo que expõe as feridas, mostra as rugas e delineia as belas curvas, nosso cronista pede reflexão sobre uma realidade que não é só de Goiânia, mas de quase todas as cidades. O contraste e a insensibilidade social, o desamparo e a luta pela sobrevivência no dia-a-dia. Que Goiânia continue viva e bela, mas que procure acolher todos seus filhos por igual. Parabéns!!!

  • 18.10.2023 17:08 Miguel Sebastiao de Deus Junior

    Parabéns Luciano pela bela crônica, faz nos pensar sobre as contradições das metrópoles Brasileiras a qual Goiânia faz parte.

  • 18.10.2023 12:15 WAGNER PINTO DAS CHAGAS

    Até aumentou a minha vontade de conhecer Goiânia. Primoroso texto.

  • 18.10.2023 11:24 Wender

    Texto sensacional, que nos transporta por esse trajeto da caminhada e repleto de sensibilidade e empatia. Muito bom. Parabéns.

  • 18.10.2023 10:53 Cida Moreira

    Parabéns meu querido amigo. Seu texto transborda autenticidade. Viajei na sua caminhada, só faltou sentir o sabor da água de coco ????

  • 18.10.2023 08:41 Pablo Kossa

    Texto sensível e que nos faz refletir. Parabéns.

  • 18.10.2023 07:29 Gustavo Mota

    Belo texto. Ainda não tive a oportunidade de conhecer Goiânia. A partir desta crônica, nossa distância diminui...

« Anterior 1 2 3 Próxima »
Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351