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Márcio Jr.
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Márcio Mário da Paixão Júnior é produtor cultural, mestre em Comunicação pela UnB e doutorando em Arte e Cultura Visual pela UFG. Foi sócio-fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado. / marciomechanics@hotmail.com

Guerrilha Pop

Stan Lee, o último dos deuses

| 13.11.18 - 10:56 Stan Lee, o último dos deuses (Foto: reprodução/Facebook) Todo universo pressupõe a existência de um Deus responsável por sua criação. Com o Universo Marvel, não é diferente. Conhecemos a face, o tom de voz e os trejeitos de seu artífice supremo. Sabemos seu nome: Stan Lee. A data de 12 de novembro de 2018 será sempre lembrada como o dia em que este Deus dos quadrinhos nos deixou. Seu legado, todavia, deve permanecer entre nós por eras eternas e insondáveis – como ele mesmo diria.

Mensurar com precisão o impacto da Marvel – e, consequentemente, de Stan Lee – na cultura contemporânea, é tarefa para estudos que consumirão anos a fio. Não há, sequer, garantia de êxito nesta empreitada. Mas o ponto de partida é consensual: o nº 1 de Fantastic Four (o gibi norte-americano do Quarteto Fantástico), lançado em 1961.


(Foto: divulgação)

Àquela altura, Stan já era um veterano dos comic books – é assim que se chamam os gibis na terra do Tio Sam. A fragilidade sempre foi uma das marcas registradas da indústria dos quadrinhos – e aquele momento se mostrava crítico. Ficção infanto-juvenil barata e produzida em escala industrial, os gibis possuíam um prestígio praticamente nulo. O estrondoso sucesso dos super-heróis havia ficado no passado, com o final da 2ª Grande Guerra. E o Código de Ética estabelecido pelo macartismo nos anos 1950 encaretou de vez as HQs. Mídia morta, diziam.

Cansado da rotina exasperante e da grana minguada, Lee estava prestes a jogar a toalha. Seus planos futuros consistiam em tentar a vida como um escritor “sério”, carreira para qual havia cuidadosamente preservado seu nome de batismo: Stanley Martin Lieber. O golpe de sorte nasceu de uma demanda de Martin Goodman, o dono da editora. Sabendo do recente sucesso da concorrente DC Comics com a Liga da Justiça, Goodman encomendou um genérico ao roteirista.

Reza a lenda que foi Joan, a esposa de Lee, a dar a deixa: “já que está de partida, por que não fazer um gibi exatamente do jeito que você gostaria que eles fossem?” O resto é história. Com arte do genial Jack Kirby, o Quarteto Fantástico foi um titânico sucesso. Nascia ali o Universo Marvel. E o toque de midas de Stan Lee se espalhou por todas as criações seguintes: Hulk, Thor e Homem-Aranha, em 1962; Homem-de-Ferro, Vingadores, X-Men e Doutor Estranho, em 1963; Demolidor, em 1964; e daí por diante.


(Foto: Marvel Comics)

A primeira edição do Quarteto Fantástico é uma espécie de síntese das inovações que a Marvel traria aos quadrinhos. Seus personagens eram carregados de dramas e conflitos. Eram falíveis. Bombardeados por raios cósmicos após terem surrupiado uma nave espacial, Reed Richards, os irmãos Sue e Johnny Storm e o piloto de testes Ben Grimm retornam à Terra, onde descobrem seus super-poderes recém adquiridos.

O corpo do cientista Reed Richards torna-se flexível como elástico. Johnny se converte, literalmente, em uma Tocha Humana, enquanto sua irmã adquire a habilidade de ficar invisível e projetar campos de força mentais. Ben, por sua vez, se transforma em um horroroso gigante de pedra – circunstância que passará o resto da vida tentando reverter. Pela primeira vez na história dos quadrinhos, ganhar poderes especiais não era necessariamente uma vantagem.

A esperteza editorial de Stan Lee já se apresentava nesta edição inaugural. O gibi do Quarteto mais parecia uma revista de monstros – um gênero bem mais popular à época do que os super-heróis. Caso o título não fizesse sucesso, poderia ser apenas mais um dos infinitos gibis de criaturas assustadoras, misto de terror e ficção científica, que infestavam as bancas. Não foi o caso. Mais que os super-poderes, o que fisgou o público foi a personalidade bem definida dos membros do Quarteto, bem como suas relações interpessoais.

Reed estava sempre ocupado demais com a ciência para dar a devida atenção à sua namorada – e futura esposa – Sue Storm. Johnny era um jovem playboy gozando os dons que ganhara no acidente espacial, ao mesmo tempo em que atormentava o medonho Coisa. O Quarteto Fantástico era, em última instância, a família disfuncional da era do átomo.

