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Assisti alguns dias atrás o filme-documentário sobre a vida do compositor e maestro Ennio Morricone, com direção de Giuseppe Tornatore. Ennio Morricone me encanta desde criança. Suas trilhas sonoras sempre me causaram grande comoção entre as imagens da tela, as cores, fotografias e movimentos que se entrelaçam com sua música tão particular em seus contrapontos incrivelmente fortes e sutis.
A música é a arte que toca o invisível. Ela se infiltra no espaço sem pedir permissão, atravessa o tempo sem se fixar nele, e constrói na memória humana uma arquitetura de emoções. Não precisa traduzir-se em palavras, porque fala diretamente à alma. O cinema, ao encontrá-la, descobriu sua plenitude: quando som e imagem se entrelaçam, nasce uma experiência que é maior que ambas, uma narrativa sensível do próprio mundo.
Ennio Morricone compreendeu esse poder como poucos. Suas composições não eram meros acompanhamentos, mas entidades vivas que recriavam o sentido das imagens. Como escreveu Umberto Eco, “a música é uma forma de pensar” (ECO, 1989, Obra Aberta), e Morricone pensava filosoficamente através do som. Nos faroestes de Sergio Leone, o assobio, a guitarra e o silêncio tenso não apenas serviam ao enredo: tornavam-se a própria narrativa, carregando no timbre e no ritmo a atmosfera do deserto, da solidão e da espera.
O filme que celebra sua vida e obra não é apenas uma biografia audiovisual, mas um retrato da potência criadora que transformou o compositor em maestro universal. Gilles Deleuze dizia que “o cinema não reproduz o real, ele o cria” (Deleuze, 1985, A Imagem-Tempo). Com Morricone, essa criação se intensificava: cada nota inaugurava um mundo, cada pausa abria um horizonte. O espectador não apenas assistia às cenas; ele as vivia, envolto pela tessitura sonora que dava corpo ao invisível.
No plano poético, Morricone soube traduzir o indizível em melodias que não se esgotam. Em suas canções há sempre um traço de eternidade: como se cada acorde fosse, nas palavras de Gaston Bachelard, “um instante imobilizado em pura duração” (Bachelard, 1990, A Poética do Espaço). O documentário que o revela ao público funciona, assim, como uma elegia e também como celebração. Nele, não vemos apenas o homem que compôs trilhas inesquecíveis, mas o arquiteto de uma filosofia sonora, um pensador que fez da música o lugar onde a arte se encontra com a vida.
Morricone nos deixou uma lição que ultrapassa o cinema: a de que toda obra de arte carrega um chamado à transcendência. Walter Benjamin escreveu que “a verdadeira obra de arte cria um outro mundo, uma outra temporalidade” (Benjamin, 1987, Magia e Técnica, Arte e Política). O universo musical de Morricone, ao mesmo tempo íntimo e grandioso, fez exatamente isso: transformou salas de exibição em templos de escuta e memória.
Por isso, assistir ao filme sobre sua trajetória é mais que um exercício de lembrança. É ser conduzido, nota a nota, a uma experiência filosófica e sensível — onde o cinema se abre como rito e a música se ergue como revelação. Ennio Morricone, o maestro das emoções que permanece entre nós.
Andréa Luísa Teixeira, pianista e pesquisadora da Emac-UFG, é presidente da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e Conselheira Estadual de Cultura