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GISMAIR MARTINS TEIXEIRA

Poesia, Titanic e sincronicidade

| 19.01.17 - 18:45

Goiânia - Alguns estudos etnográficos apontam que a música, a dança e a poesia teriam surgido no ambiente dos templos religiosos do passado distante e entre os mais diversos povos. De forma peculiar, teóricos literários e do imaginário, como o francês Gilbert Durand,  já fizeram referência a uma instigante correspondência entre a prática e o etos do poeta e do profeta, que vão muito além de uma rima pobre entre os dois vocábulos.
 
Os exemplos possíveis são muitos e estão, na maioria das vezes, nas entrelinhas, como em “Elegia 1938”, de Carlos Drummond de Andrade. Os versos finais desse poema da primeira metade do século passado diz que o leitor angustiado diante das agruras existenciais oriundas das injustiças do mundo não pode, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan, ícone do que alguns chamam de império americano.
 
Quando ocorreram os eventos do 11 de setembro de 2001, o poema drummondiano foi recordado como uma curiosidade algo profética em torno dos atentados terroristas. Já em  “Lira Itabirana”, Carlos Drummond volta a exercer o “poema-profecia” ao antever literalmente o contexto em que ocorreu o terrível acidente da cidade mineira de Mariana, o que foi amplamente noticiado pela mídia.
 
Uma ideia conexa à de profecia, no entanto, por vezes aparece em um ou outro poema e, em alguns casos, ela pode ser rastreada no tempo e no espaço: trata-se do conceito de sincronicidade. O estudo mais amplo sobre o tema foi realizado pelo psicólogo suíço Carl Gustav Jung. A sincronicidade é conceituada por ele em diversos de seus escritos. Num deles, escreve Jung que a sincronicidade é a “coincidência de um estado psíquico com um evento externo simultâneo mas distante no espaço”. Em outra oportunidade, o pensador europeu dirá que a sincronicidade é a “coincidência de um estado psíquico com um evento externo distante no tempo”.
 
A história das descobertas científicas está repleta de sincronicidades, caracterizadas pela descoberta de princípios científicos e invenções tecnológicas que ocorreram através de pesquisadores e cientistas que realizavam trabalhos idênticos sem se conhecerem e sem estarem informados do que o outro realizava. Isso, naturalmente, numa época em que as comunicações não haviam atingido a maximização da eficiência como ocorre hoje na era digital, quando o mundo se encontra conectado à rede global de computadores.
 
POESIA E SINCRONICIDADE
A par do caráter algo profético que alguns pesquisadores de literatura vêem no etos poético, o gênero comporta também uma abordagem sob a perspectiva da sincronicidade junguiana. Um exemplo instigante do que apresenta o estudioso suíço acerca da sincronicidade pode ser percebido no poema “Alucinação à beira-mar”, do poeta pré-modernista Augusto dos Anjos.
 
Essa poesia integra o volume único que foi publicado por Augusto dos Anjos em 1912 sob o título de “Eu e outras poesias”. A data exata do lançamento é difícil de rastrear, pois se trata de uma publicação do autor, que não pôde contar com os dados catalográficos de editoras que precisassem a data exata de lançamento. Alguns poemas foram acrescentados, após a morte do poeta, em reedições póstumas.
 
“Alucinação à beira-mar” é um soneto que apresenta uma singular sincronicidade imagética com os eventos que ocorreram em abril de 1912 envolvendo o transatlântico Titanic, no que ficou celebrizado como um dos mais terríveis naufrágios da história náutica. As imagens filmográficas apresentadas por James Cameron em sua versão cinematográfica do acidente com o grande navio são de extraordinária simetria com os versos do poeta brasileiro, conforme pode ser constatado na transcrição do poema:
 
ALUCINAÇÃO À BEIRA-MAR
Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o telúrico recorte, 
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadamente ribombava! 
 
Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros, me assombrava!
 
Mas a alga usufrutuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,
 
No eterno horror das convulsões marítimas
Pareciam também corpos de vítimas
Condenados à Morte, assim como eu!
 
Poeta da terminologia cientificista e dos termos pouco comuns ao imaginário da poesia, como “verme”, “podridão” e “carnificina”, dos Anjos apresenta em “Eu e outras poesias” imagens incisivas sobre a morte e suas transformações bioquímicas. O autor já terá merecido estudos que contemplam um glossário sobre os termos científicos e inusuais dos seus poemas, o que se revela bastante útil para compreender-se que “malacopterígios subraquianos” são pequenos peixes com nadadeiras amolecidas e algo deformadas pela impetuosidade oceânica.
 
Alinhando os dados da sincronicidade, portanto, tem-se um poeta diante do mar que observa um aspecto colossal da vida marinha que o leva a visualizar imageticamente “corpos de vítimas” condenados à morte como, de resto, o eu lírico também está. O primeiro e o segundo verso remetem, por sua vez, ao que poderia ser pensado como uma referência aos corpos enregelados dos náufragos apresentados por Cameron em sua épica produção.
 
A singular sincronicidade se apresenta, ainda, no fato de que o poema de Augusto dos Anjos vem a público no mesmo ano dos eventos envolvendo o Titanic, apresentando uma reflexão pessimista do poeta sobre o recorrente tema da morte, tendo o mar como elemento desencadeador de sua reflexão. Curiosamente, esse mesmo mar apresentaria naquele ano a materialização em cores trágicas das ilações do poeta. Assim, a sua alucinação à beira-mar estaria mais para uma vidência à beira-mar, desveladora de uma sincronicidade com ares de profetismo.
 
*Gismair Martins Teixeira é doutor em Letras e Linguística pela Faculdade de Letras da UFG; professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Seduce-GO.
 

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