Goiânia - Foi a primeira vez que cobri acidentes com vítimas fatais. Meu estômago embrulhou quando a produtora me ligou, quando eu estava ainda no camarim, para me dizer que eu não falaria mais sobre o aniversário do Jardim Botânico. Mas sobre três pessoas mortas no anel viário. Nesses momentos sempre me questiono se me falta coragem para ser repórter ou se me sobra sensibilidade para tal.
No caminho me lembrei da primeira vez que a reportagem me levou a ver alguém com buracos de bala no corpo, estirado no chão. Demorei mais de mês para que a cena fosse lembrada sem me causar tristeza e pensar no pretérito (mais que) imperfeito do garoto cujo documento de identidade mostrava que era mais novo que eu.
Depois me lembrei da primeira vez que estive de frente com um menor que comete crimes. Aquele que aterrorizou Goiânia com o tal arrastão. Estava acompanhado de outros menores. Eu queria mesmo era entender o que tinha levado aquela meninada a enfrentar uma delegacia. Era um menino que me alertava que meus cinco reais estavam caindo do meu bolso. “Ô moça”, se referiu a mim mexendo a mão algemada. “Tá caindo, você vai perder”, me alertou sobre a nota pendurada no bolso da calça.
Olhei de volta para o endereço da ocorrência. Então pensei que era só um acidente. E acidentes sempre acontecem. Acontecem com todo mundo. Na China, na Alemanha. Com pobres, com ricos. Eu não havia de me questionar sobre os problemas que vão além da ocorrência. Não dessa vez. Mas não era só um acidente.
A mãozinha de uma criança de cinco anos esticada para fora do lençol que a cobria. Ao lado, o pé do avô coberto pela meia preta. Sabe meia fina? De quem usa com sapato para trabalhar? Por metros escorria o sangue que passava ao lado do pé e se juntava ao sapatinho vermelho da mãe da criança, estirada metros a frentes. Ela ia trabalhar. Aquele sapatinho de quem vai trabalhar. Meia, sapato, rotina. Ninguém espera que um dia a imprudência, que sempre deu certo, um dia não dê.
Mas não seria imprudência! Alguém bradaria. Seria jeito de dar jeito na vida! Um morador reclamou. Outro viu a câmera, parou a bicicleta e quis falar. Quis falar pelos três, quis falar por todos. "Hoje vocês estão aqui para mostrar. Mas isso acontece sempre", reclamou.
O jeito, então, seria atravessar a avenida, por onde trafegam caminhões e outros veículos em alta velocidade, dirigindo uma moto com três pessoas. Entre elas, uma criança sem capacete. Sem retornos ali por perto, as marcas na ilha indicavam um retorno não-oficial, mas utilizado a cada cinco minutos pelos motoristas da região.
Veio, então, a pergunta do fim da entrevista. Aquela que encerraria a matéria e que poderia ter me deixado satisfeita, sem vontade de encontrar os moradores que me diriam que aquilo não era uma fatalidade. Aquela pergunta desimportante. Aquela feita por curiosidade ou para preencher o texto. Perguntei por curiosidade mesmo. “Acontece sempre?”. “Com certeza. Não há retornos. Não há redutor de velocidade”, um policial tentou justificar a dor de quem chorava a perda do padrasto, cunhada e sobrinha ali sentado na calçada pouco a frente.
Pouco distante dali, na delegacia, a expressão de susto de quem acabava de tirar três vidas. Ele só estava indo trabalhar. Pela mesma via – sem redutor, sem quebra-molas, sem retornos e faixas de pedestre. Como todo dia. Mas naquele dia foi diferente. Um movimento brusco. Fechou os olhos. Abriu. Era um assassino.
Um pouco mais distante dali, alguém fechado entre grades não sabia que acabava de perder o pai, a mulher e a filha. A moça, vinte e dois anos. A filha, dois anos e meio. O sogro, levando a nora para o trabalho e a neta para a casa da avó.
Não era mais um acidente. Isso não acontece em qualquer lugar do mundo.
Isso acontece onde não há retornos, redutores de velocidade e quebra molas. Acontece onde o jeito de dar jeito na vida é colocar três pessoas em cima de uma moto. Onde para conseguir chegar em tempo no trabalho é preciso sair de casa antes das seis horas da manhã e furar caminhos porque não há retornos.
Acontece onde não há creches no trabalho. Onde a mãe tem que se virar com os filhos quando o pai está preso. Tem que encontrar com quem deixar filho para poder, no fim do dia, ter pão na mesa de casa.
E se tivesse um retorno? E se tivesse um transporte público decente e aquela moto não precisasse transportar três pessoas? E se tivesse um redutor de velocidade? E se o pai não estivesse preso e pudesse ajudar a cuidar daquela criança?
Aquilo não foi um acidente.