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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

Projetor

Ainda é possível o diálogo?

| 27.05.25 - 15:50

Reprodução de documento do site arvoreagua.org

Dos meus amigos mais à esquerda, com frequência ouço frases como: “O agro é o inimigo” ou “O agro é a morte”. Dos amigos que tenho no agro, não são incomuns, de outro lado, comentários como: “A legislação ambiental inviabiliza o desenvolvimento” ou “O agronegócio é a locomotiva do Brasil e não pode parar”.
 
Para uns e outros, outros e uns representam o que há de pior no país, que estaria muito melhor caso uns ou outros desaparecessem.
 
Dadas essas duas miragens distópicas, de um Brasil sem o agronegócio ou de um Brasil sem legislação ambiental e ambientalistas, parece interessante um exercício de imaginação para tentar visualizá-las.
 
Como seria o país se, de um dia para outro, revogássemos toda a legislação de proteção ao meio ambiente e fizéssemos sumir, por mágica, todos aqueles que vocalizam a defesa da preservação?
 
Essa cogitação poderia tomar muitas direções, seguir vários desdobramentos hipotéticos e consequências, mas podemos nos ater a uma delas apenas: a eliminação de qualquer restrição ao desmatamento e queimadas. A partir de amanhã, todo proprietário rural estaria livre para dispor da cobertura vegetal de suas terras como bem entendesse, removendo-a ou incinerando-a. 
 
Nem o mais ortodoxo dos economistas (talvez alguns sim) diria hoje que o mercado é capaz de regular uma situação assim. A consequência seria obviamente um aumento desenfreado nas duas atividades, com impactos muito negativos para a coletividade, para o planeta e também para o próprio agronegócio.
 
Para ficar somente nas queimadas, os incêndios na vegetação da Amazônia e do Cerrado são hoje a principal fonte de poluição do ar na maior parte do Brasil - e isso porque, em tese, essas atividades têm uma regulação bastante estrita que só permite sua realização em determinadas condições e épocas do ano. 
 
A relação entre o tipo de poluição do ar causado pelas queimadas, em especial o chamado material particulado fino, e vários problemas de saúde é bem conhecida e firmemente estabelecida pela ciência, incluindo doenças respiratórias, cardiovasculares e câncer. 
 
Um estudo publicado, em 2021, na revista Nature Communications, pelo professor Weeberb Requia, da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getúlio Vargas, em parceria com colegas da Universidade de Copenhague e de Harvard, dá ideia do tamanho do problema. Ele mostrou, por exemplo, que, em momentos de picos de queimadas na Amazônia, há um aumento, que chegou a 23%, no período do estudo (2008-2018), nas hospitalizações por causas respiratórias, e a 21%, naquelas por problemas cardiovasculares, em todo o Brasil. Na região Norte, o crescimento é ainda maior, chegando a 38% e 27%, respectivamente.
 
Pior ainda, inúmeros estudos confirmam aquilo que sabemos: a poluição atinge de forma desigual as pessoas, sendo especialmente cruel com os grupos sociais mais vulneráveis, como pobres, crianças, idosos e indígenas. Um estudo feito em 2010, em nove estados amazônicos, liderado pela professora Elena Ignotti, da Universidade Federal do Mato Grosso, mostrou que um crescimento de 1% na poluição do ar por queimadas levou a  aumentos de 5% das hospitalizações entre adultos, de 8% entre crianças e 10% entre idosos.
 
Ao mesmo tempo, sabemos que a principal fonte de contribuição brasileira para os gases causadores do Efeito Estufa vem justamente do desmatamento e das queimadas. Segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), 46% de nossas emissões são causadas por mudanças na cobertura e uso da terra - e somos hoje o quinto maior emissor desses gases.
 
Os efeitos das mudanças climáticas que acontecem em nosso país evidentemente não se originam somente aqui, mas o desmatamento e as queimadas contribuem também para mudanças nas dinâmicas regionais, que se somam àquelas de escala global, para que a agricultura seja uma das maiores prejudicadas. 
 
