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Ciro Castro

A diferença essencial entre tutela e acolhimento

| 04.07.25 - 08:26
Vivemos um tempo em que se confundem profundamente os gestos de cuidado. No campo da saúde emocional, da educação, da espiritualidade e até das políticas públicas, a linha entre acolher e tutelar parece cada vez mais tênue. Essa confusão, no entanto, tem consequências diretas na formação de sujeitos maduros, autônomos e capazes de responder aos desafios da vida com dignidade.
 
Tutela e acolhimento são experiências humanas distintas. A primeira carrega o gesto de substituição — alguém se coloca no lugar do outro, assumindo responsabilidades, decisões, escolhas. Trata-se de um movimento de proteção, sim, mas também de controle. É o colo que embala, a mão que guia, o afeto que impede a queda. Em situações de trauma, de desequilíbrio emocional ou de extrema vulnerabilidade, a tutela pode ser não apenas necessária, mas vital. Há momentos em que o ser humano não consegue responder por si, e precisa, legitimamente, ser cuidado com totalidade.
 
É justamente aí que começa o problema: quando a tutela, necessária no início, não evolui para o acolhimento. Quando o gesto de fazer pelo outro não dá lugar ao gesto de caminhar ao lado. Acolher é sustentar o outro no seu processo de retomada, sem roubar dele a autoria da própria vida. É ouvir, orientar, estar presente — mas também cobrar, provocar, instigar a ação. Acolher é dizer: “E agora, o que vamos fazer com isso?” Não se trata mais de carregar no colo, mas de ensinar a andar.
 
O psicólogo Carl Rogers, ao desenvolver a Abordagem Centrada na Pessoa, enfatizava que o crescimento humano se dá num ambiente que combina aceitação incondicional com estímulo ao amadurecimento. Para ele, o espaço terapêutico ou educacional ideal era aquele onde o indivíduo se sentia profundamente aceito como era — mas, ao mesmo tempo, era desafiado a se tornar aquilo que podia ser. A contradição aparente, como ele mesmo dizia, é que só quando me aceito como sou, posso mudar de verdade.
 
É nesse ponto que a tradição do Yoga e do Vedanta nos oferece uma chave preciosa. No universo do Yoga contemporâneo, muitos se aproximam da prática buscando apenas tutela — e isso é legítimo. Quem está em crise, quem atravessa dores profundas, precisa encontrar um espaço onde possa respirar. No entanto, o Yoga não é — e nunca foi — apenas um espaço de conforto emocional. Ele é, antes de tudo, um caminho de autopercepção. Acolher o praticante, sim. E assim, depois, conduzi-lo com firmeza em direção à lucidez, ao desapego, ao esforço disciplinado.
 
O mestre na tradição védica não é aquele que alivia o caminho do discípulo, mas o que ilumina o caminho — mesmo que isso signifique confrontá-lo com verdades duras. É preciso agir com coragem, firmeza e discernimento. A vida não se resolve com colo eterno. Ela pede postura. Pede responsabilidade. Pede ação.
 
Albert Camus, refletindo sobre a condição humana, escreveu que “o verdadeiro homem sério é aquele que se recusa a enganar os outros e a si mesmo.” Em um mundo que banaliza o sofrimento e transforma qualquer desconforto em trauma, talvez seja urgente lembrar que crescer dói — e que nem todo desconforto é opressão. Acolher é dar suporte para atravessar esse desconforto com dignidade, não apagá-lo.
 
No fim das contas, a verdadeira maturidade talvez esteja em saber a hora de receber o colo e a hora de se levantar. De aceitar, sim, o cuidado quando ele é necessário — mas também de dizer: “Obrigado. Agora é comigo.”

*Ciro Castro é professor de Yoga e Vedanta, fundador do Espaço Yogapada — uma escola tradicional situada em São Paulo — e idealizador do Projeto Yoga na Rua, iniciativa que leva práticas e ensinamentos do Yoga para praças e espaços públicos da cidade. Com uma trajetória marcada pelo compromisso com a tradição védica e pelo desejo genuíno de tornar o autoconhecimento acessível, Ciro escreve sobre Yoga, espiritualidade e os desafios contemporâneos à luz da sabedoria ancestral da Índia.

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