Entre os mais influentes da web em Goiás pelo 14º ano seguido. Confira nossos prêmios.

Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351

Sobre o Colunista

Othaniel Alcântara
Othaniel Alcântara

Othaniel Alcântara é professor de Música da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador integrado ao CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), vinculado à Universidade Nova de Lisboa. othaniel.alcantara@gmail.com / othaniel.alcantara@gmail.com

Música clássica

Flausino Valle: o Paganini brasileiro

Entrevista com o violinista Leonardo Feichas | 20.08.19 - 17:58
No último mês de julho, aconteceu o III Encontro de Cordas Flausino Valle (III ECFV), no Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul. Este evento itinerante foi idealizado pelos professores Leonardo Vieira Feichas (Universidade Federal do Acre) e Liu Man Ying (Universidade Federal do Ceará). O título desse Encontro é uma merecida homenagem ao violinista, compositor, poeta e advogado Flausino Rodrigues Valle (1894-1954), nascido na cidade de Barbacena, interior de Minas Gerais. Esse virtuose mudou-se para Belo Horizonte em 1912. Na capital mineira, destacou-se como performer e fez carreira como docente no Conservatório, hoje Escola de Música, uma das Unidades da Universidade Federal de Minas Gerais. Flausino Valle dedicou-se, basicamente, a compor obras para violino solo. Do seu legado, destaca-se o conjunto de 26 prelúdios característicos e concertantes para violino só, elaborado entre 1922 e 1954, ano em que morreu.

O entrevistado desta coluna é o também mineiro Leonardo Feichas que, atualmente, é professor na Universidade Federal do Acre. Léo, para os amigos, graduou-se no Bacharelado em Música/Violino na Unicamp. Nesta Instituição, concluiu o Mestrado em Práticas Interpretativas. Em 2016, lançou o livro Da Porteira da Fazenda ao Batuque Mineiro: o violino brasileiro de Flausino Valle, com um tour de recitais e conferências em seis capitais brasileiras. 
 
Tive a honra de conhecer pessoalmente esse violinista no Curso de Doutorado em Musicologia oferecido pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no segundo semestre de 2017. Também na capital lusitana, mais precisamente no Museu Nacional da Música, pude assistir a um de seus recitais dedicados a Flausino Valle, recitais estes realizados em várias cidades da Europa.


Foto 01: Flausino Valle (1894-1954)
Foto 02: Leonardo Feichas com o violino de Flausino Valle
 

A presente entrevista, ocorrida via e-mail, foi finalizada em 17/08/2019.

Othaniel Alcântara: O legado de Flausino Valle para a música brasileira foi o tema de sua pesquisa no Mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e continua sendo seu objeto de investigação, desta vez, para a elaboração de sua tese de Doutorado. A partir de quando você se interessou por esse personagem?
 
Leonardo Feichas: Meu interesse por Flausino Valle surgiu em 2006. Naquela ocasião, eu procurava um tema para trabalhar na Iniciação Científica, no Bacharelado em Violino da Unicamp quando uma amiga me mostrou o LP do polonês Jerzy Milewski tocando 21 dos 26 Prelúdios de Flausino Valle. Eu fiquei muito impressionado com aquelas obras altamente virtuosísticas, mas que, ao mesmo tempo, apresentavam uma linguagem musical acessível. Desde então, esse compositor tornou-se meu principal objeto de estudo. No mestrado, realizando considerações teóricas como análises harmônicas fraseológicas, biográficas e, agora, no doutorado, dando um enfoque maior ao processo de construção da minha interpretação, estimulando discussões acerca de diversos caminhos interpretativos possíveis. 
 
Othaniel Alcântara: Eu tenho esse LP gravado pelo violinista polonês naturalizado brasileiro, Jerzy Milewski (1946-2017). Penso ser esse registro fonográfico do ano 1984. Trata-se da primeira gravação desta obra. Depois, outros violinistas brasileiros também gravaram uma ou mais das miniaturas pertencentes aos 26 prelúdios característicos e concertantes para violino só. O LP mencionado contém, curiosamente, além das 21 faixas tocadas por Milewski, outras duas originalmente interpretadas, em 1923, pelo próprio Flausino Valle. Mas, em todo caso, parece que a repercussão positiva da obra do compositor tupiniquim no exterior veio antes mesmo do reconhecimento entre os violinistas brasileiros. Qual é o prelúdio mais tocado? E quem foi o primeiro violinista internacional a incorporar peças do compositor brasileiro em suas apresentações?
 
