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Nádia  Junqueira
Nádia Junqueira

Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com

Ora, pois!

A rua é nossa

E os problemas dela também | 20.05.14 - 16:16 A rua é nossa (Foto: Bernd Marold)
Goiânia - Na noite de sábado (17/5) para domingo eu tive um pesadelo. Sonhei que estava numa cidade diferente, num outro país e precisava entrar num carro alugado e ir para o aeroporto voltar para casa. Mas o problema é que não conseguia sair do hotel. Eu temia ser assassinada.
 
Nas ruas, todo mundo se matava. Não era uma guerra, não tinha uma causa. Um olhava para cara do outro e, não gostando, podia matar. Não tinha lei, não tinha respeito, não tinha nada. Todo mundo podia se matar, se assim desejasse. E eu temia que alguém não fosse com minha cara. O sonho não foi descontextualizado. 
 
Na noite anterior, exatamente às 21h40 eu estava sentada em uma esquina do Setor Pedro Ludovico ao lado do picadeiro onde acontecia uma das diversas apresentações da programação do Festival Galhoafada. Um festival de arte de rua que acontece há onze anos e, definitivamente, é o evento de arte que mais admiro nessa cidade. Encabeçado pelos admiráveis Marcos Lotufo e Edith, reúne quem quiser chegar.
 
A programação é extensa. São muitos artistas de circo, dança, teatro e música que topam se apresentar gratuitamente para a comunidade do Setor Pedro. Gente de pouca ou muita estrada. Artistas cujos cachês podem ser muito altos. Mas ali, não. Tudo é feito de graça, com muito esforço e vontade.
 
Todo mundo deseja participar do evento. Os artistas se envolvem, esperam a data, procuram saber da organização. São artistas que acreditam na arte, na rua, na arte na rua e no envolvimento com comunidades que não têm acesso a esse tipo de arte. São crianças, adultos e idosos que se envolvem. Que também aguardam pelo evento. E que, quando chega, sabem se divertir, participar, aprender, se emocionar. 
 
Meu grupo estava na programação, o Passarinhos do Cerrado. Tocaríamos às 22 horas, éramos a próxima atração. Eu estava comendo churrasquinho em uma esquina com minha irmã, que também faz parte do grupo. De repente, do outro lado da rua, eu vejo chegar um homem em cima de uma moto, acelerado. Ele para e começa a atirar para cima. 
 
Fui rápida. Pensei que era assalto, algo como arrastão (já que ele atirava para cima). Eu era uma das pessoas mais próximas ali. Deixei a minha bolsa no chão, falei para minha irmã se abaixar. Olhei para trás e vi uma senhora abrindo o portão da casa dela. Puxei minha irmã e entramos ali. Ouvíamos de lá dentro o tumulto no picadeiro. Havia muitas crianças, idosos. Há onze anos é um evento muito familiar.
 
Eu não entendia o que ele queria, já que não foi assalto e tinha ido embora. Mas, ainda dentro da casa da senhora, me toquei que o tiro não tinha sido para cima, mas para o alto da arquibancada. Ele havia atingido alguém e ido embora. Eu ainda tremia. Como repórter de televisão, estive muitas vezes em locais de crimes. Vi muita gente baleada ou morta. Mas minutos depois do ato. Eu chegava junto com a polícia. Daquela vez eu estava ali vivendo o decorrer da ação.
 
Um garoto de 17 anos, da comunidade, foi baleado. O tiro atingiu abdome, ele passou por cirurgia e muito felizmente está fora de perigo. A programação, é claro, foi cancelada. O susto foi enorme. A indignação maior ainda. Sem ainda entender bem o que tinha acontecido, os galhofeiros se reuniram e tomaram a melhor decisão: a programação foi cancelada, mas platéia e artistas continuaram reunidos no domingo num ato contra a violência e pela arte. 
 
O evento contou com a mesma beleza da Galhofada. A mesma participação da comunidade. O mesmo envolvimento dos artistas. 
 
De lá para cá, depois do susto, da bela ação em conjunto, consegui digerir o que havia acontecido. Não concordei com algumas coisas que ouvi. “A violência chegou à Galhofada”. Não. A Galhofada está inserida num cenário de violência há onze anos. O Setor Pedro Ludovico é considerado o mais violento de Goiânia: em 2013 foram 19 homicídios. Localizado entre bairros nobres, é ponto estratégico de tráfico de drogas. 
 
A Galhofada está ali justamente para tentar ser instrumento de mudança ou amenização desse cenário. No esforço de construir relações com a comunidade que não sejam de medo, de violência, de rixa, de raiva. Que sejam de criação, de diversão, de expressão, de amizade. O esforço da Galhofada é para que esse bairro não seja tomado pela violência se transformando em um deserto sem vida.
 
A arte é das coisas mais raras que ainda permanece como forma de unir uma comunidade. De fazer alguém pertencer a algum lugar. De não se sentir passageiro por onde anda. Um estranho onde mora. 
 
Conversei com alguns moradores no domingo. As crianças diziam que queriam ser palhaço, músico, atriz quando crescessem. As mães defendiam a permanência do festival e se diziam privilegiadas por terem aquela atração no bairro. “Nenhum outro de Goiânia recebe um festival como esse”. Eles se apropriaram do Festival. Eles sentem que é algo deles que não pode parar.
 
