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O Som ao Redor está em cartaz no Cine Cultura | 28.02.13 - 09:43
Kleber Mendonça Filho falou sobre o que pensa da forma como a crítica de cinema é feita (Foto: divulgação)
Por Fabrício Cordeiro e Rafael Parrode
Crítico de cinema por treze anos no Jornal do Commercio de Pernambuco e cineasta com significativa carreira em curtas-metragens (Vinil Verde, Eletrodoméstica, Recife Frio), Kleber nos concedeu uma entrevista em um café, algumas horas antes de seu primeiro longa, o documentário Crítico, ser exibido no Cine Cultura, em Goiânia, em 7 de outubro de 2011. Por razões diversas, não foi possível publicar o texto naquele ano. Esperamos que, publicado hoje, mais de um ano depois, revele um pouco mais sobre este que tem se tornado, oficialmente, o autor de cinema mais promissor do país.
Não surpreendentemente, a entrevista se revelou uma conversa, papo já iniciado no carro, onde Kleber dissera estar muito tranquilo com seu recente afastamento da crítica em função de total dedicação ao seu primeiro longa de ficção, O Som ao Redor. “Foi bastante natural. Foi como desligar uma chavinha e ligar outra. Me sinto bem em não ter mais que cumprir certas obrigações exigidas pelo ofício”.
À época da entrevista, restavam cerca de três meses para que O Som ao Redor chegasse à sua montagem final. Nosso encontro, no entanto, girou em torno de outros assuntos, especialmente a respeito de sua visão e experiência como crítico de cinema. Calmo e atencioso, Kleber se mostrou uma dessas pessoas interessadas por pequenas e grandes coisas. “Fico com medo de um lugar assim fechar”, preocupado com o pouco movimento do café no fim de tarde de uma segunda-feira, minutos depois do bate-papo sobre crítica, pessoalidade, Michael Bay, cinefilia, enfim, cinema.
Kleber Mendonça Filho: Se você pensa, você já é visto como... cabeção, sabe? Intelectual, ou intelectualóide. Eu sempre tentei muito desativar essa sensação, porque detesto ler uma crítica repleta de referências absolutamente inatingíveis que só ele ou ela viu ou leu em algum lugar. Se você for realmente tentar analisar, não tem nada dele ou dela ali. Do coração, da experiência pessoal do crítico, da experiência de vida, da maneira como ele ou ela encara as coisas. São só referências bibliográficas, e é muito chato isso.
Fabrício Cordeiro: E é muito comum.
KMF: Sim, comum, porque o ser humano é assim, certo? Ele é muito orgulhoso. Eu sempre quis, como crítico, fazer algo que fosse bem direto, forte e pessoal, e que nunca ficasse em dúvida o ponto de vista que é um ponto de vista pessoal meu. Que aquilo não é a verdade, aquilo é um ponto de vista. Tem muitos textos que são imperativos: “isso é verdade”, “isso é isso”, “fique em casa”, “vá correndo ver”... São coisas que, pra mim, não batem. Eu acho muito mais interessante, durante o tempo de leitura, você entrar no mundo de alguém e dizer “é um mundo interessante o desse cara; parece ter uma bagagem aí não só de coisas que ele leu, mas de coisas que ele viveu e como isso bate com ele.” E numa linguagem não simples. Porque é perigoso dizer simples, não é? Parece que você está sendo meio simplório, e não é nada disso. É uma coisa que você PÁ!, que você leia e entenda, claro e evidente no que você quer colocar. E a clareza, infelizmente, não é muito comum, não é muito recorrente. É o que todo mundo quer, talvez. É o que todo mundo persegue, mas não sei se aprende na universidade, escrever com clareza. Não estou dizendo que eu faço isso. Estou dizendo que eu tento isso. Isso é o que eu quero. Uma pequena ambição.
