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Modernidade e tradição

Especial Xingu: a vida às margens do Rio Tuatuari

Os Yawalapitis em sua rotina | 07.09.12 - 20:01

Nádia Junqueira

Aldeia Tuatuari, Parque Indígena do Xingu - Numa tarde de domingo, no Parque do Xingu, na aldeia Tuatuari, os homens da etnia Yawalapiti fazem o mesmo que a maioria dos demais brasileiros. O gerador de energia, que é ligado geralmente às 19 horas, entra em funcionamento às 16h para transmitir o jogo do Internacional contra o Flamengo.

Segurando sua refeição, um biju com peixe assado, Jair sentou-se em sua rede, dentro de sua oca (fresca, que enganava os 40º que faziam do lado de fora) para assistir ao jogo. O peixe foi ele quem pescou na manhã junto a outros homens da aldeia. O biju foi sua esposa Ana quem preparou, da mandioca plantada e colhida pelo casal e filhos. 

Tina, a filha de Ana, ajuda a mãe com as tarefas da casa, a cuidar da irmã mais nova de oito meses e ainda faz massagem na mãe e na avó. Mas às 19 horas, assim que o gerador é ligado, ela não perde a novela “Cheias de Charme”. “Maria, brasileira, de tudo, sou capaz”, canta a menina quando brinca no rio com a prima Emily, antes de ir para casa ligar a TV. Em fila, ela e outras dez crianças deixam o rio cantando e dançando músicas tradicionais índigenas, coreografados.

A família toda de Tina senta-se em frente à televisão às 21 horas para assistir à famosa “Avenida Brasil”, depois do Jornal Nacional, razão principal de ligarem o gerador de energia. Antes da novela terminar ele é desligado, por questão de economia. Também porque cedo, junto com o sol, todos estão de pé. Entre uma cena e outra, tecem comentários (sempre em voz baixa) em Kuikuro, Mehinako, Kamaiurá ou Waurá, as línguas faladas na aldeia, além do Português, que nem todos falam e nunca é usado entre eles.
 
Yawalapiti, língua mais difícil, somente oito pessoas na aldeia conseguem falar e alguns entender. Pirakumã, o pai de Ana (um dos líderes da aldeia), é um dos poucos que fala. Com a neta Nuala, de oito meses, o avô se comunica em Yawalapiti. É uma das maneiras que busca para evitar que a língua morra. A grande presença de outras línguas se justifica pelos casamentos de Yawalapitis com diferentes etnias.    

Depois de 50 anos da criação do Parque Xingu, a vida indígena à beira do Tuatuari, se apresenta milenar, como antes, mas modificada pelo inevitável contato com a civilização branca. Na apresentação do livro dos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas (responsáveis, junto ao outro irmão, Leonardo, pela criação do Parque) “A Marcha para o Oeste”, assim diz Maureen Bisiliat sobre a missão dos irmãos. “Assegurar um espaço onde as mudanças – inevitáveis e inexoráveis – ocorressem gradativamente, como que autoestimuladas, sem serem impostas, sem lesar demais”. Assim se apresenta a vida dos Yawalapitis no Alto Xingu.

Durante a saga dos irmãos Villas Bôas por preservar as etnias do Xingu e os colocarem para dentro dos limites do Parque, foram encontradas apenas duas famílias da etnia Yawalapiti e Pirakumã fazia parte de uma delas. Hoje são pouco mais de 200 índios dessa etnia vivendo na aldeia Tuatuari, chefiada pelo cacique Aritana, irmão de Pirakumã. Os números ilustram os dados recém-divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (iBGE) que informam o crescimento de 205% das populações indígenas nos últimos dez anos. 

Huka-huka
Às quartas-feiras, o gerador de energia fica ligado por um pouco mais de tempo que o comum, também por conta do futebol. Os homens Yawalapiti, no entanto, não são somente atletas de sofá. Todo fim de tarde se reúnem para jogar futebol. Todos calçando chuteiras com cravos e alguns vestindo camisas de seus times (São Paulo, Flamengo e Corinthians são uns dos favoritos). A cada gol ou boa jogada, gritos parecidos com de lobos. Os mesmos que soam para se comunicar à distância na aldeia. 

