Goiânia - Afirmo sem o menor medo de errar: no audiovisual, não existe nada mais trabalhoso – e caro! – do que animação. Falo com propriedade. Desde 2009, ao lado de Márcia Deretti, desenvolvo o projeto Escola Goiana de Desenho Animado, cujo objetivo é formar mão-de-obra para este mercado. A Escola, por sua vez, é uma das ações da MMarte Produções, que tem como foco principal a produção de cinema de animação. Quem tiver algum interesse em conhecer um pouco deste trabalho, basta conferir o site
www.mmarteproducoes.com.
O leitor mais questionador pode perguntar: “Mas se animação é tão caro assim, por que os orçamentos dos blockbusters em live action – como os filmes de super-heróis – são invariavelmente maiores que aqueles destinados aos desenhos animados?” A resposta é simples: grande parte do que vemos na tela nessas mega-produções é, simplesmente, animação. Ou você acha que o Aquaman foi filmado debaixo d’água?
Prefiro animações autorais, com viés artístico acentuado. E prefiro técnicas clássicas em 2D, ao invés da perfeição asséptica dos mundos criados pelo 3D digital. Por mais que os filmes da Pixar sejam legais, visualmente são muito homogêneos para o meu gosto. Mas, por favor, não me confundam. Curto, sem maiores dramas – mas com o senso crítico em riste –, produtos industrializados. E não é de hoje.
Para minha geração, uma série em particular tem sabor especialíssimo: Jonny Quest. Passei os últimos dias apresentando alguns dos 26 episódios, produzidos entre 1964 e 1965, para minha filha – que tem apenas 9 anos. Sempre me pergunto se coisas do século passado mantêm força o suficiente para exercer alguma atração sobre ela. As aventuras do moleque loiro passaram no teste com louvor, e os DVDs da coleção estão em altíssima rotação na TV aqui de casa.
Jonny Quest foi um estrondoso sucesso dos estúdios Hanna-Barbera. O quarto, para ser mais exato. Antes dele, Os Flintstones, Os Jetsons e Manda-Chuva ganharam o público televisivo. E é fundamental entendermos que estas séries foram criadas exclusivamente para a televisão.
Até o surgimento do aparelho de TV, desenhos animados eram produzidos para as salas de cinema. Eram filmes curtos – geralmente com 7 minutos de duração –, exibidos antes da atração principal. Os orçamentos eram polpudos. Daí que as animações eram primorosas e, portanto, não precisavam de muitos diálogos. Basta lembrar os curtas de Walt Disney, os Looney Toones (a Turma do Pernalonga, da Warner) e os primeiros Tom & Jerry – criados por não outros que William Hanna e Joseph Barbera.
Quando o mercado de animação miou para o cinema, produzir direto para a televisão parecia inviável. A verba disponível era muito inferior. E os programas exigiam duração maior que os tais 7 minutos. Foi aí que a dupla H-B teve a ideia de um milhão de dólares: focar suas séries não na animação em si, mas nos roteiros e personagens.
Descobrir em quais confusões Fred Flintstone iria se meter era o que fazia a criançada ficar grudada diante da TV por meia-hora. Dava até para ignorar cenários e ciclos repetidos à exaustão. Em uma corrida com seu carro, Fred e Barney passavam pelo mesmo coqueiro um milhão de vezes. No episódio seguinte, lá estava o maldito coqueiro de novo. Não fosse a inventividade das tramas e o carisma dos personagens, seria praticamente impossível segurar o expectador apenas com a “qualidade” oferecida pela animação propriamente dita.
Jonny Quest nasce neste panorama e dentro destas mesmas limitações. Mas deixa tudo de cabeça para o ar. Inovação foi a palavra-chave para a série, que estreou em 18 de setembro de 1964, na rede ABC. Tudo graças ao talento de seu criador: Doug Wildey – que, a propósito, nunca foi devidamente creditado. Coisas da indústria do entretenimento...
Antes de entrar para o mercado da animação, Doug Wildey trabalhou como quadrinista. Fez uns gibis de caubói com Stan Lee, nos anos 50, antes da Marvel se tornar a Marvel. Desenhista de mão cheia, era um herdeiro direto do lendário Milton Caniff, com o qual trabalhou por um breve período. Foram suas HQs que o fizeram ser reconhecido na Hanna-Barbera, quando visitou o estúdio oferecendo serviços de storyboard e direção de arte. Daí para Jonny Quest, foi um pulo.
