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Gabriel Chalita

As gavetas de Ângela

| 29.09.17 - 17:24
Era um dia sem muitos afazeres. Um sábado ou domingo, não me lembro. Ângela acordou disposta a colocar ordem em suas gavetas. 
 
Ela sabia a razão. Na semana anterior, recebera um adjetivo não muito agradável: acumuladora. Foi Laís quem disse. Laís e Ângela são amigas há muito tempo. Estavam conversando sobre uma conhecida que havia falecido. E sobre as bugigangas que aguardavam um destino. 
 
"Por que se guarda tanta coisa?", questionava Laís. Ângela concordava com a amiga sem se dar conta de que, em todos os cantos da casa, havia sobras de outros cantos do passado. De desafinações, inclusive. Presentes de um casamento há muito encerrado. Roupas não usadas e que, nem por decreto, serviriam. Discos velhos ladeando uma antiga vitrola sem funcionamento. Convites de casamento, de festas de 15 anos, de batizados. Cartões de natal que foram ficando para serem agradecidos. Recortes de alguma revista de fotos com alguma roupa que serviria para algum modelo a ser feito. Pratarias que clamavam por limpeza, cápsulas de café de uma máquina defeituosa. Deviam estar vencidas. Cortinas que foram retiradas para algum remendo e que ficaram aguardando alguma decisão.  Brinquedos de cachorros que já morreram. 
 
"Por que se guarda tanta coisa?", insistia Laís. Ângela fingiu cansaço e deu a visita por encerrada. Foi logo se levantando para acompanhar a amiga até a saída. 
 
Nos dias que se seguiram, ela observou com mais afinco os tais cantos de acúmulos. E foi, justamente em um final de semana, que ela resolveu começar a obra há muito retardada.
 
E começou com as gavetas.  O que havia nas gavetas de Ângela nem Ângela imaginava. Havia uma ordem clara para Juliana, sua funcionária, de não mexer, de não mudar de lugar, de não botar nada fora. Limpar aqueles espaços era por demais penoso. Mas a menina cumpria o seu papel ocupando-se da preocupação de não magoar a patroa. 
 
Quando Ângela começou a remexer nos antigos papéis que habitavam aquelas gavetas, preferiu estar sozinha. Havia muita história. Era preciso cautela. Passados não são descartáveis. Se se guardou, fora por alguma razão.
 
Colocou os óculos e se pôs a examinar. Abraçou um velho boletim da antiga escola primária. Reconheceu a letra da velha professora. Percorreu o seu imaginário em busca daquele tempo. A fotografia amarelada da primeira formatura. Tentou se lembrar dos nomes. Difícil. Muitos já se foram. Resolveu pôr fora o boletim. Não usaria para mais nada. Mudou de ideia. Um boletim não ocupa tanto espaço. 
 
Encontrou receitas médicas. Antigas. Ficou se lembrando dos médicos que as receitaram e de sua mãe que fazia questão de estar sempre com ela. Guardar isso era desnecessário. Levantou-se e pegou um pote de lixo. Mudou de ideia. Ficaram tantos anos ali que poderiam ficar um pouco mais. Fotos, não havia razão para descartá-las. Encontrou cartas de família e cartões postais. A primeira viagem à Europa. Escrevera todos os dias para a mãe. Se a mãe havia guardado, por que agora descartar? Resolveu abrir a gaveta debaixo. 
 
A vela da primeira comunhão, o diploma da escola de datilografia. Levou o diploma junto ao peito e pensou nos novos tempos. Nem máquinas de escrever existem mais. Ao longe, viu a sua. Sem fita. Sem uso. Mas, ali, ocupando um espaço mínimo. A primeira passagem de avião, Não. Não havia necessidade de guardar. Mas também não havia necessidade de jogar. Iria refletir um pouco mais.
 
Abriu mais uma gaveta. Os lápis que a própria mãe colecionava. Ainda apontados. Por ela, certamente. Faz tanto tempo, e eles sobreviveram. Poderia doá-los para crianças carentes. Mas lápis não custam caro. Não. Era melhor que ficassem ali. Viu papéis de hotéis, cartões de visita, todos muito bem guardados. Cédulas de dinheiro antigas. Um dia, doaria para algum museu. 
 
Cansou-se de tanta arrumação. Resolveu descansar um pouco. Sentou-se na velha poltrona e ficou pensando no que já passara. Era melhor não mexer nas gavetas. Estavam quietas, ali, guardando o passado. Talvez fosse melhor se desfazer das roupas em desuso. Mas...outro dia. Pensou em Laís e em seu comentário. Pensou em Juliana e em seus cuidados. Nela mesma, pensou pouco. Os dias iam trazendo acúmulos e levando o tempo. Ainda ontem, imaginava uma outra vida. Hoje, guarda o que pode com medo de desaparecer. Não sabe de onde tirou essa ideia. Medo de desaparecer? Ora, desapareceremos todos. “Era melhor voltar às gavetas e limpá-las de uma vez por todas”, falou consigo mesma. “Outro dia”, emendou.
 
“Gavetas vazias são mais fáceis de serem surpreendidas com novidades. Novidades nem sempre são boas”, resmungou Ângela.
Se a vitrola não estivesse estragada, certamente ela colocaria um disco de Edith Piaf. Sempre gostou de músicas francesas. E de imaginar futuros.
 
O dia já estava de partida. Era melhor se preparar para dormir e torcer para algum sonho bom. Sem gavetas nem despedidas. 
 


*Gabriel Chalita é escritor, doutor em Filosofia do Direito e em Comunicação e Semiótica.

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