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Trabalho teve aceitação do leitor e da crítica | 28.10.21 - 12:13
Jales Naves Especial para o AR
Goiânia - Mulher símbolo de poesia lírica, amorosa, que faz meditar e crer que os tempos podem ser ainda feitos de amor e abnegação como a sua doce mensagem, a escritora Ada Curado marcou sua passagem por Goiás. Polígrafa, mesmo com todas as dificuldades, construiu uma carreira de mérito em diferentes gêneros literários, incluindo o teatro, e suas sete obras tiveram grande aceitação da crítica e de leitores. A observação é do escritor Bento Fleury, do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis para os Povos do Cerrado (Icebe), na homenagem à mulher goiana promovida pela Secretaria de Estado da Cultura (Secult-Goiás), por meio da Biblioteca Estadual Pio Vargas e do Museu da Imagem e do Som, na quarta-feira, dia 20, no Centro Cultural Marietta Telles Machado.
A sua obra poética – ressaltou Bento – foi adotada pelos professores do 2º Grau das escolas de Goiânia e do interior, como fonte de pesquisa; e “seus poemas têm uma ponta de melancolia e uma simplicidade espontânea que certamente deixaram saudades”, enfatizou. Primeira mulher a ter assento cativo na Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás (AFLAG), ocupava a Cadeira nº 1.
Ela se dizia mais goiana que paulista, pois vivia em Goiás desde os 15 anos de idade e faleceu com 82 anos, em 7 de julho de 1999. Uma das fundadoras da AFLAG, também integrou a União Brasileira de Escritores, Seção de Goiás, e a Associação Goiana de Imprensa. Foi citada em várias antologias de escritores renomados, como Gilberto Mendonça Telles.
Ada Ciocci Curado nasceu em Jardinópolis, SP, em 2 de setembro de 1916, filha dos italianos Nazarenno Ciocci e Josephina Paiuchini Ciocci, sendo a oitava de 10 irmãos. Na infância e adolescência ouvia as histórias da mãe sobre a vida na Itália, as façanhas da família na luta pelo amor e pela sobrevivência. Dona Josefina queria que fosse cantora ou artista – desde tenra idade declamava, inclusive em italiano, e cantava nas festinhas os sucessos da época, acompanhada pelo irmão (músico). Em Pedregulhos, SP, onde fez o primário no grupo escolar, vivia alegre e feliz. Brincava de roda, de pique etc., até conhecer o coronel Gentil de Amorim Curado, que vinha da Revolução de 30 e procurou a Casa de Calçados de “seu” Nazareno para consertar uma bota. “A cidade fugiu. A família de Ada não... e vendeu botas para o regimento inteiro”.
Aos 17 anos já estava casada com Gentil Curado, nascido em Corumbá, GO, trinta anos mais velho que ela, e que exerceu altos cargos militares em Goiás. Morou em Vila Boa, Anápolis, Ipameri e em Goiânia, no início da década de 50. Nessa época fez o ginásio, ao tempo em que dava assistência às duas filhas, Messias Josephina e Cecy Aparecida. Nos últimos dias de vida, seu marido ficou totalmente cego e dependente dela. Enviuvou-se em 1980.
Produção literária
Ela iniciou na carreira literária em 1951, quando conseguiu a primeira colocação no Concurso de Contos de Natal promovido pela Rádio Anhanguera. Dotada de invulgar sensibilidade, publicou seu primeiro livro em 1954, intitulado “O Sonho do Pracinha e outros contos”, editado pela Revista dos Tribunais, de São Paulo, com grande aceitação do público e da crítica. “Os contos de Ada Curado, enfeixados no livro pioneiro, possuem verdadeiros reflexos do nosso sertão e são como pepitas literárias”, conforme escreveu o jornalista Geraldo Valle.
Quatro anos depois, em 1958, publicou o seu segundo livro, o romance “Morena”, com enfoque regionalista e em que registrou, com propriedade, o folclore goiano. Com o selo da livraria Brasil Central, em 1966 lançou o livro de contos “Nego Rei”, afirmando sua personalidade de contista de grande qualidade e recebendo elogios críticos de Orígenes Lessa, Xavier Júnior, Carmo Bernardes e do “Jornal das Letras”, do Rio de Janeiro.
“Mesmo iniciando sua produção literária com contos, Ada Curado não se prendeu apenas a esse gênero, mostrando talento em outros trabalhos, revelando-se verdadeiramente diversificada, até mesmo dentro do mesmo gênero, já que escreveu romances urbanos e rurais”, destacou Bento Fleury.
Em 1976 enveredou pelo campo da produção dramática, publicando, pela Gráfica Oriente, a peça teatral “Sob o tormento da espera”, premiada num concurso da Caixego e também em certame em São Bernardo do Campo, SP, disputando com 80 concorrentes. Em 1977, estreou no romance histórico, com “Paredes agressivas”, publicado pela Oriente, registrando o momento político brasileiro dos conturbados anos 30, conforme escreveu o crítico Geraldo Coelho Vaz.
