O saudoso e genial Contardo Calligaris não era um grande fã do futebol. Libertário, incomodava-o o lado sombrio do esporte nacional que estimula o tribalismo e o falangismo entre as pessoas - aspecto visível na cotidiana violência dentro dos estádios e à sua volta.
De outro lado, em defesa do futebol, é preciso dizer que ele também convoca, a depender, os "melhores anjos de nossa natureza", para usar a expressão que dá título a um livro do psicólogo americano Steven Pinker, em que ele demonstra, com dados e lógica, que a violência vem declinando ao longo da história humana.
Confesso, nesse sentido - pedindo desde já perdão de joelhos a meu querido amigo Michel Magul, fanático fã do River -, que, como bom flamenguista, torci para o Boca Juniors neste último sábado (4/11). Pela primeira vez na vida, entretanto, me emocionei com um gol do Fluminense, vendo a cena da
pequena torcedora caindo em prantos com o gol de John Kennedy que deu o título ao tricolor.
Como diz o chavão: "Não é apenas um esporte".
Todos os esportes simbolizam o drama humano, mas nenhum tão bem quanto o futebol. E isso não é uma opinião. Há uma explicação nos números. Diferentemente de outros esportes populares, onde fazer pontos é uma situação corriqueira, no futebol, o objetivo maior, o gol, é uma exceção, um acontecimento raro, como demonstram Chris Anderson e David Sally no fantástico
Os Números do Jogo, publicado no Brasil pela Editora Paralela com prefácio do grande Paulo Vinícius Coelho, o PVC.
A raridade do gol, que para alguns poderia parecer negativa, acentua o drama e torna o futebol o esporte do imponderável, aquele em que a vitória do mais fraco não é incomum e onde milagres no último instante acontecem. Por isso, nenhum outro encarna tão bem os delírios e angústias dessa nossa espécie surgida há 300 mil anos na África. Mudo de opinião, se alguém me apontar, em outros esportes, imagens que condensem isso da mesma forma que o futebol - como a da pequena tricolor no último sábado ou a do goleiro Júlio César desmaiando em Lima após a épica virada do Flamengo, em 2019, sobre o River Plate.
Como se não bastassem as narrativas oferecidas pelas partidas em si e pela batalha entre os times, somam-se ainda as histórias de glória e de tragédia entre os atletas. O que explica a trajetória de um John Kennedy, dispensado por indisciplina em três clubes, dado como perdido, e apenas tardiamente integrado por Fernando Diniz ao time profissional, para se tornar herói do título com um golaço na prorrogação? O que explica Lionel Messi, que chegou a anunciar sua saída da Seleção Argentina, para liderar a conquista do título mundial depois de começar com uma derrota vexaminosa para a Arábia Saudita? O que explica um Maradona, em sua glória e tragédia, como representante máximo de um país trágico e glorioso como a Argentina? O que explicam aqueles seis meses do Flamengo em 2019 sob o comando de Jorge Jesus? O que explica que o maior brasileiro de todos os tempos e o maior ídolo do esporte mundial seja um homem negro num dos países mais racistas do planeta?
Pelé foi tudo isso porque, além do futebol ser esse palco para a glória e a derrocada humanas, encarnou melhor que ninguém aquilo que nenhuma estatística explica, o que está além dos números, dos esquema táticos e de todo planejamento e treinamento - a possibilidade de que, num lampejo, transcendamos a banalidade de nossas vidas e testemunhemos a magia em sua forma mais pura para criar um tipo inexplicável de beleza - inexplicável sobretudo por sua mais gratuita inutilidade.
O futebol é inútil, mas quando, da irracionalidade brota essa beleza, a vida, por alguns instantes faz todo o sentido.
(Dedico este texto a todos os meus amigos tricolores, em especial a meu irmão Guilherme, ao André Trigueiro e ao querido Pedro Caldas que, onde quer que esteja, deve ter vibrado com seu time).