FC: Eu percebo uma certa recorrência nos seus textos críticos: você fala muito, no seu diálogo com o filme e com o leitor, coisas como “o diretor parece querer”, “o filme parece etc”. Essa utilização do “parece” é consciente, no sentido de alguma incerteza?
KMF: Sim, é consciente. Porque eu não sei de nada. “Peter Bogdanovich quis dizer que...”. Como? Você conversou com ele? Jantou com ele pra saber isso? Às vezes você até janta com o cineasta e ele não parece saber de muita coisa, ou o que ele falou ontem à noite já não é mais hoje de manhã.
FC: O Bogdanovich [Peter Bogdanovich, diretor de A Última Sessão de Cinema) mesmo teve essa experiência com o John Ford.
KMF: Exatamente. Aquele momento meio constrangedor dele. O “parece que” é o que eu acho que seja, mas não tenho certeza. É consciente, sim.
FC: Ainda nesse sentido da pessoalidade, lembro que você tinha um diálogo com os leitores no Orkut, e numa dessas discussões você defendeu essa visão pessoal na crítica, que a crítica tinha que ser mais pessoal. Me recordo claramente de uma frase que você escreveu: “filmes são o que são mais o que nós somos”, e me parece que o seu filme “Crítico” reflete essa idéia. Eu queria que você falasse mais precisamente qual seria o valor dessa pessoalidade na relação filme-espectador, filme-crítico.
KMF: É porque quando falo isso, eu falo dentro de um universo ideal. Por exemplo: o cara pode querer seguir a cartilha de que tem que ser pessoal ao falar de filmes, mas pode ser que ele seja um boboca, um cara idiota, um cara que é um verdadeiro idiota. Ou seja, estaremos lendo um idiota falando sobre sua relação boba com as coisas aplicada ao cinema. Então pode ser um problema também. Uma das coisas que menos se discute – e que talvez seja indiscutível, no fazer cinema, ou no olhar pro cinema – é a questão do talento. Você parte do princípio de que alguém que parte pra fazer um filme é alguém que tem talento pra fazer um filme, mas muitas vezes a pessoa partiu pra fazer um filme mas acontece que ele ou ela não tem talento; então vai ser algo ou muito ruim ou muito medíocre. A mesma coisa com o crítico. Eu poderia te dizer que a receita... bom, isso não existe, mas a receita pra ser um bom crítico é você usar a sua própria carga pessoal, mas se você não tem, como é que você vai [usar]? Se você não tem o talento pra escrever claramente, como é que você vai escrever? É o tipo de coisa em que você olha pra algo e entende que aquilo é bom, mas o que é que define aquilo como bom? Então você tem que ter o talento pra defender aquilo, argumentar aquilo, mostrar aquilo e contextualizar aquilo. Não sei se respondi a pergunta.
Veja o trailer de O Som ao Redor:
Rafael Parrode: Mas até onde você acha que essa subjetividade pode ir na crítica?
KMF: É muito difícil responder isso. Recentemente teve um caso interessante que eu soube, no sábado, em que o Inácio Araújo, que é um grande crítico, muito respeitado, escreveu sobre o Trabalhar Cansa que ele não acredita em filmes feitos por duplas ou por coletivos. E ele simplesmente jogou essa, porque sempre teria o diretor que define e o diretor que segue. Na cabeça dele [Inácio], certo? Eu discordo. Pode ser um belo filme feito por duas pessoas, ou por três. Acho que os irmãos Coen têm alguns filmes bem interessantes, os irmãos Dardenne, os irmãos Taviani... O filme Trabalhar Cansa eu acho que é um verdadeiro produto de duas pessoas. Eu conheço os dois, eu consigo ver os dois ali. Mas ele jogou essa e fazer o que? Resta eu dizer que discordo e acabou, e ele diz que ele acha isso e é isso. O ponto de vista dele, subjetivo dele, é esse, e aí cabe a gente partir pra discordar, ou debater, ou gritar com ele, não sei. A questão é essa. Talvez eu também já tenha colocado coisas que simplesmente são como eu sou e eu não gosto e “não me venha com filmes sobre coelhinhos”, “não gosto de filme com coelhinho”, algo assim. Seria radical, não sei se seria sensato. O ponto subjetivo é como se aplica na vida também. Todos nós temos maneiras de ver coisas, sobre política, sexualidade, questões sociais da cidade... Nós temos nossos pontos de vista, e é interessante que eles façam sentido dentro de um universo de ideias.