A ciência atômica, tão em evidência nos anos 1960, dava a tônica dos heróis Marvel. O Hulk nada mais era que um cientista atingido pela radiação gama, transmutando-se em uma fera irracional e invencível. Angustiado, solitário e incompreendido, tudo que esta variação nuclear de Dr. Jekyll & Mr. Hyde buscava era um pouco de paz. Um isótopo radiativo roubou a visão de Matt Murdock, ampliando seus outros sentidos e transformando-o no Demolidor. O personagem enfrentava um dilema constante: de dia, advogado; de noite, justiceiro mascarado.


(Foto: divulgação)

Thor era uma livre interpretação das lendas nórdicas. Arrogante, foi confinado por Odin no corpo deficiente do médico Don Blake para conhecer a humildade necessária a um legítimo herdeiro do trono de Asgard. A questão da humildade também é premente para o Dr. Stephen Strange, um cirurgião de sucesso que, após um acidente de carro, perde suas habilidades motoras. Para recuperá-las, vai em busca de conhecimentos místicos, tornando-se o Mago Supremo do Universo – e, consequentemente, deixando o nariz empinado de lado. 

Mas a súmula suprema da Marvel, e seu maior sucesso, não é outro que não Peter Parker, o Homem-Aranha. Picado por uma aranha radiativa que lhe confere poderes semelhantes ao do octópode, Peter tenta explorar comercialmente suas novas habilidades. Deixando escapar um ladrão que poderia facilmente ser detido, vai entender do modo mais amargo que “com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. O mesmo ladrão mataria seu tio em seguida, atirando Parker em um mar de remorsos sem fim. A partir daí, se dedicaria ao bem e à justiça, sem jamais encontrar o devido reconhecimento. Como Homem-Aranha, é considerado um criminoso pela polícia e pelos jornais. Como o jovem Peter Parker, está sempre envolto em dívidas, culpa e problemas com as garotas.

A genialidade de Stan Lee e sua responsabilidade pelo sucesso do Universo Marvel pode ser percebida em diversos aspectos. Tornar os heróis mais humanos e falíveis é o centro de sua abordagem. Seus personagens possuíam uma profundidade inédita no gênero, com problemas que não se restringiam ao período em que estavam protegidos por suas máscaras. Mais que os poderes, o que atraía os leitores era a personalidade quase tridimensional destes heróis.

A inserção de uma cronologia que interligasse todos os personagens e seu universo também constituíram uma tacada de mestre do escritor/editor. Na Marvel, não há ação sem consequências. E isso era algo absolutamente novo no mundo dos quadrinhos americanos. A ambientação geográfica também contribuiu para este “efeito de realidade”. Enquanto na DC Comics os heróis atuavam em cidades fictícias como Gotham City ou Metrópolis, na Marvel a ação se desenrolava em cidades “reais”, como Nova York e San Francisco.

É impossível desconsiderarmos também a qualidade propriamente dita do texto de Stan Lee. Verborrágico e idiossincrático, pode-se reconhecer seu estilo inconfundível logo nas primeiras páginas de qualquer HQ que tenha escrito. Há ali uma mistura ímpar de humor, aventura e melodrama, que deu origem a um séquito de seguidores – sejam eles leitores ou roteiristas. É óbvio que o tempo tratou de anacronizar suas HQs em diversos sentidos, mas é preciso entender em que condições elas eram produzidas e com quais propósitos.

Stan Lee escrevia e editava quase uma dezena de títulos mensais. E foi diante desta demanda assombrosa que ele manifestou sua maior genialidade: cercar-se dos melhores profissionais da indústria e desenvolver um método de produção absolutamente original. Na arquitetura do Universo Marvel, o roteirista contou com dois dos maiores quadrinistas de todos os tempos: Jack Kirby (Quarteto Fantástico, Hulk, Vingadores, X-Men, Capitão América) e Steve Ditko (Homem-Aranha e Dr. Estranho).

Kirby e Ditko, mais que desenhistas inspirados e primorosos, eram mestres da narrativa quadrinística. Ciente disso, Stan Lee desenvolveu o famoso (e famigerado) Método Marvel: ao invés de passar aos desenhistas o roteiro completo da HQ, ele apenas oferecia uma sinopse resumida da edição – que poderia até mesmo ser transmitida por uma ligação telefônica. De posse disso, os artistas desenvolviam e desenhavam toda o gibi, que então retornava a Lee para que ele aplicasse os diálogos. Uma malandragem pra lá de incrível – mas que gerou sérios problemas com seus parceiros.

