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Fabrícia  Hamu
Fabrícia Hamu

Jornalista formada pela UFG e mestre em Relações Internacionais pela Université de Liège (Bélgica) / fabriciahamu@hotmail.com

Inspiração

As flores e as dores

Por Fabrícia Hamu | 02.07.12 - 11:54 As flores e as dores Ipê rosa florido (Foto: Mauro Júnio)
Viver no Cerrado durante a estiagem nem sempre é fácil, mas tem lá suas vantagens. Uma delas é poder apreciar o espetáculo das quaresmeiras e ipês floridos, que enchem o campo e as ruas das cidades de cor e de beleza. Em Goiânia é fácil se deparar com uma imagem assim, basta andar um pouquinho.
Quinta-feira passada eu estava indo para o escritório, quando dei de cara com uma imensa quaresmeira, repleta de flores lilases. Ficamos, então, eu e um catador de papel apreciando a árvore. De repente, ele me pergunta se eu não tinha uma caneta usada para lhe dar. Disse que não e quis saber por que ele queria o tal objeto.

“É que eu adoro desenhar, dona. Sempre que vejo uma árvore bonita assim, abro meu caderno e faço um desenho. O problema é que não tenho giz de cera, só esse lápis velho. Queria ao menos uma caneta usada, mesmo que estivesse com a tinta fraca, só pra dar uma corzinha nos traços dessa quaresmeira”, me explicou.

Ele esticou-se sobre o enorme carrinho de ferro de coleta de papéis que empurrava, e tirou lá de dentro um caderno encardido e bem gasto. Com cuidado, foi me mostrando, folha a folha, os singelos desenhos que fazia, a cada vez que passava por uma rua da capital e via uma árvore que lhe tirava o fôlego.
O homem em questão é Seu Celestino Gomes. Piauiense, veio para Goiânia há um ano, com os quatro filhos pequenos, porque a mulher morreu no parto do caçula e ele não tinha como trabalhar e cuidar da família ao mesmo tempo. Aqui ele divide um barracão com a irmã e dois sobrinhos, no Bairro Floresta.

Por falta de formação profissional, Seu Celestino conta que o único emprego que conseguiu foi de catador de papel. Mas não se abate e ainda dá graças a Deus. “Dona, o que importa é ganhar a vida honestamente. Se a tem saúde e ganha o pão com dignidade, para todo o resto dá-se um jeito”, ensinou.
Pedi a Seu Celestino que aguardasse um minutinho e corri na papelaria perto do local onde estávamos. Comprei uma caixa de giz de cera, canetinhas coloridas e um caderno específico para desenhos. Quando entreguei tudo a ele, vi aquele homem enorme transformar-se num menino. Nunca um presente meu fez alguém tão feliz.  

“Dona, não carecia disso, não! Tô até envergonhado... Mas não vou negar que fiquei muito feliz, principalmente por causa desses dois”, me disse, apontando para o giz de cera amarelo e para o rosa. “Essas são as cores dos ipês. Agora vou poder desenhá-los como eles são!”, vibrou.
Quando trabalhei na Agência Municipal do Meio Ambiente (Amma), um agrônomo me explicou que as flores do ipê são, na verdade, uma resposta ao enorme estresse ao qual a planta é submetida, em função da falta de água. Diante da seca, ele livra-se das folhas e floresce, para produzir as sementes e perpetuar a espécie.

Gente como Seu Celestino se parece com os ipês. Diante de toda a aridez da vida, que pode lhes tomar pessoas queridas, dinheiro, conforto e até mesmo a paz de espírito, respondem com beleza e delicadeza. Transmutam os espinhos e as ervas daninhas em flores frescas. Desabrocham para provar que não se rendem.

Fácil não é. Há que se ter coragem para abrir o peito e deixar o novo entrar, quando o velho já nos feriu em demasia. Há que se ter disposição para esfregar os olhos cansados de ver, e transformá-los em olhos capazes de enxergar. Há que se ter desapego, pois quando o vento forte sopra, leva embora tudo o que floriu.

