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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Um convite ao Brasil da Zona Sul e de Pinheiros

| 21.05.24 - 08:37 Um convite ao Brasil da Zona Sul e de Pinheiros Outdoor pró-Bolsonaro em Ji-Paraná (RO) (Foto: Conexão Planeta).
Aripuanã é uma cidade do norte do Mato Grosso, no coração do chamado Arco do Desmatamento da Amazônia. É daqueles municípios que sempre figuram nas listas dos campeões de desmate e extração ilegal de madeira. Chegar à cidade por uma das rodovias empoeiradas que a conectam ao resto do Brasil é cruzar com as intermináveis filas de caminhões carregados de toras e depois adentrar seus bairros periféricos tomados por incontáveis serrarias com seus pátios lotados de gigantescos troncos de espécies como ipê, cedro, jatobá e angelim. 
 
Banhada pelo caudaloso Rio Aripuanã, emoldurada por suas cataratas e cercada pela luxuriante floresta tropical, Aripuanã, descobri pelas inúmeras fotos de pássaros que decoravam as paredes do hotel, é um dos principais centros de observação ornitológica do Brasil, uma Meca para a qual afluem muitos fotógrafos e ecoturistas ansiosos para flagrar algumas das espécies raras que habitam a região.
 
Não demorou para que eu conhecesse o autor daquelas fotos que adornavam as paredes do estabelecimento. Dono do hotel, Cléverson chegou em uma SUV Hilux com o capô recoberto pela bandeira brasileira. Ao descer, pegou a pistola guardada no compartimento da porta do veículo, colocou-a na cintura e nos cumprimentou de forma afetuosa com os erres retroflexos e as vogais alongadas do sotaque típico do interior do Paraná. Eu estava ali para um trabalho com as comunidades indígenas Cinta-Larga e Arara do Rio Branco, cujas terras ocupam ampla porção das bacias dos rios Aripuanã e Branco.
 
Diante de minhas perguntas sobre as fotos dos pássaros, ele explicou que era fotógrafo amador e que sua grande paixão, além dos campeonatos de tiro, era a observação de pássaros. 
 
Como passamos muitos dias na cidade, Cléverson acabou nos convidando para um passeio a uma serra próxima que é um dos pontos de maior diversidade ornitológica na região. Foi uma viagem agradável a uma área rica de floresta, durante a qual nosso anfitrião contou um pouco mais de sua história familiar. Ele já era aripuanense de nascimento. Seus pais tinham migrado para a região no início da década de 1980 em busca de terras e oportunidades.
 
O percurso do dia foi encerrado com seu relato sobre como obtivera sua foto mais valiosa e importante de uma espécie pouco avistada de pássaro. "Era uma competição de tiro e, quando eu vi, o bichinho tava tomando banho numa poça ao lado do estande. Eu tive que pedir licença ao instrutor e parar a prova. Peguei minha câmera, fotografei e depois continuei a atirar".
 
O cenário e a história, para além de seus contrastes inusitados, oferecem um retrato vivo de certo Brasil interiorano. Cléverson une, de forma improvável, o Brasil agro e direitista a uma genuína paixão pela natureza. Sua receptividade e o fato de encarar com naturalidade que estivéssemos ali para trabalhar pelos direitos de comunidades indígenas parecem também não se encaixar com perfeição nas ideias que fazemos de um personagem desse tipo. Por isso, sua história parece se prestar, de forma útil, a uma reflexão sobre um país que parece paralisar e confundir a nós, gente urbana e progressista.
 
Em excelente artigo na revista piauí deste mês, Luiggi Mazza batiza de "Síndrome Caetanista" à paralisia política que identifica na esquerda brasileira. Diante da incapacidade de compreender um Brasil que elegeu e quase reelegeu Bolsonaro, os progressistas, em especial a intelectualidade e a classe artística, voltam-se a uma espécie de culto de Caetano Veloso e do espírito do Tropicalismo, numa "tentativa de restaurar uma visão de país cujas condições não existem mais", explica ele.
 
O movimento tropicalista criou uma espécie de síntese do Brasil a partir de suas contradições. Seríamos um país desigual e violento, mas alegre e culturalmente rico, ao mesmo tempo subdesenvolvido e moderno. "Um país da delícia e do absurdo, ao mesmo tempo triste, bonito e cômico".
 
A ascensão e força da extrema-direita colocou essa ideia em xeque, não tanto por escancarar os preconceitos de certa elite conservadora, o arcaísmo de nossas estruturas de poder e o flerte com o autoritarismo, mas por não permitir mais sustentar uma certa ideia de povo muito cara à esquerda. Como explicar que metade do país, aí incluído um imenso contingente de brasileiros pobres, seja no campo ou nas periferias urbanas, seja visceralmente antipetista e endosse ideias caras a essa direita como a de que "bandido bom é bandido morto" ou a de que indígenas têm direitos demais no Brasil?
 
Talvez esse seja o convite a um necessário amadurecimento. Ou ele acontecerá ou a extrema direita voltará ao poder e talvez não o deixe por muito mais tempo que os quatro anos de Bolsonaro. 
 