Com o selo da gráfica de O Popular, ela publicou, em 1985, o seu livro “Figurões”, em que mescla contos, crônicas e artigos críticos sobre Wendell Santos, Ursulino Leão, Miguel Jorge, José Xavier de Almeida e Aidenor Aires, igualmente com excelente aceitação do leitor e da crítica. “Tal versatilidade de gêneros prova o poder criador e o senso crítico da autora”, destacou.
Quando completou 75 anos, Ada Curado lançou o seu último livro, “Acalanto”, de poemas suaves, organizados numa longa e expressiva experiência de vida, calcada nas mais diferentes sensações: alegria, tristeza, desapontamento, solidão, angústia, sensibilidade, erotismo. É o momento de maior vibração da produção deixada pela autora, pois “criar em literatura, é dar vida às imagens e às ideias. É passar do domínio da meditação e da observação ao da ação por meio de intuição criadora”, conforme escreveu Alceu Amoroso Lima.
Linguagem simples
Seus contos primam por uma linguagem simples, coloquial, revelando vivências comuns do cotidiano, dando ênfase aos aspectos femininos na solidão, no casamento, na convivência, no condicionamento moral e nos próprios preconceitos sociais, vinculados à questão da emancipação feminina.
De seu primeiro livro “O Sonho do Pracinha” o destaque para o conto “O que viveu sem nascer”, tocado pelo curioso título e pelo conteúdo que se vai apreendendo. Narrativa curta, característica do conto literário, mostra os dois personagens envoltos com cuidados excessivos com a primeira gravidez da mulher. Pela exposição, nota-se ser a cena no passado: “Naquele dia o casal desceu a escadaria, com exagerada cautela. Seu Manuel segurava firme o braço de dona Maria. Os olhos de ambos irradiavam completa felicidade. Riam à toa” (p. 37).
Pelo próprio uso do tempo verbal, observa-se que a cena aconteceu num tempo passado. Pela simplicidade dos nomes dos personagens, observa-se a intenção da voz narradora de evocar fatos triviais de gente comum. Em seguida, utiliza-se de um discurso direto, na fala do marido:
“Hoje mesmo ajustarei uma criada”, disse.
“Não há necessidade meu velho. Preciso fazer exercício”.
“Não foi o médico que recomendou?”.
Pelo diálogo, percebe-se que dona Maria já não é tão moça e que o fato de estar grávida recomendava cuidados especiais. Revela, também, logo em seguida, que o filho era bastante aguardado:
“Sim, sim, mas não dessa natureza. Nada de excesso. Nos levantaremos cedo e faremos longas caminhadas, repetindo-as às tardes. Quero que o nosso filho seja forte e bonito. Estes anos de ansiosa expectativa me bastaram. Agora que ele nos chega, é preciso ter todo cuidado”.
Ada Curado utiliza-se de um procedimento discursivo diferenciado para envolver o leitor nos embates existenciais e nos sonhos do casal, mostrando o parecer de cada um sobre a gravidez e sobre os cuidados com o filho tão esperado. Utiliza-se de frases fortes, termos concisos, reduzindo ao máximo o enunciado.
Foi uma contista por excelência. Mesmo escrevendo dois romances, uma peça de teatro e um livro de poemas, destacou-se mesmo foi com narrativa curta, que mereceu crítica positiva no “Jornal das Letras”, do Rio de Janeiro, em 1966:
“Uma escritora atenta às exigências da narrativa elaborada em linguagem liberta das formas gastas”.
“Figurões” reúne vários contos e desse trabalho destaca-se o conto “Cré com cré, lé com lé”, em que a autora estuda, de forma profunda, o comportamento humano diante das adversidades da vida, mostrando, principalmente na mulher, a complexidade do sofrimento e das intempéries de circunstâncias advindas da miséria material e moral. A narrativa inicia mostrando uma cena de forte impacto para a personagem, sobre a sexualidade do amante em relação à inocência de sua filha:
“O pisado leve não era malicioso. Era de natureza e, isso, levou-a a surpreender o amasio com a mão no sexo, incendiado de desejo a fitar as pernas bonitas de sua filha, que muito à vontade, dormia no banco de madeira da salinha. Sutilmente, como havia chegado à porta do rancho, recuou e, somente após conseguir controlar a indignação de que se achou tomada, avançou novamente, limpando a garganta para anunciar-se. Pelo vão da porta enxergou o bicho mau dando largos passos no rumo do quarto.” (pág. 25).
A situação exposta – como frisou Bento Fleury – mostra um fato deveras comum nas comunidades de baixa renda, embora esse fato tenha a ver mais com a índole dos seres humanos, que à classe social, em que o homem, unindo-se a uma mulher já com filhas, passa mais tarde a assediá-las como se estas fossem sua propriedade. Cena grosseira, agressiva, mas de forte realidade, já que, tal fato, vemos cotidianamente estampado nos jornais, em páginas policiais.
