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Letícia Martins e Gismair Teixeira

A geopolítica e a guerra russo-ucraniana

| 21.10.24 - 15:36
O cenário geopolítico global no decorrer das décadas de 1940 a 1980 era o da Guerra Fria. Na contenda total entre Estados Unidos (EUA) e União Soviética (URSS) pela hegemonia global tudo era objeto de competição - propaganda, a produção de armamentos, a exploração espacial -, apenas um confronto militar direto não estava em jogo aos olhos das lideranças das duas superpotências; afinal, ninguém queria causar uma hecatombe nuclear irreversível no planeta. 
 
Neste caso, ambos os gigantes geopolíticos buscavam assegurar seus interesses territoriais no fronte militar por meio de proxy wars, em tradução livre, guerras por procuração, que nada mais seriam do que conflitos armados fomentados por dois países - que não queriam enfrentar-se diretamente - por intermédio de países terceiros. O século 20 viu proxy wars como nunca antes. A Guerra Fria, em particular, foi um período histórico que serviu de palco cronológico para inúmeros conflitos por procuração, dentre os quais a Guerra da Coreia (1950-1953), a Guerra do Vietnã (1954-1975), a quase guerra total na contenda da Crise dos Mísseis de Cuba (1962), a Guerra do Afeganistão (1979-1989) etc. 
 
A América Latina não escapou do jogo de xadrez ideológico entre os dois gigantes nucleares. Entre 1970 e 1980, a inteligência estadunidense lançou um empreendimento contra governos, entidades, partidos, jornalistas, indivíduos e instituições em geral latino-americanas que fossem simpáticas à esquerda política, em uma ofensiva batizada de Operação Condor. Da operação se sucederam o financiamento e endosso militar estadunidense ao estabelecimento de ditaduras sanguinárias de cunho ideológico direitista e anticomunista em Brasil, Argentina, Equador, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile. O saldo de dissidentes ideológicos mortos, torturados e em geral perseguidos ultrapassa a casa dos 50.000 em quaisquer contagens oficiais, sem mencionar os mais de 400.000 presos políticos. 
 
Em justificativa à existência da Operação Condor, a Central de Inteligência Americana (CIA) alegava que a investida anti-soberana, brutal, repressiva e imbuída de ingerência externa contra os países do Cone Sul se fazia necessária para fortalecer os laços de cooperação com as agências de inteligência desses Estados em nome da extirpação do marxismo subversivo. Ou seja, a justificativa americana, se colocada em termos práticos resumidos, era a de resguardar suas zonas geográficas imediatas contra qualquer tipo de influência da superpotência hostil de além-mar, graças a temores em relação ao surgimento de novos governos ideologicamente alinhados aos soviéticos na região, como era o caso de Cuba. Explica, mas não justifica, o saldo humanitário desastroso dessa e de outras proxy wars iniciadas no período em questão.
 
Em 1991, a Guerra Fria teria seu fim com a dissolução da União Soviética. Os quinze diferentes países que formavam a superpotência socialista, além da Rússia, tornaram-se legalmente independentes da administração central de Moscou. Apesar disso, o ethos nacionalista das lideranças russas nunca perdeu a característica da ânsia por assegurar sua esfera de influência regional. Alegadamente, o último secretário-geral do Partido Comunista Soviético, Mikhail Gorbachev, teria conseguido, em reunião de tratativas sobre a iminente dissolução da URSS com lideranças ocidentais em 1990, uma garantia de que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o pacto de cooperação militar firmado entre os EUA e seus aliados durante a Guerra Fria, não se expandiria para o leste nos próximos anos. 
 
Contudo, por ocasião da ascensão do governo nacionalista de Vladmir Putin à presidência da Rússia no ano 2000 - cargo que ocupa até os dias atuais, 24 anos depois - Letônia, Lituânia e Estônia, três ex-repúblicas soviéticas, entraram com pedidos de adesão à OTAN, pedidos que acabaram sendo aceitos em 2004. Os governos dos três países alegavam temores quanto a um possível expansionismo russo na região. Tais adesões, paradoxalmente, alimentaram o medo russo da crescente perda de influência regional, levando o governo comandado por Putin a incursões territoriais em vizinhos ainda não aderentes à OTAN, a exemplo da ocupação russa do território georgiano da Ossétia do Sul em 2008 e da anexação da província ucraniana da Crimeia em 2014. 
 
 O temor russo da perda de influência regional para a potência hegemônica de além-mar, líder da OTAN, é ainda maior em relação à Ucrânia, já que o país é a maior ex-república soviética em extensão territorial depois da própria Rússia. Tanto o é que a anexação da Crimeia pela Rússia ocorreu em razão da derrubada do governo de viés pró-Rússia do presidente ucraniano à época, Viktor Yanukovich. A derrocada de Yanukovich, que se passou em razão de uma onda de protestos de ucranianos pró-Ocidente no fenômeno que ficou conhecido como Euromaidan, acendeu o alerta vermelho no Kremlin. De 2014 até 2021, as tensões entre os exércitos russo e ucraniano se intensificaram na fronteira entre a então recém-anexada Crimeia e as regiões ucranianas fronteiriças de Donbass e Lugansk. 
 
Em 24 fevereiro de 2022, as tensões explodiram em um conflito generalizado entre os dois países quando Vladmir Putin anunciou em discurso geral à nação russa a realização de uma incursão militar por parte do seu exército Ucrânia adentro, com os proclamados objetivos de “proteger os russos étnicos da região” e de “desnazificar a Ucrânia”. A guerra resultante, que já se arrasta a este ponto por dois anos e meio, já conta com mais de 60.000 mortos e centenas de milhares de feridos dentre soldados e civis de ambos os países, segundo estimativas de fontes jornalísticas como “Al-Jazeera”, “The Wall Street Journal’’ e “Reuters”. O atual presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, pretende declaradamente continuar os esforços militares de resistência até a retirada das forças militares russas do país. Putin, por sua vez, só aceita iniciar conversas por um cessar-fogo permanente após a capitulação total da Ucrânia.
 
Analistas internacionais ao redor do globo identificam, de forma correta e precisa, que a causa principal da atual Guerra Russo-Ucraniana é o ímpeto russo de proteger suas zonas geográficas imediatas contra qualquer tipo de influência da superpotência hostil de além-mar. Caso a OTAN houvesse escolhido rejeitar veementemente qualquer potencial candidatura ucraniana ao tratado militar ocidental, este gesto provavelmente apaziguaria os temores geopolíticos russos.
 
Acertadamente, o argumento em questão é posto de forma racional e bem embasada pelos acadêmicos da área de Relações Internacionais no que concerne às razões do porquê de a investida anti-soberana, brutal, repressiva e imbuída de ingerência externa contra a Ucrânia estar acontecendo no presente momento histórico. Mesmo que isso explique o conflito, fica a questão humanitária de sempre: será que isso o justifica à luz do bom senso?

Letícia Martins Lima é graduada em Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás.
 
Gismair Martins Teixeira é pós-doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO; doutor em Letras e Linguística pela UFG; professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte.

Comentários

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  • 21.10.2024 16:02 Nelson pereira

    Parabéns pela reflexão

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