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Cássia Fernandes
Cássia Fernandes

Cássia Fernandes é jornalista e escritora / lcassiaf@gmail.com

Alinhavos

Tesouros escondidos atrás daqueles morros

Anotações e divagações de um leitor-fêmea | 30.01.14 - 21:48
 
Goiânia - Enquanto lia e principalmente assim que terminei de ler o belo romance “Naqueles morros, depois da chuva”, de Edival Lourenço (editora Hedra), vencedor do Prêmio Jabuti em 2012, quis escrever sobre ele. Mas como ocorre com a maioria das leituras que me encantam, vou adiando, protelando.

Às vezes isso se dá, porque o lápis que deveria me acompanhar para que eu fizesse anotações no próprio livro desaparece desastradamente, evadindo para aquele misterioso mundo subterrâneo onde também habitam as canetas desaparecidas.

Outras vezes, o silêncio se instala, simplesmente porque meu senso crítico me aponta que não sou qualificada para tanto, para construir uma verdadeira crítica literária, digna do nome, recheada de citações acadêmicas, intertextualidades, e que faça jus às qualidades da obra. 

Leia mais:
Edival Lourenço: "Meu trabalho é filho da tradição literária"
 
Sou na verdade um grande consumidora de ficção, um leitor-fêmea, daquela categoria a que se refere Julio Cortázar em seu "O Jogo da Amarelinha". No raso e no fundo, o que gosto mesmo é de uma história bem contada, a forma tradicional do romance, uma narrativa com início, meio e fim, que não desafie demais os meus pobres dois neurônios, unidos para formar uma dupla sertaneja, que aliás não exija demais do único remanescente,  pois dizem que nossos neurônios femininos morrem depois de uma gestação e um dos parceiros veio a óbito com a única delas, fazendo agora carreira solo.
 
Embora não creia que todo leitor-fêmea iria apreciar "Naqueles morros", ele me muito me agradou, assim como outro bonito livro "Lygia entre os dragões", do amigo Itamar Pires Ribeiro, que li há cerca de um ano e cuja resenha também protelei e não escrevi.  Pelo menos os livros, nos dizeres do narrador de Itamar, são dos "objetos mais pacientes que pudessem existir".

Apesar de não tê-lo resenhado ainda, depois que o li, nunca mais  vi a cidade de Goiânia com os mesmos olhos, nunca mais passei perto do Lago das Rosas sem me lembrar do terrível doutor Aquiles e das pobres rosas da noite que colhia. Nunca mais contemplei um desses Fícus gigantes que há pelas ruas da cidade, sem considerá-los " um aglomerado de árvores", "uma árvore que guardava a noite dentro de si", "uma árvore do destino". 
 
Mas meu problema com resenhar livros é, se não a gana de escrever meus próprios, a compulsão que faz dos escritores um seres de exacerbado egoísmo, adiadores e retardatários – alguns querem ser escrevedores sem ser antes leitores –  o fato de que os bons sempre me provocam a sensação de não tê-los fruído ao máximo e adequadamente. Fico assim tentada a relê-los de imediato, e voltar a relêlos e "rerrelelelos". E eis algo que não faço tão cedo, apenas mais tarde, às vezes decorridos anos, por pura questão de princípio. Explico-me. Há tantos bons textos ainda para ser lidos que para isso é insuficiente uma vida.
 
Ademais, necessito de um tempo para que as palavras repousem e e se instalem em mim.  Ocorre com a literatura talvez o que se dá com os encontros amorosos. O primeiro encontro pode ser intenso, prazeroso, mas lhe faltará o afrodisíaco imaginoso do tempo. Será necessário recordar de um livro, como de um homem, vezes seguidas, passar a areia pela bateia, para que o tempo o depure e mim e reste dele a durabilidade dourada de sua essência.  

Nem com todos os livros, naturalmente, ocorre isso. Leio e na manhã seguinte já não me recordo de nada. Mas em felizes casos, me lembro de uma atmosfera, um episódio, um personagem e aí  essas vozes narradoras, esses seres imaginários, esses trechos transformam-se em excitação, em citações que carrego para a vida toda e que menciono repetidamente.Tornam-se  "leit-motiv" e espécies de parábolas aplicadas à vida. 

