Duas pautas muito diferentes destes dias dão o que pensar sobre os impasses políticos e econômicos do Brasil.
Os
dados de desmatamento no Cerrado para o mês de novembro foram divulgados e mostram um aumento de 238% na supressão de vegetação nativa em relação ao mesmo mês do ano passado, o pior aumento da série histórica iniciada em 2018.
De outro lado, neste final de semana, comecei a assistir à série
Vale o Escrito - A Guerra do Jogo do Bicho, lançada no início de novembro pela Globoplay. É um documentário que mergulha, como nunca antes, no universo dessa atividade ilegal, que faz parte do cotidiano de todo o país, em especial do estado do Rio de Janeiro. Não é possível de fato compreender o Rio sem entender o papel do Jogo do Bicho em sua sociedade e política.
São dois assuntos muito diferentes, mas que expõem de forma clara e triste as contradições que fundam e movem o Brasil.
No primeiro caso, por que seguimos desmatando de forma insana o Cerrado justamente quando ficam mais palpáveis a cada dia os efeitos das mudanças do clima?
Paradoxalmente, essas mudanças prejudicam sobremaneira justamente o agronegócio que parece, não obstante, cegamente determinado em sua trajetória suicida.
Um estudo publicado em 2021, na prestigiada revista
Nature Climate Change, por pesquisadores de várias instituições americanas e brasileiras, mostrou, por exemplo, que 28% das áreas produtoras de milho e soja já sofrem com perdas de produtividade por se encontrarem fora do ideal climático na região Centro-Oeste do país.
O
documento preliminar do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado, o PPCerrado, elaborado pelo Governo Federal, aponta, a partir de diversos estudos, várias consequências negativas do desmatamento e das mudanças no uso da terra no bioma. Entre 1961 e 2019, houve um aumento das temperaturas máximas e mínimas entre 2 e 4°C e 2,4 e 2,8°C, respectivamente. A umidade do ar foi reduzida em aproximadamente 15% no mesmo período. Ocorreu uma diminuição de 41% na extensão dos corpos d'água naturais e de 18 a 25% na vazão de um conjunto de rios monitorados no Cerrado entre 1985 e 2018.
Para os que argumentam que a legislação ambiental permite o desmatamento de até 80% de toda propriedade rural no bioma, cabe dizer que uma parte significativa da produção agropecuária no Cerrado, não obstante, tem vínculo com o desmatamento ilegal. O mesmo documento divulgado pelo Governo Federal, com base em diferentes pesquisas, aponta que pelo menos metade do desmatamento no Cerrado tem algum tipo de ilegalidade e que 22% da produção de soja no bioma ocorrem em imóveis onde houve desmatamento ilegal após 2008.
É na região conhecida como Matopiba, o polígono formado por um conjunto de municípios na região de fronteira entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que vem ocorrendo a maior parte do desmatamento no Cerrado, 55% do total para este último mês de novembro.
Como em toda região de fronteira econômica do Brasil, presente ou pretérita, há fartas evidências da associação entre desmatamento e grilagem de terras públicas, muitas delas tradicionalmente ocupadas por populações tradicionais ou pequenos agricultores, que sofrem na pele a violência de que esse processo se reveste.
Não à toa, neste último dia 5 de dezembro, um conjunto de entidades ligadas à agricultura familiar e à defesa do Cerrado
protocolou uma ADIN, Ação Direta de Inconstitucionalidade, junto ao Supremo Tribunal Federal, questionando a Lei no 3.525/2019, do estado do Tocantins, que facilita a titulação de terras sem cadeia dominial clara.
Dados da CPT, a Comissão Pastoral da Terra, registram, para o Matopiba, apenas no ano de 2023, 88 casos de violência contra a ocupação e posse de terras e 54 casos de violência contra pessoas.
Capitão Guimarães, um dos chefes do Jogo do Bicho no Rio de Janeiro,
em entrevista na série da Globoplay. (Foto: Reprodução)
Violência é justamente um dos temas centrais da série documental recentemente lançada pela Globoplay que eviscera, de maneira chocante por sua transparência, outra questão onde a associação tão brasileira entre patrimonialismo e crime se exibe em toda a sua força.
Em Vale o Escrito - A Guerra do Jogo do Bicho, falam abertamente figuras como o Capitão Guimarães, grande responsável pela modernização do Bicho no Rio de Janeiro, e Júlia Lotufo, viúva de Adriano da Nóbrega, o mais célebre miliciano brasileiro, criador do Escritório do Crime, condecorado por Flávio Bolsonaro e morto em 2020.
Na ausência do Estado, os grandes bicheiros historicamente assumiram, no Rio de Janeiro, o papel de patronos de comunidades desassistidas, deitando raízes no mesmo tipo de assistencialismo que sempre moveu as engrenagens da política brasileira e que se perpetua por eternizar a pobreza. Nessa cadeia de transmissão, lubrificada com muito sangue, seu dinheiro garante o apoio das comunidades, em uma ponta, enquanto irriga os gabinetes da política, na outra.
Com o domínio das grandes escolas de samba, os bicheiros do Rio tomaram para si outro negócio bilionário que sempre lhes serviu, ademais, para fazerem sua "lavagem de imagem". Não é preciso assistir à série para adivinhar as conexões entre o Bicho, o tráfico e as milícias.
A ambivalência brasileira em relação ao Jogo do Bicho, em que grande parte da população faz sua fé diária numa atividade ilegal e olha com afeto para as figuras caricatas dos bicheiros é sinal de nossas contradições profundas e de nossos impasses.
Ela não é em nada diferente da ambiguidade e passividade com que observamos há décadas a destruição do Cerrado, onde os prejuízos públicos abastecem burras privadas e ampliam nossa vergonhosa desigualdade social.
Como diz o jornalista Fernando de Barros e Silva, em
artigo na revista piauí deste mês justamente sobre a série da Globoplay, "impasse histórico é uma fórmula que serve para nos definir hoje como país".
Nunca esteve tão evidente a distância entre a visão regredida e excludente que nos trouxe até aqui e qualquer sonho de um país verdadeiramente desenvolvido. Até quando seguiremos escolhendo o passado?