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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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O que resta do Grande Sertão?

| 12.09.23 - 07:47 O que resta do Grande Sertão? (Foto: WWF/A. Gambarini)

Comemoramos esta semana, no 11 de setembro, o Dia do Cerrado. O que dizer sobre o bioma que não seja lamentar de forma impotente sua destruição e denunciar a insanidade do projeto econômico que já fez desaparecer metade de sua vegetação original?
 
Talvez valha olhar para a savana mais biodiversa do planeta, que abriga um terço das espécies existentes no país e 5% da diversidade da vida na Terra, por meio das palavras daquele que é considerado um dos maiores romances da língua portuguesa e que tem o Cerrado como palco: o Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.
 
"Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá, num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre preta na Serra do Tatu - já ouviu o senhor gargaragem de onça? A garoa rebrilhante da dos-Confins, madrugada quando o céu embranquece - neblim que chamam de xererém. Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi Diadorim... A da-Raizama, onde até os pássaros calculam o giro da lua - se diz - e cangussú monstra pisa em volta. Lua de com ela se cunhar dinheiro. Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo." 
 
Os números do desmatamento no Cerrado, monitorados desde 2001 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - o INPE -, tiveram seu pico entre 2001 e 2004, quando derrubamos em média quase 28 mil km2 de vegetação nativa, ou um estado de Alagoas, por ano. A partir de 2005, esses números caem consistentemente até 2012, quando foram removidos quase 9 mil km2 de Cerrado. O desmatamento torna a crescer abruptamente em 2013, atingindo 13,4 mil km2, para então entrar em nova tendência de queda até 2018, quando começa novamente a subir, chegando a 10.688 km2 em 2022. 
 
 
Desmatamento anual no bioma Cerrado 
(Fonte: Prodes/INPE - Plataforma TerraBrasilis)
 
"Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas... Isto - no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá gêia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão - depois dali tem uma terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. Ventos de não deixar se formar orvalho... Um punhado quente de vento, passante entre duas palmas, de palmeira... Lembro, deslembro. Ou - o senhor vai - no soposo: de chuva-chuva. Vê um córrego com má passagem, ou um rio em turvação. No Buriti-Mirim, Angical, Extrema-de-Santa-Maria... Senhor caça? Tem lá mais perdiz do que no Chapadão das Vertentes... Caçar anta no Cabeça-de-Negro ou no Buriti-Comprido - aquelas que comem um capim diferente e roem cascas de muitas outras árvores: a carne de gostosa, diversêia. Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem."
 
Os dados de 2023 do Deter, o sistema do INPE que gera alertas de desmatamento e serve para orientar as ações de fiscalização, são preocupantes. Enquanto nos cinco primeiros meses do ano, na Amazônia, observou-se uma queda importante no desmatamento, no Cerrado, em direção contrária, as áreas convertidas estão aumentando assustadoramente. Foram 6.359 km² de derrubadas entre agosto de 2022 e julho deste ano, o pior resultado desde que o sistema foi implantado em 2017.
 
“Assim pois foi, como conforme, que avançamos rompidas marchas, duramente no varo das chapadas, calcando o sapê brabão ou areias de cor em cimento formadas, e cruzando somente com gado transeunte ou com algum boi sozinho caminhador. E como cada vereda, quando beirávamos, por seu resfriado, acenava para a gente um fino sossego sem notícia – todo buritizal e florestal: ramagem e amar em água. E que, com nosso cansaço, em seguir, sem eu nem saber, o roteiro de Deus nas serras dos Gerais”.
 
Dos 20 municípios campeões do desmatamento no Cerrado, entre janeiro e maio deste ano, ainda segundo os dados do Deter, apenas um não faz parte do chamado "Matopiba", essa grande região no encontro das divisas de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que é atualmente a principal fronteira econômica no bioma. 
 
Se, no início do século 21, Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso lideravam o ranking da devastação, já em meados da década de 2000, a fronteira avançava ferozmente para o norte, com os estados do Tocantins e Maranhão assumindo a frente dos números, onde permanecem até hoje. A velocidade desse avanço da atividade agropecuária foi tão intensa nesses últimos 20 anos que o Tocantins já é hoje o estado com maior fatia da área total convertida de vegetação nativa no Cerrado: 48.293 km2 ou 16,08% do total.
 
Goiás, até por falta de novas áreas úteis para o agronegócio, está hoje distante dos números assombrosos do início do século, quando chegamos a desmatar 6.670 km2 em 2001 - maior área registrada em um ano para um mesmo estado desde que o INPE iniciou seus registros. Ainda assim, seguimos consistentemente desmatando, e os números vêm crescendo, com um aumento de 47,3% entre 2019 e 2022, passando de 668,24 km2 para 984,79 km2. 
 
“Ao pé das chapadas, no entremeio do se encher de rios tantos, ou aí subindo e descendo solaus, recebendo o empapo da chuva, a gente se fervia… O chapadão é sozinho – a largueza. O sol. O deu de não se querer ver. O verde carteado do gramal. As duras areias. As arvorezinhas ruim-inhas de minhas. A diversos que passavam abandoados de araras – araral – conversantes. Aviavam vir os periquitos, com o canto-clim. Ali chovia? Chove – e não encharca poça, não rola enxurrada, não produz lama: a chuva inteira se soverte em minuto terra a fundo, feito um azeitezinho entrador. O chão endurecia cedo, esse rareamento de águas. O fevereiro feito. Chapadão, chapadão, chapadão”.
 
Não é claro o quanto desse desmatamento é feito de forma ilegal. Ainda assim, mesmo que sua maior parte aconteça dentro da lei, faz sentido seguirmos abrindo novas áreas para a atividade agropecuária? Estudos mostram que poderíamos expandir a produção em áreas já abertas a custos menores investindo sobretudo na recuperação de pastagens degradadas. E dados do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás, o Lapig, mostravam que, em 2018, quase 40% das pastagens no Cerrado apresentavam algum grau de degradação e portanto operavam a níveis baixos de produtividade.
 
Faz sentido continuar desmatando quando o mundo, diante da urgência trazida pelas mudanças climáticas, volta seus olhos para o Brasil e seu papel fundamental na regulação do clima, e quando o próprio Governo Federal estabeleceu, de forma sensata, o compromisso de zerar o desmatamento até 2030?
 
"A chapada é para aqueles casais de antas, que toram trilhas largas no cerradão por aonde, e sem saber de ninguém assopram sua bruta força. Aqui e aqui, os tucanos senhoreantes, enchendo as árvores, de mim a um tiro de pistola – isto resumo mal. Ou o zabelê choco, chamando seus pintos, pra esgravatar terra e com eles os bichinhos comíveis catar. A fim, o birro e o garrixo sigritando. Ah, e o sabiá-preto canta bem. Veredas”.
 
Como costumava dizer o célebre entomologista e ambientalista Angelo Machado, falecido em 2020, referindo-se a uma das passagens mais icônicas do Grande Sertão: Veredas: "Hoje, o julgamento de Zé Bebelo aconteceria em meio a uma plantação de soja".
 

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