Conhecer a história é conhecermos a nós mesmos. Afinal, como disse o crítico Harold Bloom, "somos pensados e vividos por forças maiores que nós" - a história, a cultura, a sociedade, o inconsciente.
No Rio de Janeiro, visitei, neste final de semana que passou, o Museu da República. Diante da cama em que Getúlio Vargas se matou com um tiro no peito, inevitável pensar sobre meu avô e meu pai.
Henrique, meu avô paterno, foi um homem nascido ainda no século 19, apenas uma década após nossa tardia abolição da escravatura. Paulista até a alma, era neto de um barão do café. Seu pai torrou, entretanto, em cassinos na Europa, a fortuna e as terras herdadas, morreu cedo e deixou a empobrecida esposa, minha bisavó Francisca, sozinha para cuidar de nove filhos. Henrique foi professor escolar e político - antigetulista e, claro, grande admirador do velho Ademar de Barros.
Lutou por São Paulo na Revolução Constitucionalista de 1932. Acreditava piamente que as denúncias de corrupção contra Ademar de Barros, esse pai do "rouba, mas faz", eram intriga da oposição. Certo dia, como prefeito da cidade, compareceu a uma cerimônia na capital e ouviu da boca do próprio, em tom de galhofa, que o canalha do contador lhe roubara o caixa dois da última campanha e fugira para o Paraguai. Desiludido, teria então decidido abandonar a política - um homem ao mesmo tempo rígido e um tanto ingênuo em seu idealismo, talvez como meu pai, talvez como eu mesmo.
Não relato isso com sarcasmo ou qualquer ironia, mas como quem tenta dar substância humana a um avô que conheceu apenas pelas palavras do próprio pai, e por relatos dos tios e primos mais velhos que chegaram a vê-lo antes da morte precoce aos 66 anos - um avô que é uma dessas forças que me atravessam.
Henrique foi um homem do seu tempo, que formou seu caráter numa república que nascia e num meio social marcado por forte idealismo político e conservadorismo. Ele foi o homem que pôde ser, feito de contradições que ajudaram a moldar meu pai, que chegam, de diferentes maneiras, até mim, e que estão sendo passadas, em alguma medida, para meus filhos.
Antes de Ademar de Barros, seu grande ídolo político fora Washington Luís - prefeito da cidade de São Paulo, governador do estado e presidente derrubado por Getúlio Vargas em 1930. Tal era a fidelidade do meu avô à política paulista que, em 1934, batizou seu primeiro filho homem em homenagem a ele: Washington Luiz Rodrigues Novaes.
Mas a história e a psicanálise, que explica as ações humanas dentro dela, são fartas em ironias, e nós não escapamos ao poder das duas.
A construção de Goiânia foi um gesto político magistral do interventor Pedro Ludovico Teixeira. Líder da Revolução de 1930 em Goiás, com a mudança da capital, de um só golpe, isolou geograficamente, na cidade de Goiás, as oligarquias que havia derrotado, e materializou, na nova cidade, a ideia de um renovado espírito do tempo trazido por Getúlio Vargas e pelo 24 de outubro de 1930.
Goiânia foi criada como símbolo de um Brasil em transformação e como visão do futuro desejado para o país: urbano, moderno e caminhando para ocupar seu vasto território na Marcha para Oeste, da qual a cidade seria ponta de lança. Encarnava, portanto, a antítese de tudo o que meu avô valorizava e tinha como seu.
Em 1982, meu pai, carregando seu nome de Washington Luiz, decidiu mudar-se para essa cidade.
É possível não pensar nesse movimento como um golpe edipiano contra meu avô? Como uma vingança silenciosa contra as arbitrariedades e o rigor do velho Henrique? Escolher para morar a cidade símbolo do varguismo visceralmente odiado por ele? Viver na cidade propositalmente fundada, três anos depois, no mesmo 24 de outubro em que o país testemunhara a derrubada do presidente Washington Luís que dava nome a meu pai?
Será que, no fundo, em seu inconsciente, meu pai não respirava, nos ares de Goiânia ainda impregnados pelo espírito da Revolução, um sentimento de libertação do ar sufocante de sua infância e juventude no interior de São Paulo?
Ele mesmo gostava muito de relembrar a história de seu amigo, o grande arquiteto Sérgio Bernardes, cujo filho de mesmo nome - o já falecido cineasta Sérgio Bernardes Filho - lhe dava grande trabalho na juventude. Um dia, exausto com a última loucura do rapaz, Bernardes desabafara: "Eu entendo que a missão freudiana do filho seja matar o pai, mas o que me irrita é a lentidão! Por que não põe logo uma bomba embaixo da minha cadeira?!"
Dito de forma mais elegante e afetuosa, a vida do meu pai foi, como a de todos nós, em larga medida, um esforço para descobrir o que fazer com sua herança - paterna, neste caso, mas que também carrega consigo infinitos fios da história humana de diferentes origens.
Antes desse gesto definitivo de se apaixonar por Goiânia, meu pai, para orgulho do velho Henrique, formara-se em Direito no Largo de São Francisco - onde Washington Luís e todos os presidentes da Primeira República, que meu avô tanto admirava, haviam se graduado. Poucos anos depois, nesse lento processo de causar desgostos a seu velho, abandonou a advocacia para ingressar na desprestigiada carreira de jornalista.
Deixou São Paulo, mudou-se para o Rio, divorciou-se, foi feliz como jornalista. Se não chegou a desbundar, andava cercado de hippies e nadou no caldo da contracultura dos anos 1960, em mais uma de suas afrontas ao conservadorismo do pai.
Como se não bastasse, num gesto final - aceno ou derradeira afronta? - decidiu morrer em um 24 de agosto, mesma data que Getúlio Vargas escolheu para se suicidar no Palácio do Catete. Haja psicanálise.