Nesse sentido, é uma narrativa simplista e melodramática que, bombardeada pela realidade, perdeu sua capacidade de parar em pé. Luggi Mazza cita como exemplo o filme Bacurau, do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, onde se contrapõem um Brasil sertanejo, onde há pobreza e solidariedade, ao "Brasil encarnado por uma classe média eugenista, disposta a se aliar com estrangeiros para cometer um genocídio e varrer os nordestinos do mapa".
 
Além de Bacurau, entretanto, podem-se citar muitos outros exemplos de narrativas caras à esquerda que tentam explicar o Brasil - e o mundo - por meio da chave opressores/oprimidos. Se, ao fim delas, nem sempre sobrevém a redenção na forma de justiça, ficam ao menos a lição e o conforto de um mundo repartido claramente entre bons e maus, entre vítimas e algozes.  
 
Para sair do território da ficção, cabe lembrar vários documentários na seara ambiental, em que navego, que responsabilizam alguma entidade opressora - o agronegócio, a indústria do petróleo, às gigantes da Internet- pelas mazelas que assolam o planeta. Saímos todos felizes do cinema, abençoados pela superioridade dos que se encontram do lado certo da história.
 
E não se trata de dizer que não existam empresas que efetivamente têm comportamentos imorais e que o Brasil não possua uma estrutura de poder corrupta e ineficaz que se beneficia da desigualdade e perpetua a pobreza. 
 
Mas, como diz o filósofo Vladimir Safatle, também citado por Mazza, explicar a adesão de metade dos brasileiros à extrema direita como uma reação às políticas de combate à desigualdade dos quatro governos petistas não faz nenhum sentido. Assemelha-se mais ao gesto do avestruz que enfia a cabeça em um buraco diante de uma ameaça iminente.  "Uma política de fato eficaz para a construção da igualdade social", aponta Safatle, "não seria rechaçada por metade da população – como foi".
 
Parte do exercício que nós, essa elite urbana progressista, precisamos fazer - especialmente a intelectualidade e a esquerda paulistanas e da Zona Sul carioca - reside em conhecer o Brasil real. É preciso abandonar os ideais pouco complexos e maniqueístas que cultivamos a respeito do povo e fazer o exercício difícil de nos confrontarmos com a complexidade de um país que não se explica tão facilmente quanto em posts para lacrar em redes sociais.
 
Há muito preconceito e elitismo do nosso lado do muro. O Brasil da Zona Sul do Rio de Janeiro e de Pinheiros se concebeu de costas para o resto do país, mirando a Europa como seu ideal de sociedade e considerando esse vasto interior como atrasado, ao mesmo tempo em que se concebem romanticamente seus "nativos", não sem certo exotismo, como criaturas puras exploradas pelo processo de modernização capitalista.
 
Novamente, o processo de modernização de vastas porções do Brasil envolveu verdadeiro genocídio dos povos indígenas e uma brutal incorporação de um amplo contigente de pessoas a uma nova economia onde não lhes é dada nenhuma alternativa que não a pobreza. Todavia, é preciso insistir: isso não explica a força do bolsonarismo e o pouco apreço à democracia de metade do Brasil.
 
Somente uma visão elitista, por outro lado, para dizer o mínimo, explica o desprezo do Brasil urbano e progressista aos elementos e símbolos da cultura do sertanejo no Brasil, por exemplo. Não faz sentido que um gênero musical que é o mais tocado, mesmo nas grandes metrópoles, e o mais ouvido pela vasta maioria dos brasileiros, seja tratado como lixo cultural. Como não faz sentido que todo o Brasil agro, que engloba cerca de 15% do eleitorado, segundo Felipe Nunes e Thomas Traumann em seu Biografia do Abismo, seja visto como uma massa amorfa e uniforme de fascistas dedicados a destruir a Amazônia e o Cerrado. Isso não para em pé.
 
E o pior, tudo isso é dito e repetido em redes sociais, do conforto de salas de estar no Jardim Botânico ou na Vila Madalena, por pessoas que nunca conheceram uma cidade como Goiânia ou Barretos, que respiram o sertanejo e o agronegócio, ou qualquer lugar no vasto Arco do Desmatamento na Amazônia, como Marabá, Alta Floresta ou Ji-Paraná, onde o Brasil literalmente toca fogo em seu maior tesouro para que sigamos consumindo picanha em nossos churrascos de domingo.
 
A verdade é que não entendemos quase nada do Brasil. Seguimos apegados a uma visão romantizada e melodramática que já não explica nada. 
 
Como coloca, uma vez mais, Luiggi Mazza: "sem que a política indique novos caminhos, novos protagonistas, uma nova história, a sensação é de que estamos num limbo. Há um Brasil a ser inventado politicamente, mas esse processo está empacado porque ainda não foi apreendido pela esquerda institucional."
 
O Brasil precisa se reinventar inclusive para não se deixar dominar pelas forças obscuras que ganharam a esfera pública e a luz do dia. Não será entretanto agarrando-nos  ao melodrama que o conseguiremos. Precisamos abraçar e incorporar de fato a complexidade e as contradições que apenas romanticamente idealizamos celebrar. Precisamos sair das redes sociais e do bossanovismo da Zona Sul e lidar com as diferenças que os interiores do Brasil agro e da Amazônia manifestam.
 
 

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