Um estudo da pesquisadora Ludmila Rattis, do Woodwell Climate Research Center, publicado na revista Nature Climate Change, em 2021, mostra que o aquecimento e o ressecamento do clima nas fronteiras agrícolas da Amazônia e do Cerrado já colocam 28% das atuais áreas cultivadas fora do ótimo climático para a produção. Mantidas as tendências atuais, suas modelagens projetam que 51% dessas terras poderiam se tornar menos que ótimas em termos climáticos para a agricultura até 2030.
 
Diante disso, é estarrecedor que, a despeito do discurso sobre sustentabilidade nos sites de entidades como a CNA, o agro apoie em massa o PL 2159, aprovado no Senado na semana passada, para afrouxar as regras do licenciamento ambiental no país, incluindo aquelas para as atividades agropecuárias.
 
Todavia, de outro lado, se num passe de mágica livrássemos o Brasil do agronegócio, que país resultaria?
 

Reprodução de notícia publicada pelo Ministério Público do Estado do Mato Grosso sobre palestras do climatologista Luiz Carlos Molion.

Bem, o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, em parceria com a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil, estima que a cadeia completa do setor, o que inclui não apenas a produção da porteira para dentro, mas também seu beneficiamento na chamada agroindústria, responde por 23,8% do PIB brasileiro e por quase 27% de todos os nossos empregos.
 
Ainda que se deseje contestar tais números, não se pode negar que essa riqueza, além de ocupar mais de 28 milhões de brasileiros, assegura o superávit da balança comercial do país e é um pilar fundamental de nossa economia.
 
Portanto, parte significativa da qualidade de vida de que o crítico contumaz do agronegócio desfruta desapareceria junto com esse hipotético sumiço do setor. São serviços e bens disponíveis em diferentes lugares que simplesmente não existiriam se não houvesse a renda do agronegócio para consumi-los. Isso sem contar os empregos indiretos gerados, por exemplo, no boom da construção civil em cidades como Goiânia, que também se apoiam, em parte, sobre a riqueza produzida pelo setor. 
 
Menos hipocrisia e menos cegueira dos dois lados seriam virtudes essenciais para construirmos um futuro para o país. Essas qualidades encontram-se todavia severamente em falta na arena política. No ambiente polarizado que vivemos, é como se cada metade enxergasse uma realidade completamente diferente. 
 
De um lado, há um futuro luminoso assegurado pelas inovações tecnológicas que o círculo virtuoso da própria produtividade agrícola vai naturalmente gerar. Nessa utopia do progresso, os impactos ambientais da agricultura serão superados por inovações tecnológicas que trarão ainda mais produtividade sem degradação do meio ambiente. Aqui, o agricultor é protagonista e herói dessa segunda Revolução Verde, que conciliará produção e sustentabilidade ambiental.
 
Na metade à esquerda da fotografia, em direção contrária, o futuro é distópico, com exacerbação da degradação ambiental e das desigualdades sociais, todos nós sucumbindo ao apocalipse climático. De cá, o ativista é o herói que se imola na fogueira das queimadas após o fracasso da sua versão da Revolução Verde, onde o último agricultor seria enforcado com a mangueira de seu pivô central. Morreu o ambientalista, mas seus altos princípios ficaram intactos.
 
Evidentemente, nenhuma das duas projeções idealizadas se sustenta diante da realidade. Em um Brasil ou um mundo em que ainda existirem pessoas, a agricultura continuará necessária. E, para que a agricultura possa prosseguir, são fundamentais um clima adequado, água abundante e terra fértil, serviços oferecidos pelo meio ambiente.
 
Como trabalho na área ambiental, ouço muito mais de meus amigos e pares a negativa ao diálogo com o agronegócio, mas sei que, do lado de lá, a postura tampouco é distinta. Para ambos, cada vez mais, a ideia de se sentar e debater ideias com o diferente é vista como uma capitulação ou como uma legitimação que esse outro não merece. 
 
Mas será tão difícil enxergar que, quanto mais nos recusarmos a esse diálogo, mais o outro lado aprofundará sua visão e suas práticas que negam o mundo real? Não haverá Brasil sem agricultura, nem sem natureza, mas sobretudo não haverá Brasil sem que recuperemos um ambiente de diálogo democrático, onde seja simplesmente natural um agricultor e um ambientalista conversarem.
 
Afinal, acreditamos de verdade em democracia ou ela já é somente uma palavra vazia nos discursos inflamados de ambos os lados?

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