A revolução digital não me pegou. Continuo ouvindo música como um velhote anacrônico do século passado. Mais precisamente CDs (no carro) e vinis (em casa). Ainda tenho toneladas de fitas k-7, que remontam um período esquecido do rock independente brasileiro. Mas estas, confesso, estão encostadas – ainda que muito bem preservadas – há tempos.
De qualquer forma, por pura estupidez, abro mão de uma das poucas vantagens que reconheço na internet: a possibilidade de amplo acesso à produção musical. Do presente e do passado. Daqui e de lá. Coisa de bocó cheio de manias. Gosto dos discos, de tê-los, de cuidar deles. Gosto dos ritos da escolha e da audição.
Minha coleção é considerável. Alguns milhares de CDs e vinis. Não é gigante, mas é decente. Indecente é a bagunça em que ela se encontra, fracionada em partes acessíveis e inacessíveis. Desorganizada. De modo que, na prática, não sou eu quem escolhe o que ouvir, mas os discos que me escolhem. Força da ocasião.
Vou até um dos armários entupidos de vinis – um dos quais tenho acesso, claro – dou uma olhada no que tem ali. Puxo uns discos ao acaso e vejo o que dá vontade de escutar. Ontem tirei a sorte grande: Heaven And Hell, clássico da segunda fase da banda-mãe do mau-agouro, o Black Sabbath.
Não existe margem para dúvidas: o Black Sabbath é a pedra fundamental do subgênero do rock denominado heavy metal.
Mesmo com a dificuldade intrínseca em se determinar o marco zero de um estilo musical, qualquer pesquisa minimamente séria chegará ao grupo nascido na cinzenta e poluída Birmingham, Inglaterra. De modo que outro resultado não passaria de uma ilação – tão frágil quanto a condenação do ex-presidente Lula. A questão é que, apesar de ter parido o heavy metal, a música criada por Tony Iommi, Geezer Butler, Bill Ward e Ozzy Osbourne ultrapassa em muito seus limites.
O gueto metaleiro é pequeno demais para tamanha invenção. Podemos encontrar ecos do Sabbath em virtualmente toda a música alternativa baixo-astral produzida desde então. Até naquela com cérebro. Pergunte ao Nirvana, Nine Inch Nails, Queens of the Stone Age.
Na primeira encarnação do Black Sabbath há uma virulência, distopia e pessimismo que, como um vírus mortal, contaminou todo o rock que se diz digno do nome. E então Ozzy abandonou a banda – a bem da verdade, foi chutado porta afora, em virtude de seu comportamento nada exemplar. Para dar continuidade à banda, a alternativa encontrada pelo maestro Tony Iommi foi o recrutamento do espetacular vocalista Ronnie James Dio. Impossível imaginar escolha mais acertada.
Tecnicamente, Dio encontra-se anos-luz à frente de Ozzy – este, um dos casos de mediocridade genial mais impressionantes da história da música. Seus predicados o posicionam nos píncaros da hierarquia heavy metal – um gênero absolutamente afeito a predicados e hierarquias. Extensão vocal, afinação, timbre, criatividade melódica e inflexão erudita: o saudoso gnomo cabeludo trazia tudo isso em seu alforje. Virtuosos talentos inteiramente colocados à disposição de Heaven And Hell.
O álbum é um rosário de clássicos. A começar pela icônica e ultrajante capa, criada pelo ilustrador norte-americano Lynn Curlee. Imersos na escuridão, três anjos – do sexo feminino – jogam cartas enquanto tragam tediosamente seus cigarros. O aviso era explícito: mesmo sem Ozzy, o Sabbath permanecia em seu caminho de trevas.
“Neon Knights”, “Children Of The Sea”, “Lady Evil”, “Heaven And Hell”, “Wishing Well”, “Die Young”, “Walk Away” e “Lonely Is The World” compõem uma das mais esmeradas coleções de canções já vistas no universo da música pesada. Oito pérolas indiscutíveis, vindas de um novo Black Sabbath. Porque – é necessário dizer – este não é “o” Black Sabbath, e sim uma espécie de mutação da banda que outrora existiu. Uma reinvenção absolutamente necessária naquele momento.
Nos idos Ozzy Osbourne, o Black Sabbath se pautava por atmosferas as mais sombrias. O clima de pesadelo era perene e sufocante. A guitarra de Tony Iommi assinava um pacto de mil megatons com Lúcifer em pessoa. Em Heaven And Hell, contudo, a história é diferente – ainda que pavimentada sobre o mesmo chão.
Iommi abre mão do peso mastodôntico em função de arranjos pra lá de sofisticados. O horror e o terror presentes nas letras de Geezer Butler dão lugar ao lirismo de chave fantástica típico de Dio. No lugar de demônios e mortes, dragões e castelos. No lugar de bruxaria, magia. Se antes o Black Sabbath era o equivalente a um filme de Mario Bava – cujo filme homônimo é responsável pelo batismo da banda –, agora estava mais próximo das obras de J. R. R. Tolkien. Funcionou. Heaven And Hell superou as melhores expectativas, vendeu aos borbotões e foi imediatamente alçado à condição de clássico. Do heavy metal, e não do rock.
Em sua primeira fase, com Ozzy à frente do microfone, o Black Sabbath sagrou-se uma das bandas mais influentes da história do rock. Tal qual Beatles, Stones e Dylan, sua música atingiu sensibilidades diversas. O Black Sabbath de Dio é outro e apela quase exclusivamente a uma audiência heavy metal.
Àquela altura, o gênero musical que a própria banda havia forjado na década anterior encontrava-se plenamente desenvolvido, com suas regras estabelecidas de forma clara e inequívoca. E vou te contar uma coisa: ninguém gosta mais de regras que um metaleiro ortodoxo. Heaven And Hell foi concebido respeitando todos os limites do estilo, reforçando seus dogmas. Se antes o Black Sabbath era um diamante bruto e difuso, agora havia se transmutado em peça de preciosa e polida ourivesaria.
No meio do rock pesado há uma eterna disputa: qual o melhor vocalista do Black Sabbath, Ozzy ou Dio? Fora dos muros do metal, Ozzy ganha em disparada. Dio, por sua vez, é um fortíssimo concorrente entre os headbangers. Em sua defesa pode-se dizer que, ao passo que sua encarnação do Black Sabbath não seja tão universal quando o período com o patriarca do clã Osbourne, tampouco Ozzy conseguiu ampla respeitabilidade por meio de sua carreira-solo. Seus discos também ficaram restritos à estética heavy metal. E ele nunca foi capaz de criar um tão impecável quanto Heaven And Hell. Pelo contrário, apesar do sucesso comercial, álbuns artisticamente dispensáveis não foram raros em sua longa carreira – sempre sob a chibata da esposa Sharon.
Na competição nerd entre Ozzy e Dio, fico com os dois. Acredito que os metaleiros mais espertos tenham opinião semelhante. Agora, para você que é roqueiro, mas acha heavy metal um saco de empulhação – eu não o condeno por isso –, tenho uma sugestão que pode se mostrar valiosa. Dê mais algumas chances a Heaven And Hell. Alguma mágica pode acontecer.