FC: O Escorel diz que em filmes que começam com epígrafe o espectador tem que levantar e ir embora.
KMF: É...
FC: No começo do Crítico, depois da citação daquele diálogo com o Godard, o filme oferece uma montagem com um paralelo entre rolos de película e rolos de impressão de jornal. Você concorda com o Truffaut quando ele diz que assistir cinema e escrever sobre cinema também é fazer cinema?
KMF: Eu concordo inteiramente. Eu acho que tem várias maneiras de fazer cinema: programar uma mostra, programar uma sala é fazer cinema. Escrever um roteiro é mais próximo do fazer cinema, mas você não está na câmera, filmando. Escrever sobre filmes é fazer cinema, com certeza. Principalmente se você tem o trabalho sólido da área, e que tem resultados ou causa ideias e discussões. Sim, completamente. Interessante você falar isso, porque eu nunca tinha pensado nisso. Eu só associei pela maneira como as imagens dialogam, o rolo de filme com o rolo de impressão.
FC: Na hora que eu vi, até porque se confundem um pouco, eu lembrei do Truffaut, pois lá no “Os Filmes da Minha Vida” tem uma passagem em que ele fala isso, que escrever sobre cinema também é fazer cinema.
KMF: Concordo inteiramente. Engraçado que, de 2008 pra cá, acho que a montagem continua muito válida. Mas é interessante como talvez tenha ficado ainda mais um pouco à moda antiga. O jornal, hoje, com iPads, o iPhone, a internet cada vez mais presente, ele é quase um elemento primitivo.
RP: Pensando sobre isso, na internet, na democratização, no compartilhamento de arquivos, você sente uma transformação nessa relação entre crítica e cinefilia que tem emergido nesses últimos anos? Você sente uma definição hoje nessa relação, entre o que é um e o que é outro?
FC: Se eu puder fazer um complemento, porque eu tinha exatamente uma pergunta sobre cinefilia aqui. Respondendo a pergunta do Parrode, eu também queria saber como você compreende a cinefilia e como você vê a importância dela para o crítico de cinema.
KMF: Eu acho a cinefilia algo essencial. Acho que talvez seria possível ter um crítico que tenha uma bagagem muito forte, não de cinema, mas de artes plásticas, literatura e vida, e de repente, por algum acidente de percurso, alguém manda ele escrever sobre um filme. Se ele é um cara muito inteligente, com uma bagagem muito boa, ele será capaz, mesmo sem uma bagagem de cinefilia, de cinema, expressar bem sobre ideias e sobre o que o filme está querendo colocar. Só que, naturalmente, para o crítico, acho que a bagagem dele é de cinema. Por ele já gostar de cinema há muito tempo, ele se encheu de cinema a ponto de se tornar crítico. Acho que esse é o caminho natural. Mas eu não descarto a possibilidade de alguém que não... por exemplo, o Paul Schrader, o diretor-roteirista: diz ele que só foi ao cinema pela primeira vez aos 18 anos de idade, o que eu acho estranho, mas ele é um cara muito interessante. Foi bem tardio, por causa da educação, da família. 18 anos. E o cara escreveu Taxi Driver. Ou seja, o cara escreveu Taxi Driver de dentro dele, do coração dele. Ele sempre fala que escreveu Taxi Driver depois de perceber que tinha passado um mês sem falar com ninguém. Isso é fantástico. O cara é um artista, o cara teve a experiência de colocar no papel um drama humano. Eu acho que é uma prova interessante do que estou tentando falar. Hoje a cinefilia é mutante. É fascinante o que está acontecendo no momento. Eu, com 42 anos, ao longo dos últimos 20 anos vivi várias mudanças em relação à cinefilia. Quando eu era adolescente, ela era bem específica: VHS, televisão e cinema. Hoje você tem tudo o que você quiser. Hoje a gente conversa sobre um filme aqui e se você não tiver visto, ou eu não tiver visto, chego em casa e baixo hoje à noite. Essa disponibilidade é muito interessante. Acho que é uma questão de geração, porque na minha época a impressão que eu tinha era de que o volume de informação era na quantidade certa, e hoje você tem que administrar um mundo inteiro de informações. Não sei se isso gera um nervosismo, uma ansiedade, ou se todo mundo reage bem a isso. Aquela ansiedade de entrar numa livraria e entender que você nunca vai ter tempo de ler todos aqueles livros.
