Ninguém passa incólume por uma visita a um dos vários museus ou memoriais do Holocausto pelo mundo - sentir o cheiro ainda conservado de madeira, suor e talvez do próprio medo impregnado em um dos vagões de trem, ver as montanhas de sapatos de prisioneiros, que expressam visualmente a escala dos asfixiados nas câmaras de gás.
Ninguém igualmente fica imune à visão da Cúpula Genbaku, no Memorial da Paz, em Hiroshima, ruína do prédio que resistiu à força da bomba atômica a apenas 150 metros de seu epicentro. É uma espécie de espectro do passado, deixado ali propositalmente para assombrar a nós, os vivos.
Ninguém tampouco deixa de se comover ao ler Longa Caminhada até a Liberdade, autobiografia de Nelson Mandela, que relata os horrores do apartheid sulafricano. O testemunho de um homem com quem compartilhamos nosso tempo de vida torna presentes e concretos toda a violência e o racismo.
Quando muitos relativizam o maior ataque a judeus desde a Segunda Guerra Mundial, realizado pelo Hamas há pouco mais de uma semana, parece fundamental falar da importância da memória.
Por isso, é muito bem vinda a aprovação pela Câmara Municipal de Goiânia da Lei Maria Gabriela Ferreira, a partir de projeto da vereadora Aava Santiago, do PSDB. A lei estabelece o dia 23 de outubro como data de homenagem às vítimas do acidente com o Césio 137.
23 de outubro de 1987 foi o dia do falecimento de Maria Gabriela Ferreira, heroína pouco lembrada pela cidade. Ela era a esposa de Devair Alves Ferreira, dono do ferro- velho, então localizado na Rua 57 do Bairro Popular, onde uma cápsula contendo Césio 137, retirada de um aparelho abandonado de radioterapia, foi aberta, expondo centenas de pessoas à contaminação por radioatividade. Foi o maior acidente radioativo do Brasil e o maior do mundo ocorrido fora de usinas nucleares.
Maria Gabriela foi quem percebeu que a origem dos sintomas que vinham afetando seus familiares poderia estar ligada ao pó azul retirado da cápsula e que brilhava no escuro. Sua iniciativa de levar o material para a Vigilância Sanitária evitou uma tragédia de proporções ainda maiores. Ainda assim, a Associação das Vítimas do Césio estima em mais de uma centena o número de mortes, ao longo dos anos, pelos efeitos da radiação. Milhares de pessoas foram contaminadas. A cidade de Abadia de Goiás, vizinha a Goiânia, abriga o depósito dos rejeitos resultantes do processo de descontaminação. São cerca de 13,5 toneladas de lixo radioativo que demorarão pelo menos mais 180 anos para perder seu potencial de contaminação.
O acidente com o Césio, em larga medida, foi um retrato do Brasil, onde leis não aplicadas, a debilidade das instituições públicas, a brutal desigualdade social e os riscos ambientais se somam para vitimizar os mais pobres e vulneráveis.
O aparelho de radioterapia foi deixado no prédio abandonado do antigo Instituto Goiano de Radioterapia, numa negligência só cabível em uma sociedade onde as leis não são respeitadas e criminosos apenas tardiamente responsabilizados, quando o são. Wagner Motta Pereira e Roberto Santos Alves, catadores de sucata, encontraram o equipamento e o venderam a um ferro-velho, onde foi desmantelado e o Césio, exposto. Somente 17 dias depois da abertura da cápsula, Maria Gabriela levou o material à vigilância sanitária. Foram então semanas de descontaminação, com dezenas de técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear ocupando o Bairro Popular, o governo tentando conter o pânico da população e carros com placas de Goiânia vistos com temor em outras partes do país.
Trinta e seis anos depois, do que nos lembramos?
Eu vivi aqueles dias de boataria e medo. Acompanhei pela TV a chegada dos caixões de chumbo de Maria Gabriela e sua sobrinha Leide das Neves, de apenas 6 anos. Vimos chocados uma pequena multidão, liderada pelo então vereador e hoje deputado federal José Nelto, apedrejando os caixões por medo de que pudessem trazer mais contaminação. Acompanhei a produção febril do pintor Siron Franco de uma série de quadros que tentavam dar conta do horror daquela tragédia.
Para as gerações que vieram depois, entretanto, não há nada na cidade que remeta à memória do episódio. Na Rua 57, o lote ocupado à época pelo ferro-velho de Devair é apenas um retângulo de concreto - de que os passantes desavisados não imaginam a espessura. Sobre o terreno do antigo Instituto Radiológico de Goiânia, na esquina das avenidas Paranaíba e Tocantins, onde o aparelho foi abandonado, ergueu-se o Centro de Convenções de Goiânia. Há décadas, várias instituições tentam sem sucesso criar um memorial do Césio.
A sensação é a de que não aprendemos nada. As condições sociais e as instituições evoluíram a ponto de que hoje não seria possível repetir-se algo semelhante? É impossível ter certeza. A desigualdade social continua tão grande quanto ou maior, expondo os mais vulneráveis a riscos, e a imprudência humana com relação aos riscos da tecnologia parece não ter cura.
A psicanálise explica nossa inescapável tendência a soterrar e tentar esquecer traumas, mas, se queremos evitar futuros episódios semelhantes, é preciso lutar contra isso e criar memória coletiva.
Em Israel, o dia 27 do mês de nisan do calendário hebraico, é reservado ao Yom Hashoá, o Dia da Lembrança do Holocausto. Além de ser um feriado, às 10 horas do Yom Hashoá, as sirenes aéreas soam por dois minutos, os veículos de transporte público param e as pessoas permanecem em silêncio. Durante todo o dia, as televisões e rádios transmitem canções e documentários sobre o Holocausto e as bandeiras são hasteadas a meio-mastro.
Que o 23 de outubro, apropriadamente véspera do aniversário de Goiânia, sirva para celebrarmos a memória de suas vítimas e nos lembrarmos do episódio do Césio 137.