Se por um lado esses índios são adeptos do futebol, por outro, não deixaram o esporte tradicional de lado. Huka-huka, a arte marcial dos povos do Xingu, ainda guarda todo seu valor e importância entre os Yawalapitis. Enfrentando o sol escaldante do Mato Grosso, os jovens treinavam em plena tarde de domingo. Para praticar a luta, eles ficam nus e usam somente um cinto adornado. Fora do treino, os homens mais jovens vestem shorts e camisetas. Os mais velhos, em sua maioria, vestem somente sunga ou ficam nus.    

De longe, durante o treino, ouvia-se os gritos semelhantes aos de macacos que anunciavam o início da luta. O treino é fundamental para os dias de festa, como a que ocorreu nesse sábado (8/9). Foi o dia do Kuarup da aldeia vizinha, dos Kuikuros, e a luta faz parte da festividade. Os lutadores, como segue a tradição, não podem dormir na noite que antecede a competição. Thai, filho de Ana, explica que eles podem ficar fracos, ou sonhar que o adversário os derrubou e isso desestabiliza o lutador. 
 
A preparação vai além. Antes da competição, eles tomam banho, ficam bem limpos e arranham todo o corpo com dentes de peixe, prática comum entre os Yawalapitis. Depois amarram os braços e pernas, passam óleo de pequi para hidratar, folha do fruto para evitar infecção e não comem nada que seja doce ou salgado. A prática provoca sangramento e, nas palavras de Pirakumã, é a ginástica dos índios. “Os braços e pernas ficam mais fortes”, conta. 

Ana, sua filha, também completa dizendo que a prática tira celulites, estrias e deixa a pele mais firme. “Está vendo que as índias têm as pernas grossas, bonitas? É por isso”, garante. Para além do aspecto estético, eles contam que faz bem para sair o ‘sangue ruim’ e energias que fazem mal ao corpo. Ana conta que quando a pessoa está muito cansada ou estressada, o sangramento é maior. 

Conectados
Quando não estão pescando, trabalhando na roça, jogando futebol ou lutando Huka-huka, os índios estão no “Pontão de Cultura”. Uma casinha ao lado da Escola Yawalapiti onde há internet. Na aldeia, praticamente todos têm uma conta no Facebook. Longe dos meios urbanos, os índios Yawalapitis estão informados e conectados a tudo que acontece no mundo: pela televisão ou pela internet. Os índios também gostam de outras tecnologias, como celular que tira fotos e toca músicas e câmeras: para fazer registros das festas e das lutas, por exemplo.

Não é à toa que a aldeia conta com internet, computadores, ponto de cultura, escola, além de trator e gerador de energia, por exemplo. Pirakumã, irmão do cacique Aritana, é quem corre atrás das tecnologias e estrutura para aldeia nos ministérios em Brasília. O índio, hoje respeitado em todo o país, era o menino que cresceu à sombra de Orlando Villas Bôas. Uirakumã é seu nome, na verdade. Pirakumã era como Orlando lhe chamava e assim ficou.

O trabalho que garante a preservação e modernização
Pirakumã trabalha na Funai e recentemente foi transferido para o Posto Leonardo Villas Bôas, a cinco quilômetros da aldeia, um dos quatro postos que atendem o Parque do Xingu. “Quando Orlando deixou o Parque já estava cansado, debilitado mesmo. Ele falou para gente: agora são vocês que devem tomar conta disso. E vocês vão ter que lutar por isso”, conta o irmão de Aritana. E é isso que Pirakumã tem feito desde então. É ele quem realiza o trabalho político respondendo por todo o Parque e os desafios, de fato, continuam.

Há mudanças no Código Florestal, que flexibilizam as áreas de proteção permanente (APPs) e deixam vulneráveis os rios. Há, ainda, uma Proposta de Emenda Constitucional 215, que dá ao Congresso a competência exclusiva para estabelecer os limites das áreas indígenas e decretar a criação de novas áreas. Além dela, há a portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU), que exclui os povos indígenas das consultas sobre a realização de obras de interesse público em suas áreas.
 
Pirakumã recentemente participou da Rio+20, atuou pelo embargo das obras da Belo Monte e semana que vem estará em Brasília para um minicurso sobre meio ambiente. A internet na aldeia dos Yawalapitis como em todas as aldeias do Parque é resultado do trabalho de Pirakumã junto ao Ministério das Comunicações. O índio se preocupa com a continuidade desse trabalho político e nos conta que seus filhos seguem seus passos. Na aldeia, há ainda quem esteja nas universidades, outro importante espaço, para Pirakumã, a ser ocupados pelos índios.  
 

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