Pediram a Wildey que apresentasse uma proposta de série. No dia seguinte, o artista apareceu com a espinha dorsal de Jonny Quest totalmente desenvolvida. Não se parecia com nada que a Hanna-Barbera – ou qualquer outro estúdio – estava produzindo. Sorte a nossa.
Para começo de conversa, o estilo cartunizado – tão comum às animações da época – cedeu lugar a uma abordagem mais realista. Cenários e personagens transpiravam verossimilhança no traço de Wildey. Seu domínio de anatomia, arquitetura, luz e sombra trouxeram à série uma distinção visual até então inaudita.
Jonny Quest é um garoto de 11 anos de idade, filho do viúvo Dr. Benton Quest – uma das mentes científicas mais brilhantes do planeta. Ao lado do guarda- costas Roger “Race” Bannon e do também adolescente indiano Hadji, vivem aventuras ao redor do globo, sempre em paragens distantes, bem ao estilo das tiras de jornal criadas por Milton Caniff.
China, Índia, África, Egito, Polo Norte, Mar dos Sargaços, Floresta Amazônica... Todo país ou região que fosse “exótico” aos olhos do senso comum do período se tornava palco para os perigos enfrentados pelo grupo – que contava ainda com o irritante cãozinho Bandit. Sobre o animal de estimação, Doug Wildey pretendia que fosse menos convencional, como um macaco. Os patrões não deixaram. E ainda colocaram Dick Bickenbach, um animador de estilo mais cartunesco, para criar seu visual.
Quando criança, assistir a um episódio de Jonny Quest era adentrar um universo de aventuras espetaculares e absolutamente críveis. Rever os episódios ao lado de minha filha é uma experiência e tanto. Principalmente porque equivale, em certa medida, a retornar ao Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Preconceito aos borbotões. Melhor discutir do que evitar.
A violência em Jonny Quest é inimaginável nos dias atuais. Tiro, bomba e facada pra todo lado. Mesmo pra cima das crianças. Jonny e Hadji, porém, não se fazem de rogados. Sempre que necessário, trocam chumbo com os vilões. E vez por outra, meio que sem querer querendo, acabam conduzindo alguns para a terra dos pés juntos. Aliás, morte e assassinato é o que não falta na série – ao contrário da rara presença feminina.
O conceito de vilania também foge dos parâmetros contemporâneos. Os inimigos são sempre a alteridade, o outro, o diferente, o exótico. O principal nêmesis do Dr. Quest é Dr. Zin, não por acaso um oriental que almeja dominar o mundo.
No episódio “Ao Soar dos Tambores”, sobra até pra gente. Dr. Quest e sua equipe são convocados à Floresta Amazônica para resgatar um colega cientista raptado pela perversa tribo Po-Ho. O doutor é também sequestrado, restando a Roger Bannon se passar por um deus que atemoriza os indígenas. Entre outras coisas, o guarda-costas se refere aos Po-Hos como “selvagens ignorantes” e “macacos pagãos”.
Mais sintomático é o episódio de estreia, “O Mistério dos Homens-Lagartos”. Em um dado momento, um náufrago resgatado balbucia palavras incompreensíveis. Com dificuldade, alguém identifica a insólita língua: “É português!” Sendo que, no desenho, o personagem fala um espanhol enrolado que é tudo, menos português. Sinal que, em 1964, éramos tidos como exóticos, primitivos, atrasados.
Não deixa de ser curioso notar que 1964 também foi o ano do Golpe Militar no Brasil. Como sempre, a justificativa foi o combate à “ameaça comunista” – inimigo tão comum ao Dr. Quest. Levamos muitas décadas para nos tornar um país respeitável no panorama internacional – principalmente aos olhos do mundo branco caucasiano. Bolsonaro e sua equipe de aberrações têm trabalhado duro para reverter isso. Com bastante sucesso, inclusive. Resta saber o que pode nascer de positivo de todo este retrocesso. Uma nova temporada de Jonny Quest?
P.S.: Me recuso, terminantemente, a fazer qualquer citação àquela bandinha brasileira mequetrefe.