Um dos maiores portentos literários da humanidade foi produzido pelo russo Leon Tolstói na segunda metade do século 19, entre os anos de 1865 e 1869. Com o título de “Guerra e Paz”, o romance é um dos maiores do panteão da literatura universal, tanto no sentido qualitativo quanto no sentido quantitativo.
A depender da diagramação, essa obra tolstoiana pode chegar a 2000 páginas, movimentando várias centenas de personagens através das paragens interioranas da Rússia czarista. Isto em função das incursões do exército de Napoleão Bonaparte pelo território da grande nação que se tornou símbolo de resistência a ditadores exponenciais da humanidade, como o próprio Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler, no século seguinte, que não conseguiram dobrar nem o espírito e nem o clima da grande nação com seus poderosos exércitos.
Na conclusão desse majestoso romance, Leon Tolstói envereda pelo gênero ensaístico para estabelecer ilações de cunho histórico-filosófico, tangenciando a psicologia social ao considerar que a história é determinada mais por forças imponderáveis coletivas que propriamente individuais. De forma precursora, assim, o genial russo antecipava até certo ponto o que décadas depois seria esmiuçado pelo suíço Carl Gustav Jung em sua proposição acerca do inconsciente coletivo.
A certa altura de sua conclusão ensaística de “Guerra e Paz”, escreve Leon Tolstói: "Durante as revoluções palacianas, nas quais participam por vezes duas ou três pessoas, a vontade das massas transfere-se também para uma nova personagem? Nas relações internacionais, a vontade das massas do povo transfere-se para o seu conquistador?"
Neste entrecho em que desdobra suas reflexões sobre o complexo jogo de poder que oscila do indivíduo às massas, o escritor se utiliza de uma locução terminológica que mais tarde constituiria uma disciplina acadêmica, que teve como motivação inicial a
Primeira Grande Guerra, recebendo justamente a denominação de Relações Internacionais.
Em sua proposta epistemológica, a disciplina de Relações Internacionais busca compreender as interações entre os países em sua interface geopolítica e diplomática com uma das finalidades precípuas de evitar novos confrontos de dimensões globais como os dois que ocorreram no último século, além de articular relações de cooperação estratégica que assegurem seus interesses.
No momento, esse nobre intento da disciplina de Relações Internacionais parece estar malogrando. Em seu clássico “Ulisses”, James Joyce coloca na boca de um de seus personagens principais a paráfrase ao enunciado de Jesus Cristo no evangelho de São Mateus, em seu sexto capítulo, versículo 34, quando diz que “a cada dia basta o seu mal”. Na redação de um jornal em Dublin, parafraseia Joyce através de seu personagem: “a cada dia basta o seu jornal”.
No contexto do enunciado joyceano, uma rápida passada de olhos pelos jornais contemporâneos evidencia que as relações entre os povos há muito não se encontram tão perigosas do ponto de vista geopolítico quanto atualmente. O mais recente episódio que exemplifica essa realidade das Relações Internacionais é a presença ameaçadora dos norte-americanos nas proximidades territoriais da Venezuela, colocando em risco a segurança sul-americana do ponto de vista militar.
A justificativa para a ostensiva atuação da grande nação no hemisfério sul da América seria por conta do tráfico de drogas pesado na região, o que parece plausível num contexto de violência já instituída pela presença de grandes cartéis de narcotráfico. Plausibilidade esta, no entanto, que não isenta a região do possível escalonamento de escaramuças bélicas, como foi demonstrado no recente episódio que correu o mundo via internet mostrando a explosão de um barco venezuelano pelas forças estadunidenses.
O imbróglio na fronteira venezuelana, todavia, revela-se apenas como um desdobramento do embate geopolítico mundial que tem em seu centro gravitacional o cabo de guerra ideológico entre a extrema-direita e a extrema-esquerda que permeia o tecido social da humanidade em praticamente todas as latitudes e longitudes globais.
A convulsão geopolítica que ameaça a paz mundial se desdobra em outras frentes como, por exemplo, a guerra russo-ucraniana, que em sua retórica ameaça, volta e meia, com o uso de artefatos nucleares cuja utilização culminaria numa devastadora, e imprevisível em suas consequências, Terceira Guerra Mundial.
No amplo contexto do imaginário bíblico, ainda nesta perspectiva de convulsão geopolítica global, o caos bélico e geopolítico evocam o que o livro do “Apocalipse” registra como sendo o embate com Gogue e Magogue, nomes que representam o caos implantado na Terra pelas forças do mal que ontologicamente fazem parte do capital simbólico da religiosidade judaico-cristã. A genialidade de James Joyce sintetizou este contexto contemporâneo estudado pelas Relações Internacionais em outra produção literária sua, tão ou mais ousada que a formatação de seu “Ulisses”, que revisita parodisticamente a “Odisseia” de Homero.
Em seu hermético e desafiador “Finnegans Wakes”, traduzido no Brasil por um coletivo de tradutores com o título adaptado de “Finnegans Rivolta”, Joyce sintetiza todo o imbróglio contemporâneo da política mundial a desafiar os esforços hermenêuticos dos internacionalistas com estas palavras que dizem tudo sobre o momento atual conforme, ainda, o imaginário biblista: “Gogue e Magogue e todos em volta grogues”.
*GISMAIR MARTINS TEIXEIRA é Doutor em Letras e Linguística pela UFG com Pós-Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO; professor e pesquisador.
*LETÍCIA MARTINS LIMA é Bacharela e Mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás.