A assinatura da Constituição Americana, em quadro de Howard Chandler Christy (Fonte: Wikipedia).
O processo se repete a cada semana e, claro, não é diferente com os ataques terroristas do Hamas a Israel: na dinâmica das redes, uma situação histórica, social, jurídica ou política complexa é reduzida a um argumento binário que serve para alimentar a briga de torcidas. No processo, qualquer apelo à prudência, ao benefício da dúvida ou à possibilidade de abraçar contradições é visto como fraqueza moral ou concessão a um inimigo. De todos os cantos, surgem especialistas de ocasião e arautos da moralidade, dedo em riste, acusando e cancelando quem ousa discordar.
Agradeço à vida, nesse sentido, por ter sempre me dado oportunidade de contato com o mundo real, esse estranho lugar que teima em não se encaixar em nossas ideias pré-fabricadas a seu próprio respeito, que evidencia a inutilidade de simplificações e borra quase todos os limites que tentamos traçar - entre bem e mal, heróis e vilões, certo e errado.
Defendo, por isso, a criação de uma política pública de bolsas e estágios para militantes de todas as posições do espectro ideológico, com o objetivo de oferecer-lhes experiências de campo sobre os temas a respeito dos quais gostam de pontificar. Voltariam mais humildes.
O contato com o mundo humaniza aqueles que tomamos como inimigos, força-nos a, em alguma medida, calçarmos seus sapatos igualmente desconfortáveis e, borrando certezas, dá cor e complexidade às ideias, obrigando-nos a um mínimo de dúvida e empatia com o diferente.
Feito esse esforço, quem sabe passe a ser possível criticar pesadamente a política israelense e inclusive apontá-la como causa do surgimento e fortalecimento do Hamas, mas ainda assim dizer com todas as letras que o Hamas é um grupo terrorista e que o que aconteceu no sábado foi uma sequência de atrocidades que mesmo todas a barbaridades cometidas por Israel não têm como justificar.
Tornar as questões mais complexas não significa, por outro lado, cair em um cinismo amoral, onde não se tem lado e todas as posições se equivalem. Leva-nos, entretanto, a sermos mais prudentes nas generalizações e nas conclusões definitivas, que transformam todo debate em um jogo de oposições que se anulam. Imbuídos da necessária e bem-vinda humildade, passamos a escutar mais e falar menos, a perguntar ao invés de afirmar, desaceleramos nossos julgamentos.
É possível, por exemplo, dizer que o Brasil foi construído em cima de uma sistemática de genocídio de nossos povos indígenas, que aliás segue em curso, e ao mesmo tempo dizer que não haverá Brasil possível sem o agronegócio. É ingênuo acreditar que algo de positivo resultará desse fosso cada vez maior entre o Brasil urbano e o Brasil rural.
É possível votar em Lula, pela óbvia imoralidade do projeto fascista do outro lado, e também criticá-lo quando não reconhece o caráter ditatorial e nefasto do governo Maduro na Venezuela ou quando defende a exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas.
É possível entender que o Brasil é um país terrivelmente racista e machista e, ao mesmo tempo, não concordar com os métodos do movimento identitário, que não aceita críticas e nos leva a um individualismo cada vez mais exacerbado com sua ênfase nas diferenças e não no que temos em comum.
A democracia exige que nos apaziguemos, em alguma medida, com a dúvida e com as contradições, que abramos mão de convicções absolutas, que cada um reserve, em torno de si, espaço para o outro. A democracia cobra de nós relativismo, e esse é seu preço mais duro, mas sem o qual não há convivência possível.
Trata-se de um preço duro porque, em termos existenciais, é desafiador viver sem absolutos, sobretudo porque não somos ensinados a isso. Ao contrário, nossa cultura nos educa desde cedo para acreditarmos em uma ciência que traz verdades absolutas, ao mesmo tempo em que as religiões oferecem igualmente seus dogmas totalizantes.
A democracia, de outro lado, é nossa maior salvaguarda precisamente porque parte da constatação de que, entre os humanos, não há verdade absoluta e nem possibilidade de consenso - e que, desse fundo de diferenças, sempre brota a violência. Sua genialidade consiste em ser um sistema de regras e de regulação das interações humanas ancorado exatamente no reconhecimento das diferenças para, sobre elas, estabelecer um equilíbrio - sutil e sempre algo precário, mas sempre preferível às consequências nefastas dos autoritarismos.
As insatisfações e ameaças contemporâneas à democracia enraizam-se também em suas promessas não cumpridas. Não é fácil defender seus princípios abstratos face à miséria, a desigualdade social e a impunidade.
Não obstante, grande parte de sua crise atual passa exatamente por essa ancestral dificuldade de nos sustentarmos subjetivamente, como indivíduos, sobre a dúvida, especialmente em uma época em que nada mais parece garantido: privilégios e posições de classe são questionados, líderes políticos se amesquinharam, identidades nacionais se esvaziaram e o próprio planeta se move sob nossos pés, ameaçando o futuro da espécie.
A democracia exige uma ética da dúvida - mas os tempos não a favorecem e poucos parecem hoje propensos a abraçá-la de verdade.