Eu não sabia se o tiro havia atingido quem o criminoso pretendia. Não sabia se era acerto de contas e se o menino estava envolvido em algum crime. Pode ser que sim, pode ser que não. Isso é pra lá de corriqueiro em bairros onde há tráfico de drogas. Mas isso não me importava como não me importa. 
 
O que me importa é que nada justificava alguém atirar contra outra pessoa, quanto mais num ambiente cheio de crianças, idosos e utilizando o cenário de arte e alegria para que o espetáculo fosse seu próprio crime. Destruindo um ambiente que também poderia ser dele. Um espaço em que ele também poderia ser bem-vindo. 
 
O que me importava é que estávamos em uma comunidade onde há aquela grande, plural, contraditória realidade que habita as periferias. O garoto poderia não ter envolvimento algum com droga. Mas poderia também ter. E daí? Ele não poderia estar ali com a mãe e a tia assistindo a um show? Deveria ter na entrada um detector de “cidadãos de bem”? Perderia seu direito de acesso à arte? Acolher a comunidade é acolhê-la em sua realidade: uma colcha de contradições, problemas e diferenças. 
 
Enfrentar as ruas é enfrentar os problemas dela. E esses problemas são nossos também. Não havia uma viatura policial. Se houvesse, talvez não fosse muito diferente. Ou, pode ser que sim, talvez intimidasse o atirador. O que se sabe é que faltou polícia ali, faltou a presença do Estado.Estávamos sozinhos ali: artistas e comunidade. Mas, definitivamente, creditar o problema da violência à falta de viaturas e presença policial é ingênuo e irresponsável.
 
Defender um mundo desejável xingando governantes pelo Facebook e gritando em mesa de bar “cadê as autoridades?” nunca construiu nenhum lugar mais agradável de se viver. Enquanto cada cidadão acreditar que esse mundo será menos violento e menos bizarro terceirizando sua responsabilidade política pelo ambiente onde vive, vou continuar a assistir a gente ser baleada. 
 
Violência é problema de segurança pública. Mas é também um problema de saúde, de educação, de cultura, de meio ambiente. E isso é problema da Dilma, do Marconi, do Paulo Garcia e de todo mundo. Do Estado e de cada cidadão, que abre mão de cuidar da sua cidade e opta por viver em sua bolha, bradando frases morais evitando se envolver com sua cidade, calculando cada passo para garantir sua segurança própria.
 
Cuidar da cidade nunca foi tarefa fácil. Ocupar as ruas é acolher suas mazelas e suas delícias e não é de hoje que faço essa defesa. Os melhores shows que já fizemos foram sempre nas ruas. Aos que assisti também. Rua é lugar de todo mundo. Um espaço que ninguém se intimida em chegar. Não fica envergonhado de pensar como deve se portar. Não olha para os lados para tentar entender a quem pertence aquele espaço. Na rua não cabe hierarquia. Não tem sala vip. 
 
Por tudo isso a rua é temida. Porque nela também mora o excluído: o menino de rua, a prostituta, o drogado, o bêbado, o doido. E a arte na rua é para romper com a hierarquia e com a exclusão. Porque todo mundo é bem-vindo à arte. Todos os “cidadãos de bem” e os traficantes também. 
 
Se a Galhofada se firmou no Setor Pedro por onze anos, se conseguiu reunir nesse tempo tantos artistas, se conquistou a comunidade é porque a arte é o contraponto da violência. Porque, ao longo desses anos, ela conseguiu trazer alegria às ruas temidas do Setor Pedro. Ela provocou alegria onde havia tensão. Promoveu encontro de vizinhos que se isolavam em suas casas e não compartilhavam a mesma rua. Ela provocou sonhos e inspirações nos filhos.
 
Porque os artistas querem acolher em sua arte todos que compartilham a rua e porque acreditam no poder de seu trabalho transformar as relações entre as pessoas. Porque a comunidade responde dizendo que isso funciona. A mãe me diz. “Eu quero que meu filho seja palhaço, não quero que seja traficante”. E o filho responde. “A Galhofada me inspira”. 
 
A resposta à tentativa de homicídio é continuar a ocupar as ruas. Quem não cabe no picadeiro é quem tenta acabar com a brincadeira. Nós temos sempre de estar ali. Fugir das ruas e levar nossos espetáculos para ambientes fechados é dizer que a rua não é nossa. Que os problemas dela também não. É deixar de colocar nosso trabalho a serviço de um mundo que a gente quer: aquele diferente do meu pesadelo. Aquele diferente do que vivi: um festival interrompido pela bala do revólver de um infeliz. 
 
Meu pesadelo não é realidade. Mas quanto mais afastados das ruas, mais próximo estaremos de um mundo onde reina a violência, o medo, a tensão e relações de hostilidade. Milton sempre esteve certo. Todo artista tem que ir onde o povo está. Mesmo que esse lugar seja cheio de violência. Mesmo que esse povo guarde muitos problemas.    
 

Comentários

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  • 21.05.2014 08:25 Maurício Zaccariotti

    Maravilhosa matéria, como sempre foram todas as outras escritas por você. Só faltou dizer o que Castro Alves disse há quase dois séculos: "A praça é do povo, como o céu é do condor". Parabéns. Maurício

  • 20.05.2014 17:26 Amanda Karla

    ótimo texto! Triste realidade na qual estamos... Porém em meio a tanta violência, temos a arte para nos acalmar, nos inspirar...

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Nádia Junqueira é jornalista e mestre em Filosofia Política (UFG). / njunqueiraribeiro@gmail.com

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