Mas vamos lá falar de "....depois da chuva".  Resolvi não esperar 20 anos para relê-lo, como fiz com Anna Karenina, de Tolstói, de tal forma que nessa releitura, em vez de me encantar por Anna, me apaixonei por Liêvin. Outro problema é que, como resenhista, sou ótima divagadora.

O título do livro de Edival já é por si só sugestivo, fazendo referência ao Eldorado, à cidade dourada perdida sempre procurada e nunca encontrada. Nos tempos da colonização portuguesa, nossa  terra Goyazes parece ter sido um dos últimos eldorados com que sonhavam os lusitanos. O pai do bandeirante Anhanguera lhe contara que, tendo perguntado a um velho índio onde se encontrava o ouro, recebera a seguinte resposta: 
 
" Naqueles morros, depois da chuva'. Aquela frase enigmática firmou nele o que parecia ser, para sempre o ardor pela aventura e a sede pela descoberta de tesouros"
 
Só por esse início, os primeiros sinais de um mapa de tesouros, já fiquei encantada, mas logo mais adiante vem, para dar prosseguimento a meu encantamento, o encantador de serpentes, a revelação de que o narrador é um filho bastardo do Anhanguera e que, como bom narrador, conversa mais do que o homem da cobra. E eis a missão que cabe ao pobre coitado e capado: ser sentinela durante as expedições pelo sertão, ao lado do novo governador da Província de São Paulo e Minas dos Goyazes, Dom Luís;
 
"Para que Messalina não me enforque com os cipós do próprio corpo, é preciso que eu domine sua respiração, com a mão direita em volta de seu pescoço e o polegar, sovina válvula, controlando a passagem de ar em sua garganta. Na justa medida. Regrado. Nem de mais, nem de menos. Se eu apertar em excesso ela sufoca e morre. Mas o pacto é sinistro. Se ela morrer à noite, na manhã seguinte quem não escapa sou eu: os oficiais de ordenança têm ordem expressa de vingar a cobra. Se eu apertar de menos, não alcanço a manhã para morrer. Messalina mesma cuida de me enforcar o quanto antes, pois é isso o que de melhor ela sabe fazer. Nesse equilíbrio de terror, confesso, não tenho conseguido dormir, nem me esforçado tenho para tal. E assim a sentinela se faz. E assim é que tem de ser."
 

 
Que interessante é a composição da figura desse narrador-personagem que precisa estar sempre alerta para sobreviver e que ao mesmo tempo, para manter-se vivo, precisa fingir-se de morto, uma vez que a vida de um escravo liberto não vale grande coisa. Os maus tratos que sofre, a própria castração transformam-no num grande contador de histórias, o que nos leva a supor que a falta de culhões pode encher os homens de muitas curiosidades e coragens de linguagem:
 
"Agora, outra transformação que tive: o interesse que perdi pelas mulheres, ao perder os bagos, ganhei-o em dobro, sem fingimento, pelas informações picantes que as envolvem."
 
A linguagem, aliás, mais até do que a história contada, foi que me deixou enlevada. Edival jamais chama as coisas por seus nomes ordinários. Há algo nele que me recorda João Ubaldo Ribeiro em "Viva o povo brasileiro", Manoel de Barros e até Guimarães Rosa. Contrariando a orelha do livro, que o compara a José de Alencar ("O Guarany"), Manoel Antônio de Almeida ("Memórias de um sargento de milícias"), acho que a gente sempre procura nos autores de que gosta semelhanças de traços com outros autores que ama, como procura no rosto de um novo amor as sobrancelhas do anterior ou do mesmo.
 
Assim,  no linguajar lourenciano, o decadente Arraial da Barra  parece "uma aglomeração de ninhos abandonados de alguma espécie de ave gigante"; as mulas recebem "cuidados de pedicuro"; Dom Luís, tem um baú onde guarda seu conjunto de "à-toezas  pessoais", entre os quais estão objetos de barbear, e roupas de fidalgo que lhe salientam "a musculatura e seus calombos de macho".  

No universo de Edival, que é o universo do Brasil colonial, há "primas espancadas de feias"; há uma moça tão sem graças que parece uma "curicaca depenada"; há bandido que "vai indo no trote de si mesmo como tartaruga barbuda que se alevantou"; e houve até um "ANTERIOR CAPITÃO-GENERAL, que por estas soltas se aventurou, veio da província de São Paulo, de mula, e voltou de vento: só a alma".
 
