Platão conta que Thoth (ou Theuth), um deus que vivia no Egito, inventou os números e a astronomia. Certo dia, Thoth, entusiasmado com uma de suas criações, a escrita, falava a Thamus, soberano do Egito, sobre os benefícios que ela traria ao povo:
- Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória!
Cético, Thamus responde:
- Oh, Thot, mestre incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão para os outros! Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer. Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras (...) Quanto à transmissão do ensino, transmite aos teus alunos não a sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação! Hão de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias e tornar-se-ão, por consequência, sábios imaginários, em vez de sábios verdadeiros.
Tal diálogo é relatado pelo filósofo grego na obra Fedro, escrita há mais ou menos 2400 anos. É fácil perceber a atualidade do texto quando observamos as discussões que ocorrem neste exato momento em todo o mundo em relação às inovações supersônicas da tecnologia contemporânea.
Estudiosos, pensadores e pesquisadores das mais variadas áreas do conhecimento buscam provar que a internet, especialmente buscadores como o Google, podem deteriorar a memória das pessoas, assim como os gregos suspeitavam da escrita.
Afinal, já que tudo o que precisamos está na nuvem computacional, será que precisamos armazenar informações no nosso Hard Disk feito de neurônios? E, no caso da subutilização deste HD biológico, não o estaríamos transformando, para seguir na metáfora, em memória RAM?
Um recente trabalho publicado na prestigiada revista Science tenta dar algumas pistas sobre o que ocorre com a cabeça das pessoas em uma sociedade conectada. Em resumo, o estudo “Os efeitos do Google na memória: as consequências cognitivas de ter a informação na ponta dos dedos” revela que, com a facilidade de obtenção de informações, o cérebro simplesmente se despreocupa em retê-las.
Os pesquisadores apontam uma “simbiose” entre seres-humanos e computadores. “Estamos nos tornando dependentes deles no mesmo grau em que dependemos de todo o conhecimento que adquirimos com nossos amigos e colegas de trabalho – e perdemos este conhecimento se não temos acesso a eles”, diz o texto publicado na Science.
No livro “Como a geração Net está mudando o mundo”, do pesquisador canadense Don Tapscott, há um olhar interessante sobre o impacto da internet na nossa forma de ser. Tapscott concluiu que “nos tornamos muito mais digitais” à medida em que equipamentos como os smartphones se popularizam. “A geração atual assiste menos TV e faz outras coisas enquanto assiste”, diz o pesquisador. O resultado é que os n-geners, como ele chama esta geração, é multitarefa.
Essa multiplicidade de atividades, contudo, não é vista com bons olhos por muitos estudiosos do comportamento humanos. Para alguns deles, os jovens de hoje são incapazes de se concentrar e de aprofundar os conhecimentos. Seriam eles vítimas do alto volume de informação sem a devida educação, para voltarmos à preocupação central do Rei Thamus: haveria o afloramento de uma geração de “sábios imaginários”.
Só será possível comprovar as verdadeiras consequências da hiperconectividade com o passar dos anos. Até agora, o que existem são previsões baseadas em fenômenos ainda muito recentes e em constante mutação. Mas, de uma coisa, já temos certeza: a previsão do monarca egípcio relatada por Platão não se concretizou; ao contrário, a escrita só contribuiu para o aprofundamento e disseminação do conhecimento.
Talvez o Google não tenha a mesma capacidade, mas as previsões catastróficas parecem, como diz a canção, coisa de quem ama o passado e não vê que o novo sempre vem.