Tem sido animador observar a quantidade de matérias jornalísticas, análises e homenagens aos 30 anos do Plano Real. No dia 1o de julho de 1994, em substituição ao Cruzeiro Real, entrava em circulação o Real, moeda estável que carregamos em nossos bolsos até hoje.
Vale lembrar e celebrar por dois motivos: primeiro, se quase 60% da população brasileira têm hoje menos de 40 anos, a grande maioria tem pouca ou nenhuma lembrança do que era conviver com uma inflação de mais de 40% ao mês; segundo, porque, como tenho insistido neste espaço, o Real é exemplo de um tipo de transformação social duradoura de que apenas a velha e boa política democrática é capaz.
Em março de 1994, quando entrou em vigor a URV, Unidade Real de Valor, um indexador provisório corrigido diariamente e atrelado ao Cruzeiro Real, os índices oficiais registravam uma inflação de 42,75%.
Pessoas como eu, que nasceram em berço privilegiado, contavam com uma série de mecanismos formais e informais para se protegerem dessa alucinante perda de valor da moeda: compravam-se dólares, havia investimentos com altíssima liquidez, como o Overnight, que ajudavam a corrigir o valor do dinheiro guardado; contratos, como os de aluguel, sofriam reajustes mensais. Quem realmente pagava o pato de uma economia seriamente adoecida eram os mais pobres, que viam o valor do salário recebido no começo do mês se desfazer em pouquíssimo tempo e não contavam com reajustes de remuneração nem de longe no mesmo ritmo dos aumentos de preços. Sem contar que o descontrole inflacionário se devia, em grande parte, a um histórico de desequilíbrio fiscal que impedia o Estado de fazer investimentos sociais.
Por isso, vale a pena ler o
artigo de André Lara Resende, um dos pais do Real, na revista piauí deste mês, e também assistir a algumas das várias entrevistas que ele, Pedro Malan, Pérsio Arida, Edmar Bacha e Gustavo Franco têm dado ultimamente, sem esquecer das memórias de Fernando Henrique Cardoso - que foi o grande responsável por unir alguns dos melhores economistas brasileiros e fazer a costura política necessária à viabilização do Plano.
O Real não foi simplesmente uma troca de moeda, mas um conjunto amplo e complexo de medidas engenhosas que reestruturaram o Estado brasileiro e a economia, trazendo enormes ganhos para todos nós, mas sobretudo para os brasileiros mais pobres. Eles se livraram do imposto que a inflação cobrava de seus rendimentos e passaram a contar com um Estado que, embora ainda cheio de problemas, gradualmente tornou-se mais capaz de realizar algum investimento social.
Entre as mudanças promovidas, houve privatizações de estatais ineficazes e perdulárias, cortes de despesas, a criação do IPMF (Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira), que depois daria lugar à CPMF, e a instituição de mecanismos de controle sobre os bancos estaduais, que os governos usavam para se autofinanciar e eram fonte infindável de descontrole fiscal, inflação e corrupção. Restam hoje poucos deles, mas, naquela época, praticamente todos os estados brasileiros contavam com um ou mais bancos sob seu controle. Uma rápida pesquisa é suficiente para desenterrar os mais variados e cabeludos casos de corrupção.
Imagine o esforço e o custo político necessários para aprovar uma mudança dessa monta? Calcule a resistência de governadores e de toda a máquina política nos estados. Isso para ficar em apenas um exemplo da concertação política necessária para colocar em prática o Plano Real, mérito de Itamar Franco, FHC e sua equipe.
Fernando Henrique cometeu seus erros, dos quais o maior foi a aprovação, a alto preço e em benefício próprio, da emenda constitucional que permitiu a reeleição, mas é injusta a falta de reconhecimento que perdurou durante tanto tempo - a ponto do PSDB não falar do próprio Plano Real e esconder a figura do ex-presidente em sucessivas eleições. Parte importante dessa visão negativa se deveu também, claro, às críticas impiedosas de quase 16 anos de governos petistas - faz parte da política -, mas felizmente o reconhecimento recente vai colocando, aos poucos, a história em seu lugar.
Fundamental, sobretudo, é perceber que, para além das pessoas capazes e da boa ciência econômica, essa transformação ocorreu por causa da política, e não apesar dela. Collor, figura lamentável, fora, não obstante, um presidente democraticamente eleito e democraticamente removido da presidência por um Congresso democraticamente eleito. Substituiu-o Itamar Franco, um vice democraticamente eleito, e foi a política também que levou FHC, e depois Rubens Ricupero e Pedro Malan ao Ministério da Fazenda, para ficar apenas em alguns dos nomes.
Foram eles que, de maneira hábil, negociaram com todo o establishment político brasileiro. Mas foram sobretudo as instituições democráticas brasileiras que possibilitaram tal convergência para a aprovação das medidas que, ao longo de 1993 e 1994, trouxeram a estabilidade econômica que hoje tomamos como um fato da natureza. Não foi o autoritarismo dos militares, não foram soluções mágicas, não foi uma intervenção divina, não foi o Paulo Guedes dos que acreditam que os problemas do Brasil se resolvem com menos democracia.
A Constituição de 1988, o Sistema Único de Saúde, o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Bolsa Família, a manutenção das universidades públicas, o FIES, o Plano de Controle ao Desmatamento na Amazônia. Tudo isso só a democracia nos deu. O resto é papo de quem tem tesão por ditador.