Goiânia - Deixa eu te fazer uma pergunta: Você é leitor de quadrinhos? Se a resposta for afirmativa, nos vemos semana que vem. O texto de hoje não vai te trazer novidade alguma – e a loucura do dia a dia vive nos esfregando na cara que não temos tempo a perder. Por outro lado, se você nunca leu uma HQ na vida (e Turma da Mônica não vale!), puxa uma cadeira e pede um café.
Por que você não lê quadrinhos? Porque quadrinhos são coisa de criança, ora, bolas!!!
Sim, é verdade. HQs (assim como cinema, literatura, teatro e televisão) são mesmo coisa de criança. Mas não só. Então, a primeira coisa a termos em mente é que quadrinhos não são um gênero, mas sim uma linguagem, um meio, media (exatamente como cinema, literatura, teatro e televisão). Portanto, se prestam a qualquer tipo de conteúdo e podem se dirigir a qualquer faixa etária.
Existe gibi infantil, infanto-juvenil e adulto. Existe quadrinho de ação, drama, humor, terror e sacanagem. Existem HQs biográficas a autobiográficas, históricas e ficcionais. Existe jornalismo em quadrinhos. Existe quadrinho de tudo que é jeito. E como tudo, tem quadrinho bom e quadrinho ruim.
Não vou ficar aqui explicando as razões pelas quais o senso comum insiste em reafirmar que histórias em quadrinhos são infantis, subliteratura, primo pobre e desnutrido do cinema. Outro dia falamos sobre isso. Mas deixo umas pistas...
A perspectiva dos quadrinhos como algo exclusivamente voltado às crianças, a gente meio que importou dos Estados Unidos. Na Europa (onde o mercado franco-belga é maior que o americano) a coisa não é assim. Muito menos no Japão, onde todo mundo lê mangá (nome que os japoneses dão às HQs). A terra do Jaspion consome mais gibi que todo o resto do planeta. Junto.
Imagine se você nunca tivesse visto um filme, lido um livro, ido ao teatro, assistido a uma série de TV? Triste, né? Mas é de algo desta natureza que você está sendo privado ao não deitar os olhos num gibi. Principalmente se ele for legal de verdade. Então, vou dar aqui umas dicas para qualquer adulto que tenha interesse em adentrar o mundo dos quadrinhos. Basta um pouquinho de bom gosto.
A tendência é sempre irmos em direção aos famigerados super-heróis. Afinal de contas, você não lê gibi, mas se diverte pra cacete com Vingadores, Homem-de-Ferro, Batman e quetais no cinema. Más notícias. Atualmente, os quadrinhos dos supers (Marvel e DC) são uma gigantesca porcaria. Não são para adultos. E nem para crianças. Eles são para nerds. E você não é um nerd. Se fosse, já leria quadrinhos (os piores possíveis, justamente aqueles que fazem o mundo pensar que HQ é coisa de criança ou retardado).
Os blockbusters do cinema são usualmente legais porque se baseiam em HQs muito legais feitas entre os anos 60 e 80 do século passado, farmacologicamente anfetaminadas para ganharem a retina das gerações que já nasceram diante de uma tela de computador. Como adulto, não acho que os gibis da turma da cueca por cima da calça seja uma boa entrada para os quadrinhos. (Mas depois que você tiver se convertido, prometo passar o mapa do tesouro super-heroístico).
Neste quesito, duas obras são mais que suficientes (e o suprassumo daquilo que o gênero pode oferecer): “Batman, o Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller, e “Watchmen”, de Alan Moore e Dave Gibbons. Dois clássicos absolutos, lançados em meados da década de 80 e que já chegaram em pé de igualdade com os quadrinhos de gente grande feitos no resto do mundo. Tanto o “Cavaleiro das Trevas” quanto “Watchmen” colocavam em cheque a própria ideia de super-herói: como seria o mundo se eles existissem de fato? Chacoalharam o mercado americano de tal forma que seu legado persiste ainda hoje – em quadrinhos que não possuem um átimo de sua originalidade e ousadia.
