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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Carta aos burocratas

| 18.06.24 - 08:31 Carta aos burocratas A filósofa Hannah Arendt (Foto: Wikimedia)

A formação de todo burocrata ou operador do Direito deveria incluir, em sua primeira etapa, a leitura de apenas dois livros: Eichmann em Jerusalém, um Relato sobre a Banalidade do Mal, da filósofa alemã Hannah Arendt, e O Piloto de Hiroshima, do filósofo polonês e primeiro marido de Hannah Arendt Günther Anders
 
Para quem não conhece as histórias, em 1961, Arendt acompanhou, como enviada da revista The New Yorker, o julgamento em Jerusalém do oficial da SS Adolf Eichmann. Capturado em Buenos Aires, em 1960, por agentes do Mossad, o Serviço Secreto Israelense, Eichmann foi levado a Israel e julgado por um tribunal especialmente criado para esse fim, que o condenou à morte. 
 
Além de sua grande divulgação e repercussão na mídia internacional, o processo foi conduzido como importante acontecimento político em Israel, parte da catarse dos horrores não apenas do Holocausto, mas de todas as perseguições historicamente sofridas pelos judeus. 
 
Afinal, tratava-se de um alto oficial alemão responsável pela gestão logística das deportações em massa de judeus e outros prisioneiros para os campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial. Esse era o homem responsável pela estrutura que levou à morte ao menos seis milhões de pessoas, segundo as estatísticas mais conservadoras.
 
Todavia, explica Hannah Arendt, o julgamento resultou aos poucos em um enorme anticlímax. Ao abrirem-se as cortinas do palco cuidadosamente preparado no Beit Ha'am, o teatro em Jerusalém convertido em tribunal, em vez do demônio encarnado, surgiu um burocrata. Eichmann não correspondia ao protótipo do carrasco nazista que se comprazia perversamente com a morte de judeus. Ao contrário, era um sujeito comum, e aparentemente não extraordinário, mas que cometera atos extremamente malignos e terríveis.
 
Essa contradição levou Arendt a cunhar a ideia de "banalidade do mal". Eichmann não era um monstro ou um indivíduo profundamente perverso, mas sim um seguidor de ordens, alguém que se conformava com os protocolos burocráticos do regime nazista sem refletir criticamente sobre as consequências humanas de suas ações. 
 
A consequência, ao mesmo tempo luminosa e sombria, da percepção de Hannah Arendt não diminui a culpa de Eichmann, mas aumenta as nossas. A história do oficial nazista mostra que o mal tem a capacidade de se manifestar de maneira ordinária e rotineira, através de cada um de nós - na medida em que, mesmo por pequenas ações ou omissões, tornamo-nos cúmplices de processos que impactam negativamente a vida de outras pessoas. Com Hannah Arendt, o mal deixa de ser obra exclusiva de indivíduos perversos e monstruosos, para se tornar uma espécie de obra coletiva e cotidiana. 
 
Cada um de nós que come carne é, afinal, de alguma forma, responsável pelo desmatamento da Amazônia. Sempre que nos deslocamos de carro ou ônibus, tornamo-nos artífices das mudanças climáticas. Aquilo que é consumido hoje dos recursos naturais não-renováveis é, de certa maneira, subtraído às gerações futuras.
 
Eichmann não matou nenhum judeu. Ele planejou ferrovias, aprovou itinerários de trens, mandou fabricar vagões, definiu destinos, montou planilhas, baixou regulamentos que ordenavam deportações, fez os cálculos necessários para saber quantas locomotivas deveriam ser encomendadas - em alguma medida, do mesmo modo que eu e você fazemos nossas listas semanais de compras: 1,5 quilo de filé mignon, 1 quilo de peito de frango, 1 litro de óleo de soja, 5 quilos de arroz.
 
Não se trata, claro, de dizer que a minha e sua contribuição com o Efeito Estufa seja comparável aos crimes de um oficial nazista. O que se está dizendo, ecoando Hannah Arendt, é que um mesmo mecanismo protegia o sono de Eichmann e o nosso, permitindo-nos não lidar com as consequências morais de nossos atos: a racionalização das relações humanas, cujo exemplo mais acabado é o da burocracia.
 
A burocracia é uma gaiola protetora que permite ao indivíduo não olhar para e não ter que lidar com as consequências éticas de suas ações. Isolados em seus ambientes, distantes das pessoas que sofrem as consequências de suas decisões, separados por leis, regras, atas, papéis, transações financeiras, documentos, os operadores do Direito ou da administração de instituições não precisam assumir os riscos da empatia. Cumprindo ordens e normas, abrigam-se no conforto do dever cumprido, a despeito de seus desdobramentos no mundo real das pessoas.
 
Houve um homem, entretanto, para quem não foi mais possível separar seus pequenos gestos, mesmo distantes, de um grande mal. Para ele, a burocracia e a razão não foram suficientes para desconectar-se dos que foram atingidos, em alguma medida, por suas ações. E, de forma curiosa e sintomática, a despeito de sua dolorosa lucidez, foi considerado insano e internado em instituições psiquiátricas.
 
Falo do major Claude Robert Eatherly, aviador do Exército Norte-Americano. Em 6 de agosto de 1945, Eatherly pilotou um bombardeiro B-29 para um voo de reconhecimento meteorológico sobre Hiroshima. Foi ele quem transmitiu ao Enola Gay, que transportava a bomba atômica, a informação de que o tempo se encontrava limpo e de que poderia prosseguir com sua missão que mataria, logo em seguida, quase 80 mil pessoas.


O filósofo Günther Anders (Foto: Wikimedia)

 
A agudeza da consciência de Eatherly, e a enorme culpa que passou a carregar, são reveladas por Günther Anders, que com ele se correspondeu durante alguns anos. Suas cartas encontram-se no O Piloto de Hiroshima, mencionado no início do texto, mas que, infelizmente, nunca foi publicado em português. Há arquivos digitais da edição espanhola disponíveis online, entretanto.
 
O diálogo com Eatherly, e as tragédias de Hiroshima e Nagasaki, aguçaram em  Anders a compreensão dessa nossa trágica condição como seres humanos modernos. A tecnologia a serviço da guerra, o consumo de massas e a burocracia institucional nos tornam cúmplices (in)voluntários de equivalentes contemporâneos de campos de concentração e de bombas atômicas.
 
Não é suficiente, entretanto, desejarmos renunciar a isso. Essa condição constitui, de maneira tão profunda, nossa sociedade, que nos é impossível retirarmo-nos da teia. Todavia, amadurecer e tornarmo-nos de fato adultos significa, em certa medida, não mais evitarmos o enfrentamento desse dilema ético cotidiano. Implica em aprendermos com Claude Eatherly e assumirmos nossa dolorosa responsabilidade na prática cotidiana do mal. Se isso não permite, ainda assim, evitarmos esse trágico papel, pode, quem sabe, trazer espaço para, no difícil exercício da compaixão, abrirmos lugar para o outro.


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