A transgressão da personagem em relação aos valores da vida é apresentada como um ato banal, num cenário de gente bárbara e injustiçada, as atrocidades quase são recíprocas. Nada de condenações, não há alteridade feminina negada, a personagem, desnudada à luz de seus instintos parece fazer o que qualquer um teria feito, na defesa dos seres ternamente amados e ao mesmo tempo também vítimas de agressão. Ada Curado apresenta personagens femininos atormentados pelos dissabores cotidianos, mulheres subjugadas por um determinismo histórico e biológico, assumindo responsabilidades extremas e pesados encargos. É a essência do discurso feminino no século XX, retratando a miséria em relação ao feminino.
Nesse conto também percebe-se um tratamento importante das unidades de tempo e de espaço. Nota-se que a exposição inicia-se na noite em que a mulher chega cansada do trabalho estafante, depara com a cena insólita e termina na noite seguinte em que friamente assassina o seu amante.
Há sempre um halo de noturno e de mistério, pois as descrições maiores são sempre da noite e, no clímax, mostram o escuro ao redor, apenas um claro da mulher no rabo do fogão, “incendiada de ódio”, arquitetando a hora mais propícia para o ato frio do assassinato. Para criar o clima de mistério e também de terror, a voz narrativa associa outros elementos também significativos na sua descrição produtora de efeitos reais pois, “não raro, as várias descrições se mesclam entre si, ou aparecem fundidas com outros recursos expressivos”, conforme destaca Massaud Moisés.
Assim, o conto feminino em Goiás iniciado em 1904 e consolidado em 1954, passou por evoluções constantes, sendo gênero da preferência feminina. Por meio dessa narrativa curta e incisiva, a mulher de Goiás mostrou o seu talento e determinação não só para discussões espiritualistas ou idealizadas, mas para a crítica social e histórica de seu tempo, lembrando a afirmação de Lucas (l982, p. l05): “O gênero conto constitui um dos que mais se adequaram às exigências da era moderna”.
Trata-se da narrativa que “acompanhou a evolução da imprensa e das publicações periódicas”. Na contística feminina goiana, de acordo com Bento Fleury, observa-se a verdade de tal afirmação quando, na atualidade, tem-se novos nomes de mulheres que se expressam em contos modernos como Augusta Faro Fleury de Mello, que teve destaque nacional com seu livro de contos “A friagem”, além das publicações de Maria Helena Chein (“As moças do sobrado verde”, “Joana e os três pecados” e “Do olhar e do querer”), Célia Siqueira Arantes (“Fios da memória” e “Chão livre”) Maria Helena de Campos Borges (“Quinquilharias”), Leda Xavier de Almeida (“Gente”) e Judite Furtado Miranda (“Desencantos e saudades”).
Em seu livro “Figurões”, Ada Curado (1985, pág. 31), no conto “Sob o luar de março”, destaca a descrição de uma lua de rara beleza, na chapada do Corguinho, o cheiro peculiar da lobeira, a viagem seguindo solta, com as rédeas abertas ao animal por onde fosse: “A noite tá clara. Bonita! No céu liso, sem uma nuvem, além da luz, a lua transmitia tranquilidade. Após haver se despedido da noiva, plantou-se em cima da mula, dando ré a ela e ao pensamento: ‘Depois da chapada o Corguinho, depois do Corguinho a mata, depois da mata a outra chapada e, pronto: Dali à casa, um pulinho. Para descansar o corpo das lides de uma semana inteira de labuta bruta, nada como um banho no manso olhar da Toninha! Para ganhar um beijo daquela boca mimosa e sentir junto ao seu o calor daquele corpo que o efervescia, toda distancia era pouca. Melhor conseguir com os pais da menina uma abreviação para o enlace. Cada separação ia se tornando um martírio. No próximo encontro, procuraria acertar isso com os velhos’”. O cheiro da fruta lobeira somado ao do capim meloso iam embalsamando os gerais. O silencio, somado ao frescor da noite e ao embalo do passo macio do animal, iam convidando ao cochilo. Soltou as rédeas, deixando que por conta própria o quadrúpede seguisse.
Na mesma obra, no conto “A ponte do Chico”, a autora descreve o cerrado com as suas árvores esqueléticas, os animais como a seriema, as rolinhas, os sabiás, o carro de boi. Uma cena típica do povo goiano: “Árvores esqueléticas, eretas, inertes, sem movimentar uma folha. Seriemas dando risadas. O eco morrendo lentamente ali no baixo. Sabiás, em surdina, tocando suas flautas. Rolinhas dizendo que o fogo-apagou e os anús aconselhando: põe lenha… põe lenha… Amante da natureza, do silencio, dos pássaros, no momento em nada ia pondo sentido. Um gemido de carro de bois, tremureando no espaço, arrancou-o da inconsciência.”
“Assim foi Ada Curado, a inteligência feminina a serviço da cultura. Muito alva, alta, magra, ativa e inteligente, viveu no seu belo sobrado no coração geográfico de Goiânia, em estado de graça com a poesia até que um dia se eternizou na pureza de seus versos e imagens”, concluiu Bento Fleury.