Mas deixa esse papo de super pra lá e vamos falar de coisa séria. O holocausto nazista foi tratado de forma magnífica por diversas linguagens. Obras-primas foram criadas no cinema, literatura e artes plásticas para lidar com essa mácula da humanidade. “Maus”, de Art Spiegelman, engrossa esse caldo, além de ter tempero próprio. A graphic novel (nome invocado para livros adultos de HQ), simultaneamente autobiográfica e antropomórfica (os alemães são gatos e os judeus, ratos), levou um Pulitzer e permanece um marco no meio. Indispensável.

A treta no oriente parece um cabaré de cego para a maioria dos ocidentais – e não será a Rede Globo que vai clarear as coisas. Recomendo então a obra de Joe Sacco, em especial seu livrão “Palestina”. Sacco tem fama de ser o fundador do jornalismo em quadrinhos. Ele se embrenha em zonas de guerra para posteriormente quadrinizar tudo que testemunhou, sempre sob uma perspectiva crítica e buscando dar voz a todos os lados do conflito. Garanto que vai aprender mais com ele do que na escola ou no telejornal. E de brinde, vai se emocionar.
Emoção é o que não falta em “Persépolis”, da iraniana Marjane Satrapi. Mais nós orientais sendo desatados em nossa cabeça, com arte, beleza e fúria. “Persépolis” é autobiográfica, assim como “Retalhos”, de Craig Thompson. Aqui as questões políticas se deslocam mais para o fundo, abrindo espaço ao drama da dimensão humana. Coisa fina.
Mas vai que você não é muito sensível e prefere uma visão mais cínica e ácida dessa coisa peçonhenta e ridícula que é o homem. Crumb é o nome. Deus absoluto da contracultura, pode pegar qualquer livro dele na prateleira da livraria que é sucesso. Indicadíssimo para leitores de Charles Bukowski – com o qual Crumb, inclusive, já fez algumas parcerias.
Erotismo? Manara é mestre. Ficção científica? “O Incal”, da arrebatadora e seminal dupla Moebius e Jodorowsky vai te levar a outras dimensões. Ou ainda a “Trilogia Nikopol”, do iugoslavo Enki Bilal, perfeita equação entre política e desolação. Dia desses ele estava com uma exposiçãozinha num certo Museu do Louvre...
E o Brasil, como fica nessa? Muito melhor representado nos quadrinhos que no futebol, pode apostar. “Tungstênio”, de Marcello Quintanilha, é ouro. Um dos melhores quadrinhos que já tive a felicidade de ler, há pouco trouxe caneco do mais prestigiado evento do mundo, o Festival de Angoulême, na França. Algo como ganhar um prêmio de cinema em Cannes. Não por acaso, “Tungstênio” virou um filmaço, sob direção de Heitor Dhalia. Leia o livro e veja o filme.

Fábio Moon e Gabriel Bá, Rafael Coutinho, João Pinheiro, Marcelo D’Salete, Gidalti Jr., Wagner Wiliam, Cynthia B., Lélis, Pedro Cobiaco, Fabio Zimbres, André Toral... A lista de craques brasileiros é infinita. E isso que só citei aqueles com livros lançados por grandes editoras – o que significa que você encontra com relativa facilidade em qualquer livraria ou loja especializada. Se partirmos pros independentes, a coisa cresce exponencialmente. Sem medo de errar, afirmo: hoje, o quadrinho brasileiro está entre os melhores do mundo. Fácil fácil.
Poderia ficar horas e horas indicando quadrinhos geniais capazes de despertar um inesperado interesse por essa linguagem única em leitores virgens. Porque quadrinho é isso mesmo: uma linguagem única, ímpar, que vai muito além da ideia de soma entre texto e imagem. Mas isso é outro papo. Se eu fosse você, se dava de presente um destes gibis que sugeri. Satisfação garantida.