Nem sempre é fácil essa obrigação de precisar ter algo supostamente relevante a dizer toda semana. Já falei aqui do quanto essa ideia de utilidade a respeito do que se escreve ou se diz pode ser paralisante. Quando não aprisiona e bloqueia, a necessidade de ser útil ou relevante é caminho certo para o conforto das ideias pré-fabricadas, conformadas e destinadas ao aplauso fácil dos vigilantes do bem pensar.
Achei que deveria escrever algo sobre a tragédia do Rio Grande do Sul. Como não? O país está justificadamente atônito diante do que testemunha. Felizmente, ainda preservamos alguma capacidade de nos comover com a desgraça alheia, mesmo que a extrema-direita derrame sua enxurrada de fake news e a turma do ódio do bem à esquerda chegue a dizer que os gaúchos merecem o que ocorre por terem eleito Eduardo Leite. Talvez melhor se calar mesmo.
Se há algo, entretanto, que talvez valha ser repetido é aquilo que o jornalista
Bernardo Esteves enfatizou na última edição do
Foro de Teresina, o podcast de política da
revista piauí: essa tragédia não tem nada de natural. Ainda que chuvas e todo o ciclo hidrológico sejam tomados como elementos do chamado "mundo natural", em todas as causas das inundações no Rio Grande do Sul está presente a mão humana. Suas origens estão na economia e na política.
Como se tem repetido à exaustão, uma das principais características das mudanças climáticas por que vimos passando é - e seguirá sendo - uma frequência cada vez maior na ocorrência de fenômenos meteorológicos extremos: chuvas torrenciais, inundações, nevascas, vendavais, furacões, ciclones, ondas de calor, secas.
E não há dúvida para os cientistas de que a origem dessas mudanças está nesse aumento da concentração de gases, como o dióxido de carbono e o metano, causada pelo ser humano, especialmente por meio da queima de petróleo e carvão, além do desmatamento e da criação de gado.
De outro lado, construímos cidades que não levam em consideração a maneira pela qual interferem nos ecossistemas em que se inserem. Em primeiro lugar, com frequência, ocupamos áreas que são naturalmente caminho ou refúgio sazonal da água: encostas, fundos de vale, planícies de inundação. Nesse processo, além do mais, impermeabilizamos grandes áreas, impedindo que ela se infiltre no solo, o que intensifica os fluxos superficiais, gerando enxurradas e aumentando a carga dos cursos d'água, cujas calhas também foram ocupadas ou reduzidas. Por fim, removemos toda a vegetação que tem papel importante na fixação do solo, na infiltração dessa mesma água e em sua devolução para a atmosfera. Não espanta que, nessas condições, diante de precipitações e fluxos cada vez maiores e mais concentrados, ocorram problemas. Já havia sérios impactos dessas interferências mesmo antes dos fenômenos climáticos extremos que passamos a testemunhar nos últimos anos.
Essas cidades impermeabilizadas e sem vegetação tornam-se ademais ilhas de calor, o que gera alterações em seus microclimas e produz mais tempestades durante a estação chuvosa e temperaturas ainda mais elevadas na seca.
A especulação imobiliária e a incapacidade de nossas instituições públicas para contê-la e dar mínimo ordenamento e racionalidade ao uso do solo incentivam sua ocupação desordenada e empurram os mais pobres para áreas de risco.
Em tragédias como a do Rio Grande do Sul, a desigualdade brasileira revela uma de suas faces mais cruéis. Embora a proporção do que estamos testemunhando tenha atingido até mesmo os mais privilegiados, evidentemente são os pobres os mais vulneráveis em todas as dimensões.
São eles que ocupam as áreas de risco, onde ocorrem mais deslizamentos de terra, desmoronamentos, enxurradas, alagamentos e inundações. Suas casas tendem a ser mais precárias, pois, não raro, são construções irregulares que não obedeceram princípios de segurança e engenharia e usaram materiais de menor qualidade.
Muitos desses bairros não têm acesso a saneamento - 40% dos brasileiros ainda não estão conectados a redes de esgoto e, entre esses, são maioria os pretos, pardos e indígenas. Para muitas dessas pessoas, também o abastecimento de água, nem sempre garantido, corre maior risco de ser prejudicado. Sem contar que, nessas áreas, nem sempre há coleta de lixo regular. Tudo isso se soma para potencializar o risco de doenças de veiculação hídrica, cujos números seguramente sofrerão aumento exponencial no sul nas próximas semanas. E são esses vulneráveis também que mais têm dificuldade de acesso à rede de saúde - pela distância, precariedade e sobrecarga.
Enquanto os moradores dos bairros nobres, mesmo atingidos, têm acesso a planos de saúde e à rede privada, os habitantes da periferia dependem de postos e hospitais públicos já sobrecarregados e muitas vezes precários.
Sem falar em todos os números que têm saído nos últimos dias mostrando a preocupação praticamente inexistente com a prevenção de riscos e desastres, a despeito de todos os avisos da comunidade científica.
Como noticiou o
UOL, nos últimos dez anos, de acordo com dados do Tribunal de Contas da União (TCU), o governo federal gastou R$ 11,1 bilhões para remediar os estragos causados por desastres ambientais, contra apenas R$ 4 bilhões em políticas para evitá-los. E esses gastos vêm caindo desde 2014, apesar do aumento no número de emergências relacionadas a mudanças climáticas.
Não à toa, é a própria ONU quem diz que "não existem desastres naturais". Para o
UNDRR, o Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres, tempestades, vendavais ou ondas de calor são "riscos naturais", mas um risco "só se torna um desastre quando afeta uma comunidade que não está adequadamente protegida e cuja população é vulnerável devido à pobreza, exclusão ou desvantagem social".
"É a política, estúpido", poderíamos dizer, parafraseando o dito célebre do estrategista político
James Carville, que se referia na verdade à economia como tema definidor de toda eleição. Não deixa de ser irônico, entretanto, que na eleição que tornou famosa sua frase original - "It's the economy, stupid!" - um dos assuntos definidores da derrota de George H. Bush, em sua tentativa de reeleição, tenha sido sua reação tardia justamente aos efeitos do Furacão Andrew, em 1992.
Vários analistas têm, com razão, apontado grandes catástrofes como a que estamos vendo como pontos de inflexão na política. Tomara, pois foram a inércia e as ações míopes ou abertamente mal intencionadas de legisladores e governantes - e não a natureza - que nos levaram a testemunhar um estado inteiro sob as águas.