Tais brincadeiras linguísticas me arrancaram muitos sorrisos recatados e regateiras risadas, não sem que eu que deixasse de nutrir aquela pontinha de inveja, ou antes emulação de que falava Aristóteles, pois meu sonho sempre foi escrever um romance épico,  que resgatasse um pouco de nossa história,  dos causos de nossas famílias, que são tão bonitas quanto os de Robson Crusoé, que mencionasse os rios que passam pela minha aldeia, e que se não aparentam tão bonitos e grandiosos quanto Tejo, são os nossos rios que passam pelas nossas aldeias sertanejas.
 
 Edival escreveu o romance épico que nos faltava. Além da minuciosa pesquisa histórica, ele desenvolveu uma linguagem singular, condizente com o tempo em que transcorre a narrativa. Construiu também um romance fundamental para quem queira conhecer um pouco dos costumes da época do ciclo do ouro, da história desse estado entranhado nos ocos do Brasil e que tantos brasileiros ainda ignoram. Certamente nunca mais irei olhar com os mesmos olhos para a Serra Dourada, para a cidade de Goiás e seus arredores, para Pirenópolis, antiga Arraial de Meia Ponte, para nossos Pireneus dos trópicos.
 
Concluí  a leitura com a sensação de orfandade ou viúvez que temos com o fim dos livros e pessoas que amamos, e também com a impressão de que, como goianos, somos uns filhos  mestiços bastardos e por muito tempo até castrados do ciclo do ouro. Alforriados mas ao mesmo tempo acorrentados às ordens e modas que El Rei nos dá.

 O narrador-personagem, mantendo-se desperto, nos provoca um despertar tanto no aspecto histórico, de resgate de nossa cultura, como no aspecto humano, existencial. Como goianos, como artistas, como humanos, devemos ficar atentos, para não cochilar, não cair em sono profundo e não sermos enforcados pela cobra do esquecimento.  
 
Nossa história não foi assim uma história tão bonita de lembrar, foi antes uma história de crueldade e expoliação, na qual não houve exatamente heróis. Porém,  a boa  obra de arte como essa alcança, não só a garimpagem,  mas a alquimia de transformar a merda em puro ouro.

Edival faz isso, vai longe no tempo, recua até onde o metal nobre estava, naqueles morros depois da chuva, para nos mostrar que o ouro, o verdadeiro ouro do espírito, continua aqui, basta aprender a lavrá-lo. Um consolo para a aridez desses cerrados, tão queimados e devastados, que padecem da indiferença à leitura e da memória em ruínas de sua cultura.  Parodiando  a parlenda que serviu de epígrafe ao livro Sagarana de Guimarães Rosa: 
 
"Para além daqueles morros,
passa boi,
passa boiada,
repousa grande tesouro
de tanta gente ignorada"
 
Aqui nesse planalto central, muito longe dos grandes morros de São Paulo e Rio de Janeiro, escondem-se tesouros insuspeitados.
 

Comentários

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  • 06.02.2014 07:25 Cássia Fernandes

    Que bom, Rogério. Ainda não li Aristófanes, Nuno.

  • 04.02.2014 09:26 Rogério Martins

    Curiosamente, terminei a leitura de uma obra de Edival Lourenço na semana passada. Com sua resenha, o autor volta a ser o próximo da fila.

  • 03.02.2014 07:18 Nuno Cavaco

    Vem à memória "Pluto" de Aristófanes.

  • 01.02.2014 09:27 Cássia Fernandes

    Marcelo, Marcelo, Marcelo, fico contente por, com meu neurônio absoluto, ter conquistado um leitor ou quem sabe três leitores para o livro de Edival. :)

  • 31.01.2014 18:57 Marcelo

    Acho que fui seduzido pelo neurônio absoluto. Após ler esta resenha, só me resta comprar o livro.

  • 31.01.2014 18:54 Marcelo

    Acho que fui seduzido pelo neurônio absoluto. Após ler esta resenha, só me resta comprar o livro.

  • 31.01.2014 18:52 Marcelo

    Acho que fui seduzido pelo neurônio absoluto. Após ler esta resenha, só me resta comprar o livro.

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