Acontece que não florescer é negar o ciclo da vida. O tempo da semente é necessário. Diante da dor e da fragilidade, o recolhimento e o silêncio podem ser remédios para ajudar a cicatrizar a ferida. Mas o grão não pode permanecer para sempre embotado em si mesmo. A árvore quer surgir. Quer subir. Com folhas, flores e novas sementes. Floresce quem é podado no seu amor, quem semeou em terreno estéril, mas nem por isso desiste de um buscar solo fértil, onde sua semente será lançada e dará frutos. Floresce quem teve seus planos profissionais ceifados e, ainda assim, corre atrás de novas alternativas para construir uma carreira digna e criativa.

Floresce quem perdeu seu patrimônio material e hoje busca o cultivo de bens realmente duradouros, reforçando suas raízes. Floresce quem adoeceu e luta bravamente pela vida, porque os vendavais podem até desfolhar a árvore, mas não atingem a seiva que a mantém de pé.
Floresce quem perdeu um ente querido e consegue transformar a saudade em estímulo para viver com mais sensibilidade e menos cinismo; para despir-se do que é supérfluo e valorizar o essencial. Quem superou um vício e aprendeu a viver por só hoje, fixando-se no presente e abandonando a tristeza do passado e a angústia do futuro.

Floresce quem não desiste de si mesmo, quem compreende que a vida é cíclica e que é preciso deixar fluir. Seu Celestino está aí para provar que é possível, apesar dos pesares. Você pode até não acreditar, leitor, mas eu vejo flores em você.

Comentários

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  • 13.06.2013 20:21 Ana Paula Fernandes Villac

    Que texto MA-RA-VI-LHO-SO!!!!!

  • 05.06.2013 17:28 Geusa

    PARABÉNS,além de escrever com maestria você tem sensibilidade e isto é o que conta para mim.

  • 05.06.2013 14:53 Andyra Menezes

    Mais uma vez você me emocionou... Deus abençoe para que continue escrevendo coisas tão lindas e que tocam tanto o coração.

  • 06.07.2012 10:29 Rodrigo Augusto

    Emocionante! parabéns, professora hamu !.

  • 05.07.2012 03:18 jordana frauzino lima

    Lindo texto, me emocionei muito! você transformou seus olhos em capazes de "enxergar" e não somente "ver"! .

  • 05.07.2012 01:23 Frederico Brunes

    Vejo flores em você também. Adorei ler o seu artigo que nos dá alternativas para construir nossa história.

  • 05.07.2012 11:32 Vinícius Leonardo

    Parabéns fabrícia pela sensibilidade e coerência! .

  • 05.07.2012 10:20 Carol Magalhães

    Emocionante!!!! .

  • 05.07.2012 10:14 João Damasio

    Olhos sob lágrimas, agora. Obrigado por este relato, fabrícia.

  • 03.07.2012 09:46 Genilda

    Fabrícia, quando observadora atenta da cidade, você cartografa afetos, ajuda a iluminar a cidade em que vivemos. Que coisa boa! celebrar a vida no cultivar ultrapassa a ansiedade da busca diária por vontades que à vezes nem são nossas. Muito bonito seu texto, desarrumou minha rotina e deixou por aqui um perfume bom de quaresmeira em flor.

  • 02.07.2012 08:50 Débora

    Parabéns, fabrícia! muito lindo seu texto. Chorei horrores.

  • 02.07.2012 06:54 Valéria

    Que bom contemplar as dádivas que recebemos. apesar do sol inclemente e toda aridez, contemplar! mesmo sem tempo, deixar-se levar por coisas singelas e concomitantemente tão belas, disponíveis aos olhos. parabéns pelo lindo texto!!!.

  • 02.07.2012 05:47 jaisa

    Nossa que texto lindo. Reflexão para quem se sente abatido e desanimado. Como sempre você demonstrou sensibilidade e delicadeza fabrícia beijos.

  • 02.07.2012 04:22 Waldecy Adôrno

    Desde que tive a oportunidade de conhecer seu trabalho, e tenho acesso a ele, todos seus textos me emocionam. Admiro muito que um encontro por mais simples que se possa parecer (o que não é) brote essa sensibilidade impar. Parabéns por mais esse belo texto!!! e vamos florescendo, com a vida que nos é permitida. Abs.

  • 02.07.2012 02:39 maria sena

    Fabrícia, adoro os seus texto. Me emocino muito, de várias maneiras , cada vez que os leio e espero ansiosa pelo próximo.

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