Leonardo Feichas: O Prelúdio XV - Ao Pé da Fogueira é a peça de maior destaque do conjunto de 26 prelúdios característicos e concertantes para violino só. Quando cheguei a Portugal, em 2017, nas aulas de violino com o Professor Dr. Tiago Neto (PT), na Escola Superior de Música de Lisboa (ESML), ele logo mencionou que já havia tocado essa peça no seu doutorado em violino, na Inglaterra. Mas ele mencionou, também, que desconhecia a existência das outras 25 peças. Não se sabe exatamente como Ao Pé da Fogueira chegou às mãos do renomado violinista lituano Jascha Heifetz (1901-1987), na primeira metade do século passado. Fato é que Heifetz esteve em Belo Horizonte, teve esse contato com Valle e com o referido Prelúdio. Na Europa, não só gravou, mas também escreveu um acompanhamento de piano para a miniatura Ao Pé da Fogueira. A partir dessa gravação, outros violinistas internacionalmente renomados também incorporaram tal obra ao seu repertório, como Itzhak Perlman, Zino Francescatti, Isaac Stern, entre outros. Meu desafio é colaborar na divulgação dos outros 25 prelúdios daquele trabalho, bem como de outras obras também muito interessantes do compositor. 


Capa do LP de Jerzy Milewski (1946-2017)

 

Othaniel Alcântara: Quem criou a alcunha de “Paganini Brasileiro” para Flausino Valle?
 
Leonardo Feichas: Jerzy Milewski, além do já mencionado LP, organizou um livro, em 1985, com o mesmo título: Flausino Valle: O Paganini Brasileiro. Nesta obra, o autor relata que "Flausino Valle tinha sua maneira própria de tocar. Punha toda alma na interpretação. Era prodígio em movimentos exagerados e o sangue lhe subia ao rosto. Parecia um demônio. Os dedos voavam sobre as cordas e brandiam o arco como um possesso, nos trechos mais calorosos. Nas passagens românticas baloiçava o corpo e inclinava a cabeça sobre o instrumento como um cigano". Essa descrição remete ao perfil atribuído ao lendário Niccolò Paganini (1782-1840). Porém, a comparação com o violinista italiano do século XIX foi feita, anteriormente, por Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e refere-se, mais especificamente, ao contexto composicional, já que Flausino sente seus Prelúdios fortemente inspirados nos famosos 24 Caprichos de Paganini, compostos no início dos anos Oitocentos e publicados em 1820. Então, de fato, quem criou essa alcunha foi Villa-Lobos.
 
Othaniel Alcântara: Flausino Valle começou a escrever os 26 Prelúdios em 1922. Trata-se de um ano emblemático para a cultura brasileira. Sabemos que Villa-Lobos, inclusive, foi o grande expoente da área musical na Semana da Arte Moderna, bem como da primeira geração de compositores modernistas. Seguindo essa linha de raciocínio, existe alguma relação entre a linguagem empregada por Flausino nos 26 Prelúdios e o movimento modernista? Esta obra pode ser considerada nacionalista?
 
Leonardo Feichas: Embora o Flausino tenha saído poucas vezes de Minas Gerais, suas anotações no diário pessoal mostram um amplo conhecimento de cultura musical e do que estava acontecendo no mundo e no Brasil. Ainda não tenho como afirmar o quanto Valle foi influenciado pela Semana de 22, ou mesmo por Villa-Lobos, mas há indícios dessa influência. O próprio contato de Valle com Villa-Lobos e as dedicatórias dos Prelúdios a algumas personalidades que participaram da Semana da Arte Moderna podem assinalar tal influência. Há pesquisadores que enquadraram Valle como um Nacionalista, mas, para eu me posicionar precisamente, ainda preciso continuar a analisar alguns documentos mais recentes aos quais tive acesso. Acredito que, em breve, eu terei um posicionamento mais claro sobre isso.
 
Othaniel Alcântara: Você falou de um diário pessoal de Flausino Valle. Você me disse certa vez, em Lisboa, que teve acesso ao acervo particular da família deste artista. Como se deu a sua aproximação com os descendentes desse violinista? Você continua tendo contato com eles?
 
Leonardo Feichas: Meu primeiro contato com a família Valle ocorreu em 2008, na cidade de São Paulo. Naquele ano, conheci a Senhora Helena Valle, a jovem Yara Valle e o Senhor Guatemoc Valle, respectivamente, nora, neta e filho do Flausino. À época, eu estava na graduação e investigava a vida e obra do violinista-compositor em uma Iniciação Científica - trabalho que introduz o aluno de graduação na pesquisa. A partir daí, mantive um ótimo contato com a família Valle e, hoje, temos uma relação de amizade. Surpreendentemente, em 2017, eles me cederam o violino do Flausino, que estava guardado desde 1954. Em 2019, após fazer alguns reparos necessários neste instrumento, tive o privilégio de usá-lo no Recital de estreia no III Encontro de Cordas Flausino Valle, na Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul. Tenho procurado retribuir toda a confiança depositada em mim pela família, produzindo e honrando o nome do Flausino Valle no Brasil e no exterior. 


