Goiânia - Fui uma criança que não teve muitos brinquedos. Defina "muitos". Embaraço-me. Ouso dizer que não tive muitos brinquedos se me comparar com outras crianças de minha geração ou meu próprio filho hoje. Meus pais não eram pobres, mas também não nadavam em dinheiros. Vivíamos, na década de 70 e no início dos anos 80, em um outro tempo, em que o consumismo ainda não se alastrara pelo país, em que a indústria não tinha se desenvolvido tanto, em que o material plástico não se disseminara, em que não havíamos sido invadidos pelos produtos made in China.
Meus pais eram aquele tipo de gente austera e econômica, gente da roça, que produzia grande parte do que consumia, comprava o essencial, e não admitia esbanjamentos e desperdícios. Hoje, na maternidade e na quarentice, se não aprendi a ser como eles, vejo sentido na forma como agiam e me sinto presenteada por me recordar com ternura de cada brinquedo ou pelo menos da maioria que tive.
Lembro-me, por exemplo, de uma pequena boneca amarela que ganhei de uma tia. A bonequinha era mesmo interessante, de uma ingênua engenhosidade, se comparada às maravilhas tecnológicas de hoje. Você girava o pompom no alto de sua touca e ela mudava de expressão. Havia uma cara de alegria, uma de raiva e outra de choro. Havia não, há, visto que, não obstante as intervenções artísticas e cirúrgicas a que foi submetida, ainda permanece viva na sua integridade de brinquedo.
Os rostinhos foram maquiados com caneta. Curiosa por saber como era lá por dentro, debaixo da touca, cortei-a, abri-a e deparei, decepcionada, com a boba engrenagem. Eram apenas três carinhas, uma de cada lado. Antes tivesse permanecido mistério. Ou não. Escarafunchar também é bom, vasculhar por dentro, mesmo que o que a gente encontre nem sempre seja bonito ou surpreendente, que sejam apenas as mesmas e humanas emoções de todos desde sempre.
Entre outros brinquedos de que não me esqueci - tenho mesmo certeza de que não foram muitos? - estava um pequeno piano, que pedi ao meu pai para que comprasse, pois maravilhava-me a ideia de que as pessoas pudessem tirar música de seus próprios dedos. (E pensar que, com minha impaciência e duas mãos esquerdas, só quando me hospedar em novo corpo aprenderei a tocar piano, o mais belo dos instrumentos). Havia também a boneca Mônica, a personagem dentuça e mandona de Maurício de Sousa, cujas histórias em quadrinhos eu também adorava e que talvez tenham me inspirado a sair dando coelhadas por aí.
Contudo, apesar das divagações, o sentido deste texto, que conversa com meus botões, não é falar de minhas bonecas. Tenho, por outro lado, certeza de que, à força de meus exemplos, neste momento, você que lê está revirando os armários da memória à procura dos brinquedos que marcaram sua infância e estou certa de que encontrará muitas e belas recordações. Acredito, porém, que mais do que as lembranças das bonecas, carrinhos e jogos, irá se refestelar com as reminiscências das brincadeiras de que participou. Essas sim não são corroídas pela passagem dos anos, resistem às violências praticadas pelo tempo.
Mais do que brinquedos, nossas melhores recordações da infância estão associadas à forma e com quem brincávamos. Por isso, embora eu não tenha tido muitos, brinquei muito na infância. Brinquei com primos, nossos primeiros amigos, apertando campainhas e roubando flores das casas. Brinquei livre na fazenda, sobre as gameleiras tatuadas com nomes de meninos e imaginários namorados; pelos quintais, catando pedaços de louça e pedras, depositando-os em cofres cavucados nos caules das bananeiras; fazendo cemitério de passarinhos e pintinhos encontrados mortos; guardando olhos de lambari em caixas de fósforo com talco; fabricando boizinhos de limão e espinhos, bonecas de caroços de manga e espigas de milho.
Mas, não, não pense que me recordo de tudo isso, querendo adotar aquele discurso nostálgico e pessimista. Longe de mim afirmar que as crianças de hoje não brincam como as de antigamente ou que as crianças de cidade não se divirtem como as da roça. As crianças brincam e se divertem como sempre se divertiram desde a infância da humanidade.
Vejo, por exemplo, meu menino das cavernas que, nos seus cinco anos, brinca de fazer suas pinturas rupestres pelas paredes e móveis do apartamento, para meu desespero e ao mesmo tempo orgulhoso contentamento. Observo-o tranformar em brinquedo qualquer objeto que encontra, uma caixa, um pedaço de madeira, um vidro, descobrindo para eles novos usos e significados. Lembro dele ainda bebê levando uma migalha de pão à altura do orelha e simulando falar ao telefone, porque, afinal tudo é brinquedo quando a gente imagina ser.
A gente é que, arrastada inconscientemente pelo consumismo de hoje, pensa que precisa dar aos nossos filhos o maior número de carrinhos, jogos, equipamentos eletrônicos. Esquece-se de que um pouco de frustração por não ter o mais novo lançamento faz mais bem do que mal, porque ensina a importância de fazer escolhas, ensina que há limites para a satisfação dos desejos. Que tal lembrar que é divertido exercitar a imaginação, que brincar não é necessariamente ter brinquedo?