Enquanto os líderes mundiais tentam fazer escolhas verdadeiramente difíceis na
COP-28, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, em Dubai, vale lembrar que talvez o maior desafio de nossas vidas resida precisamente em fazer escolhas entre usufruir no presente ou poupar para o futuro.
Como explica o filósofo Eduardo Giannetti, em seu genial "O Valor do Amanhã", os juros não são apenas a expressão de uma escolha no campo material e econômico. Eles são um componente de grande parte de nossas decisões emocionais profundas e das dúvidas banais do cotidiano. Beber mais e pagar o preço da ressaca ou recusar a próxima taça e acordar bem amanhã? Deixar de se exercitar e arcar com os riscos futuros à saúde ou ir à academia e manter a gordura em níveis saudáveis? Ter filhos e suas recompensas e dores emocionais ou deixar de tê-los e manter sua liberdade? Tirar férias e viajar ou vender as férias e poupar? Seguir despejando gases na atmosfera que afetam o clima e arcar com as consequências que já nos assustam ou descarbonizar a economia com urgência para garantir a continuidade da espécie?
Em todas essas escolhas, de diferentes formas, expressam-se os mesmos dilemas de fundo: entre gastar ou poupar, entre intensidade ou longevidade, entre ter prazer hoje ou adiá-lo para usufruto, com juros, no futuro, entre a certeza clara do gozo agora e os riscos difusos e ainda distantes de sofrimento e dor.
Esse cálculo do valor do amanhã está na raiz do sofrimento neurótico, mostra-nos a psicanálise. Nós, neuróticos, por mais que nos defrontemos cotidianamente com a necessidade dessas escolhas, seguimos negando-a. Usufruimos hoje, mas nos iludimos de que poupamos. Quando o futuro chega e cobra os juros, nos culpamos e arrependemos. Negamo-nos o prazer possível sob falsas justificativas moralistas. Quando nos damos conta de que o prazer já não é mais possível, nos frustramos e ressentimos. Por querer ter as duas coisas, o neurótico quase sempre acaba de mãos vazias.
Em alguma medida, os principais debates políticos contemporâneos envolvem essa reflexão sobre o peso do futuro. Essa grande crise ecológica de nosso tempo, agora em debate nos Emirados Árabes, trouxe as futuras gerações e seus direitos para a arena política. Só com o futuro batendo à porta, na forma da crise climática, é que parecemos estar despertando - e ainda assim, nas semanas que passaram, vimos o Congresso Nacional prorrogar os incentivos ao carvão mineral e aprovar um projeto de lei que relaxa a fiscalização sobre o uso de agrotóxicos.
Também o eterno debate sobre ajuste fiscal não fala de outra coisa que não desse dilema entre poupar ou gastar. Da mesma maneira, o instituto da reeleição, que volta à pauta em uma promessa do presidente do Senado, é igualmente uma engenharia que tenta tornar, aos olhos do político, mais valioso o futuro.
Na política, o dilema que opõe meios e fins, ou valores e resultados, também se entrelaça a esse outro, entre o hoje e o amanhã. A ideia de que os fins não podem justificar os meios é, no fim das contas, uma aposta em algo que transcenda o imediato, um cálculo que diz que o imediatismo é em geral nocivo para a estabilidade a longo prazo.
Mas a política tem o péssimo hábito de subverter nossas ideias e questionar teses que parecem simples. Basta olhar para a história para ver os efeitos nocivos das utopias no campo político. Gulags soviéticos, campos de concentração nazistas ou os porões imundos de qualquer ditadura latino-americana ou africana, nasceram todos de alguma forma de utopia.
Toda tirania surge precisamente do impulso neurótico coletivo de que pode ser possível não fazer essas escolhas entre o hoje e o amanhã. Todo ditador, em algum momento, faz a promessa de que não haverá mais escolhas difíceis.
"Tornar a América grande de novo" não é, no fundo, a ideia de retorno à pujança econômica e ao bem-estar do passado, e sim uma promessa de regresso a um tempo que nunca existiu, exceto na infância remota de cada indivíduo, onde os americanos não precisavam fazer escolhas.
Bolsonaro não tem sequer a capacidade de Trump para sintetizar em uma frase o ressentimento de um povo, mas também foi eleito apontando para a possibilidade de não se fazerem escolhas difíceis: podemos seguir desmatando e poluindo de forma cega, não precisamos olhar de frente para nossas horrorosas desigualdades sociais, nem tampouco nos confrontarmos com nossas responsabilidades individuais e coletivas em relação a cada um desses problemas.
A democracia nada mais é que uma engenhosa maneira de institucionalizar a necessidade de fazermos ao menos algumas escolhas difíceis, um sistema para tentar impedir, ou ao menos minimizar, a participação do desejo neurótico de conciliar o inconciliável na vida pública - e, por essa via, evitar o caminho quase sempre certo do autoritarismo.
O diabo é que, em sua imperfeição, a democracia tenta nos blindar contra os autoritarismos, mas não evita - ao contrário, até favorece muitas vezes - a postergação de escolhas difíceis. É o caso da crise climática, onde é bem provável que as soluções incrementais - a transição energética lenta possível por meio da política democrática - não sejam suficientes para evitar alguns dos piores efeitos do aquecimento global.
É quando se cria, entretanto, o espaço para que líderes acima da média exerçam seu dom e sua grandeza. Quando na crise os caminhos possíveis se mostram insuficientes, o político ousado enxerga uma fresta que mais ninguém vê e faz uma aposta de risco. Se ela tem êxito, reconfigura todo o cenário.
Por isso, cabe repetir o que já se tem dito: o Brasil tem condições para, assumindo suas responsabilidades, liderar uma corajosa transição para uma economia de baixo carbono que ainda permita, quem sabe, evitar os piores efeitos das mudanças climáticas. Com o que já fez e vem fazendo no combate ao desmatamento e proteção da Amazônia, como um dos maiores produtores de petróleo do mundo, com os povos indígenas e a parte não-suicida do agronegócio como aliada, a possibilidade está colocada.
Não será fácil, com os interesses da indústria do petróleo remando na contramão, com um agronegócio majoritariamente aferrado a lucrar com prejuízos públicos e com nossas elites patrimonialistas e rentistas. Mas a história está oferecendo uma chance única a Lula. Será um teste de sua capacidade de fazer escolhas difíceis. E da nossa também.