Yara Valle, Leonardo Feichas e Guatemoc Valle


Othaniel Alcântara: Tanto a sua pesquisa como as três primeiras edições do Encontro de Cordas Flausino Valle prestam uma justa homenagem a esse artista. Em ambos os casos existe, obviamente, a abordagem de outros aspectos além do biográfico. Na primeira pergunta você mencionou que vem trabalhando os Prelúdios sob o viés da construção de parâmetros interpretativos. A programação do III ECFV (2019) também contemplou essa perspectiva?
 
Leonardo Feichas: O Encontro de Cordas Flausino Valle foi pensado por mim e pela professora Liu Man Ying como uma homenagem ao violinista. Mas, além disso, decidimos direcionar nossas atenções para alguns dos aspectos que trabalhamos em nossas rotinas, na condição de professores e artistas, ou seja, na performance e no ensino coletivo de cordas/pedagogia das cordas friccionadas. Nesta edição do Encontro, eu pude fazer um recital com alguns dos Prelúdios do Flausino, principalmente aqueles com os quais eu ainda não tinha muita familiaridade. Na realidade, foi um laboratório de experiências para mim e, dessa maneira, eu associo as duas coisas: divulgo a minha investigação e mostro a música do compositor neste Evento dedicado a ele. É importante ressaltar que neste ano, tivemos uma novidade. Inserimos na programação a I Conferência Nacional Flausino Valle, um evento com características mais acadêmicas, com mesas-redondas, palestras, apresentação de pôsteres, além de espaço para a comunicação oral de trabalhos previamente submetidos à coordenação do Evento. E, claro, tudo voltado para a reflexão do ensino coletivo e pedagogia das cordas friccionadas com arco. Assim, com os dois eventos ligados, oferecemos aos alunos uma programação que reúne vivências artística e teórico-reflexivas.


Logo dos Eventos dedicados a Flausino Valle
 

Othaniel Alcântara: Para ficar bem claro, em sua opinião, os 26 prelúdios característicos e concertantes para violino só foram escritos, sobretudo, com objetivos pedagógicos? 
Leonardo Feichas: Sim. O Flausino tem intenções pedagógicas com esses Prelúdios. Em alguns deles nota-se isso mais claramente, pois eles apresentam características de estudos técnicos, embora cada um deles esteja focado em uma determinada técnica. Porém, após conhecer os Prelúdios, pude observar que não se trata de um repertório para iniciantes, mas sim para ser interpretado e executado por alunos de nível intermediário e avançado, dentro do processo de aprendizagem do violino. 
 
Othaniel Alcântara: Já foi mencionado nesta entrevista que, no atual estágio, sua pesquisa tem um enfoque maior no processo de construção de caminhos interpretativos para os 26 Prelúdios de Flausino Valle. Além dos aspectos mais técnicos da idiomática violinística, o que você destacaria nesta obra?
Leonardo Feichas: Um aspecto muito interessante são os efeitos imitativos na obra. Nos 26 prelúdios, é destacada a maneira como Flausino Valle combina as técnicas do instrumento com o objetivo de gerar sons que imitam situações do cotidiano de Minas Gerais do começo do século XX. A título de exemplo, posso citar sonoridades características do carro de boi, da porteira da fazenda, da batucada, da viola caipira e dos pássaros, entre outras. 
 
Othaniel Alcântara: Finalizando, penso ser pertinente lembrar, principalmente para os nossos jovens violinistas, que Flausino Valle foi contemporâneo de outro importante violinista-compositor. Talvez os dois tenham sido os primeiros compositores a escrever para violino solo no Brasil. Peço licença ao entrevistado - que é também meu amigo - para fazer essa breve homenagem a Marcos Raggio de Salles (1885-1965), pai da minha ex-professora de violino Marena Isdebski Salles (1938).
 
Obrigado pela entrevista.
-------
No vídeo abaixo, Leonardo Feichas fala sobre seu objeto de estudo: a obra de Flausino Valle.
 
 

O livro Da Porteira da Fazenda ao Batuque Mineiro: o violino brasileiro de Flausino Valle, lançado por Leonardo Feichas, em 2016:


Capa do Livro de Leonardo Feichas
 

Comentários

Clique aqui para comentar
Nome: E-mail: Mensagem:

Sobre o Colunista

Othaniel Alcântara
Othaniel Alcântara

Othaniel Alcântara é professor de Música da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador integrado ao CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), vinculado à Universidade Nova de Lisboa. othaniel.alcantara@gmail.com / othaniel.alcantara@gmail.com

Envie sua sugestão de pauta, foto e vídeo
62 9.9850 - 6351