Durante décadas, a criação do Universo Marvel e seus personagens foi atribuída exclusivamente a Stan Lee. Após pesquisas, discussões e imbróglios jurídicos, essa versão foi superada. Tanto Jack Kirby quanto Steve Ditko têm sido creditados como co-autores deste universo tão rico e bem-sucedido. Nada mais correto. Como todo negócio que começou de forma precária e se agigantou com o decorrer dos anos, muitos atritos e desgastes pessoais ocorreram. Mas, justiça seja feita, Stan Lee sempre reconheceu publicamente a importância dos artistas que o cercavam – nomes que também incluem John Romita, John Buscema e Jim Steranko, entre tantos outros mestres da arte sequencial.

A questão é que o talento de Stan Lee extrapolava em muito seu papel de roteirista. Como editor, ele era brilhante – e só a criação do Método Marvel seria motivo mais que suficiente para uma afirmação tão categórica. Lee estabeleceu ainda, através das sessões de cartas dos gibis da Marvel, um contato direto com os fãs. Com um linguajar inovador e próximo da garotada, forjou o imaginário de uma redação grandiosa e efervescente. Suas ações promocionais, como a criação do fã-clube oficial Merry Marvel Marching Society não tinham precedentes no campo dos quadrinhos.

Por essas e outras, Stan foi responsável por uma vigorosa ressurreição do gênero super-heróis – que dura até os dias atuais como a expressão hegemônica dos quadrinhos norte-americanos. Pode-se afirmar que, desde então, nada de radicalmente novo foi feito. No mundo dos heróis encapuzados, tudo são variações sobre as orquestrações que Stan Lee compôs (ao lado de Kirby, Ditko e outros) naquela primeira década de Marvel.

A importância do escritor transcende em muito as próprias histórias em quadrinhos. Os super-heróis, hoje, encontram-se espalhados por todos os cantos da indústria cultural. Filmes, séries de TV, desenhos animados, videogames, camisetas, brinquedos e uma infinidade de produtos são continuamente lançados tendo suas criações como mote.

Desde os anos 1970 Stan Lee trava sua luta pessoal para a migração dos personagens da Marvel para as telas de cinema. Se em um momento parecia impossível, hoje todos sabemos que a maior potência de Hollywood deriva dos filmes de super-heróis. O sucesso dos filmes da Marvel é estratosférico – ao contrário daqueles baseados nos personagens da rival DC Comics. A razão me parece simples: o respeito à essência do que foi feito nos quadrinhos. Dramas pessoais, humor, cronologia, universo compartilhado... Todos os elementos estabelecidos naqueles aparentemente ingênuos quadrinhos dos anos 1960 estão preservados na telona, acrescidos de robustas camadas de efeitos especiais e estratégias de marketing. Se antes personagens secundários como Pantera Negra e Homem-Formiga faziam parte apenas do repertório de leitores iniciados, agora compõem o léxico pop de grande parte do mundo ocidental.

A hegemonia dos filmes de super-heróis nos cinemas é algo questionável. Contudo, não deixa de ser notável que a grande indústria do entretenimento contemporâneo se valha das ideias criadas há décadas por Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko (entre outros), em condições precárias e com remuneração muito longe do ideal. Neste sentido, não há exagero algum em afirmar que Stan “The Man” Lee ajudou a moldar a cultura dos séculos XX e XXI.

Se a obra é perene, sua produção chegou ao fim. Ontem, Stan Lee partiu. A esta altura, uma cavalgada de Valquírias o conduz a Valhalla, morada final dos Deuses. Lá, após acertar suas contas com os não menos divinos Jack Kirby e Steve Ditko, deverá sentar-se em algum trono e observar, com alegria, a alegria que suas criações deram a gerações e gerações de leitores. Excelsior!

*Márcio Mário da Paixão Júnior é produtor cultural, mestre em Comunicação pela UnB e doutorando em Arte e Cultura Visual pela UFG. Foi sócio-fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado. Dirigiu O Ogro e produziu Faroeste: um autêntico western, entre outras animações. Lançou, em 2015, o livro COMICZZZT!: Rock e quadrinhos - possibilidades de interface. Em 2017, criou e realizou duas edições do GIBIRAMA – Feira Goiana de Histórias em Quadrinhos. É também vocalista da banda Mechanics – que, ao lado do quadrinista Fabio Zimbres, realizou o projeto do disco/HQ Música para Antropomorfos, dando origem ao recém-lançado curta em animação O Evangelho Segundo Tauba e Primal. É roteirista da graphic novel Cidade de Sangue, publicada em 2018 e desenhada pela lenda dos quadrinhos brasileiros Julio Shimamoto.

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Márcio Mário da Paixão Júnior é produtor cultural, mestre em Comunicação pela UnB e doutorando em Arte e Cultura Visual pela UFG. Foi sócio-fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado. / marciomechanics@hotmail.com

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