A participação política é o motor da democracia, mas ela pode também ameaçar sua estabilidade?
Mais do que instrumento para a conquista de direitos, a participação política é parte constitutiva do próprio desenvolvimento, entendido como a melhoria generalizada das condições de vida de uma sociedade. É o que mostram estudos fundamentais em campos tão distintos quanto a economia e a ciência política.
Em um
estudo célebre publicado em 1993, o cientista político
Robert Putnam, da Universidade Harvard, mostrou como as diferenças de desenvolvimento entre o norte e o sul da Itália estavam ligadas aos níveis de participação cívica e à densidade das redes comunitárias. No norte, a vida associativa mais vigorosa havia criado governos regionais mais eficazes no pós-guerra. Putnam é também autor do famoso
Bowling Alone (2000), em que analisa o declínio da vida cívica nos Estados Unidos e os riscos decorrentes desse enfraquecimento.
O Nobel de Economia
Amartya Sen, por sua vez, entende a participação política não apenas como algo instrumental — um meio para evitar crises e melhorar políticas públicas —, mas também com valor intrínseco: é parte constitutiva da liberdade e condição para uma vida significativa.
Mas nem toda forma de participação política é virtuosa. Basta pensar no apelo de movimentos fundamentalistas ou autoritários — e, no caso brasileiro, na barbárie bolsonarista do 8 de janeiro de 2023.
Putnam, e depois estudiosos como
Michael Woolcock e Deepa Narayan, mostraram que a vida democrática depende de três tipos de laços entre cidadãos, grupos e instituições: as conexões intragrupais, os elos entre grupos sociais distintos e os vínculos verticais entre sociedade e Estado. Democracias saudáveis combinam uma boa dose dos três. O desequilíbrio — excesso de uns e escassez de outros — fragiliza a estabilidade democrática.
Essas ideias ajudam a compreender o enfraquecimento contemporâneo de tantas democracias, incluindo a nossa. A polarização política, por exemplo, pode ser vista como o fortalecimento dos laços identitários internos a determinados grupos e o enfraquecimento simultâneo dos elos entre grupos, que sustentam a tolerância fundada no reconhecimento das diferenças. Além disso, grande parte da desconfiança em relação à democracia nasce da percepção da distribuição desigual dos vínculos verticais, que resulta na captura do Estado por interesses particulares, alimentando a corrupção e a desigualdade.
Nesse sentido, o valor da participação política depende do equilíbrio e da distribuição entre os três tipos de laços que constituem o chamado “capital social”. O problema que vivemos hoje — e não apenas no Brasil — é um círculo vicioso: a desigualdade no acesso ao Estado enfraquece os elos entre grupos e fortalece laços intragrupais cada vez mais tribalizados, baseados em identidades primárias como sexo, cor, religião ou família.
A política tribalizada oferece recompensas fáceis: o mundo complexo se reduz a pares binários — bem e mal, nós e eles, virtude e pecado. Nesse processo, regredimos à infância da política, em que predomina a culpabilização do outro, e não a responsabilização pessoal. A política se desvirtua, transformando-se, no plano social, em guerra, e no plano estatal, em corrupção.
Não surpreende que, nas extremidades do espectro político, à direita e à esquerda, se valorize de forma acrítica a “ação política”. O bolsonarista acampado pedindo golpe e o militante esquerdista que recorre a linchamentos virtuais compartilham algo em comum: a certeza de estarem do “lado certo da história”, a visão do adversário como inimigo e o desprezo pelas instituições democráticas — ainda que em nome delas.
Antes que me acusem de preconceito com palavras, o tribalismo a que me refiro se circunscreve à nossa dita “sociedade moderna”, por falta de melhor termo para designá-la. Não carrega qualquer traço de comparação com as sociedades indígenas que, na maior parte dos casos, organizam-se politicamente de forma bem mais competente, sem desigualdades sociais e sem desequilibrar o planeta.
O nosso desafio, portanto, não é apenas garantir a participação política, mas assegurar que ela se dê em bases equilibradas: fortalecendo a solidariedade interna, ampliando as pontes entre grupos e renovando a confiança nas instituições. Sem isso, a democracia deixa de ser um projeto coletivo e degenera em trincheiras identitárias. Recriar os vínculos entre sociedade e Estado, revalorizando a política partidária e institucional, é por isso talvez a tarefa política mais urgente do nosso tempo.