Goiânia - O perdão, conhecido pelos cristãos, é concebido por muitos pensadores como uma faculdade política. Hannah Arendt, pensadora política judia, dizia que foi mesmo Jesus Cristo quem ensinou tal papel político do perdão. Ao contrário do que o Cristianismo ensina, o perdão não é aquilo que se faz no silêncio e na intimidade. Mas se dá entre os homens, no espaço público.
Arendt, que assistiu de perto ao Terceiro Reich, mesmo diante de todo horror o qual tentou compreender até seus últimos dias, não deixou de acreditar na humanidade. Na capacidade do homem em empreender novos começos. Ou, ainda, na possibilidade de milagres na política. É por isso que Arendt apostou no perdão como faculdade política. Para ela, é o perdão que permite que os homens não fiquem presos aos seus próprios erros pelo resto da vida.
Nelson Mandela soube bem o papel político do perdão. Perdoou o que parecia imperdoável. A violência física e simbólica de uma segregação racial. Não poder beber água no mesmo bebedouro. Não poder cruzar a mesma calçada. Quanto mais ter os mesmos empregos, cargos políticos e formação. Ao perdoar, mostrou ao mundo que milagres são mesmo possíveis na política.
Ficou 27 anos preso. Não saiu de sua cela enquanto a sua liberdade não implicasse na liberdade de todos os negros. Enquanto o mundo não reconhecesse o terrorismo racial de um regime odioso - reconhecimento que pressionou o recuo da minoria branca. Foi de dentro de uma cela que provocou a luta nacional contra a segregação racial que ganhou eco em todo o mundo.
Foi preso ali que resistiu e negociou. Liderou um povo todo contra violências causadas pela cor da pele. Foi preso que foi impedido de ir ao funeral da mãe e do filho. De ver sua esposa e filha por mais que duas vezes ao mês. Quando, enfim, conquistou sua liberdade e a de um povo inteiro, era apenas um início.
Mandela, ao sair da prisão e ser eleito o primeiro presidente negro da África do Sul, demonstrou a virtude de um líder político. Não alimentou a sede de ódio e de vingança de um povo doído, machucado e tomado por décadas violentas. Pelo contrário, inspirou em todos a necessidade de viver reconhecendo no outro a pluralidade humana.
Nesse dia, recomendo a quem lê esse texto assistir ao filme “Invictus”. Então vão entender o que digo a partir de um roteiro simples, mas belíssimo: Mandela fez um povo negro apoiar um time de rugby essencialmente branco. E um time de rugby essencialmente branco se sentir parte de país de negros.
Mandela perdoou sua injusta prisão e os demais crimes cometidos durante o Apartheid, quando presidente. Do outro lado do perdão, foi constituída uma comissão de verdade e reconciliação para elucidar e compreender todos os crimes. Para que o país não ficasse preso ao passado. Foi perdoando e "ensinando" o perdão à sua nação, que possibilitou novos inícios à África do Sul. Livrou o país das consequências eternas dos erros ali cometidos, que poderiam ter conduzido a uma tirania da maioria. A uma violência de negros contra brancos, como brancos provocaram contra negros.
Há três anos tive a oportunidade de estar em terras sul-africanas. Foi quando estive no Museu do Apartheid, um dos museus mais fantásticos que já visitei. Foi difícil (quase bizarro) dar um sorriso para foto na saída do museu, porque a visita é uma pancada histórica na alma. A violência da segregação exposta em cada vídeo, objeto, depoimento e foto me fizeram olhar para Mandela e compreender, de uma vez por todas, a razão de sua grandeza.
Contra armas de fogo de brancos, os negros lutavam com armas tribais. Em 1990. A simbologia dessa luta é muito grande. Tudo isso registrado em vídeos. A simbologia da segregação em cada elemento cotidiano é violenta. Perdoar aquela bizarrice e abrir novos caminhos para África é mesmo um ato de muita nobreza política.
Passar alguns dias na África do Sul me provocou emoção e apreensão. Um povo que ainda traz na boca o nome de um líder a todo tempo. Madiba era o som que saia com amor da boca de cada um que assim o chamava. No táxi, na esquina, no supermercado. Um povo que credita à sua luta, a luta que viveram para, enfim, gozarem da liberdade que vivem (que mesmo distante de uma liberdade desejada, afasta-se da repressão que viviam).
Um povo que, em nome de Madiba, ainda pedem paz. “All we want is peace”, era o discurso que ouvia de qualquer um nas ruas. E por isso mesmo deixei Pretoria com coração apertado, tomada por uma apreensão. Com exceção do aeroporto, não vi mais que dez brancos por onde estive em pouco mais de dez dias. Vi o gerente do banco e vi a gerente do supermercado. Os brancos ainda estão nos seus guetos. Os negros também. O Apartheid saiu das leis, mas se mantem no simbolismo.
Você se lembra de quando Collor confiscou poupanças? Lembra-se da estreia da MTV? Lembra-se de Carrossel? Pois então, ainda havia guerra na África do Sul. Foi quando Mandela deixou a prisão. Recente, recentíssimo. O país ainda se divide em negros e brancos, apesar de todo esforço de Mandela e de seu povo. Apesar do perdão e dos novos começos.
Quando eu deixava a África do Sul, há três anos, e o país sumiu dos meus olhos pelas janelas do avião me deu um nó na garganta. Um medo de tudo ser retomado. Lembrei-me de outro pensador político. Tocqueville dizia que ser livre implica em fazer-se livre. Pensei que à sombra de Madiba, a nação sul-africana ainda carregava a difícil tarefa de não permitir uma nova escravidão.
É por isso que Mandela não morreu. Morrem homens que não são mais que corpos e vidas biológicas. Que vivem para reproduzir e satisfazer desejos materiais. Mandela vive na liberdade que se fez na África. Madiba vive no perdão.
Mas vive também na liberdade que ainda está por vir ali e em todo o mundo. Naquela que ainda não chegou à África do Sul; aquela que não está na lei. Mas no respeito, no reconhecimento, na valorização da pluralidade de uma nação. Vive nas mazelas de sua nação. Madiba vive em Amarildos nas Rocinhas e em tantos negros torturados e mortos em nossas favelas.
Vive na abundância de negros nos empregos subalternos no Brasil. Vive na falta deles nas universidades e nos ambientes de poder. Madiba ficou na história. Seu perdão e sua luta ficaram para que a gente a continue. E ainda tem muito a fazer.
Descanse em paz, Madiba. Pelo meu país, onde tantos negros ainda vivem a desigualdade e o desrespeito pela cor. Pela minha raiz, que faz meu coração bater mais forte a cada vibração de um tambor e um canto africano. Ou simplesmente por ser humana, Madiba, você também foi meu líder.