RP: O que eu queria saber exatamente é: até que ponto ser cinéfilo, até que ponto a cinefilia pode ou não interferir na crítica, no processo crítico de escrever sobre um filme.
KMF: Cinefilia pode ser facilmente entendida como bagagem. Eu posso ver Trabalhar Cansa e, por causa da minha bagagem de cinema brasileiro, entender que é um filme muito inusitado, muito incomum na produção brasileira, e isso fazer com que eu valorize o filme. Diferente de alguém que está no shopping, decide ver Trabalhar Ccansa e acha apenas um filme esquisito. Então a cinefilia, claro, me dá mais bagagem, mais informação pra apreciar algo que talvez sem aquela informação não seja possível apreciar. Acho natural que a cinefilia tenha uma influência no que você faz, acho absolutamente natural isso. Como um engenheiro que, pela formação dele, visita uma obra e analisa a estrutura e entende que ela não vai cair. “Isso aqui está seguro, eu estudei, eu sei o porquê de não cair.” Só de olhar, sabe que não vai cair, sabe que as vigas estão corretas etc. Eu entraria e não saberia dizer se é seguro ou não. Porque eu não tenho essa bagagem. Então, sim, a cinefilia é bagagem. Acho que todo mundo tem que ter bagagem de cinema.
FC: Falando de cinefilia, podemos entrar no campo do cinema de autor, porque os cinéfilos das décadas de 50 e 60 legitimavam diretores, tinham um objetivo de valorar um cinema que era desprezado. Tem uma crítica sua que eu acho muito interessante, sobre Transformers 2, em que você observa que há um toque de autor no Michael Bay. Eu concordo, e ainda estenderia essa observação ao Tony Scott, por exemplo, entre outros. Eu queria que você falasse mais sobre isso, já que a visão de cinema de autor costuma desconsiderar esses cinemas de blockbusters inchados, mas que podem ser considerados autorais, mesmo que sejam porcaria.
KMF: O Michael Bay é um exemplo interessante, porque o cinema dele é sonicamente insuportável e visualmente difícil. Parece que estão jogando uma luz, um facho de luz forte na sua cara, mas é absolutamente autoral. E é muito americano o toque autoral dele. Quando eu era criança, vi dois filmes que me impressionaram muito e que já naquela época eu associei muito à ideia de Estados Unidos, de cultura americana. Foram dois filmes, inclusive lançados bem perto um do outro, e que eu vi no cinema, de cineastas que depois eu descobri serem amigos: 1941, do Spielberg, considerado o filme mais mal-sucedido dele, embora eu ache muito interessante, e Os Irmãos Cara-de-Pau, do John Landis. São dois filmes que têm uma quantidade inacreditável de destruição, de quebra-quebra, de desperdício. A piada como destruição, a destruição como anedota, sabe? Os Estados Unidos são uma cultura extremamente rica, eles não sabem o que fazer com dinheiro, e acho que o Michael Bay é dessa escola também: quanto mais coisa você quebra, explode, espatifa, mais eu penso em termos de Estados Unidos. Eu não sei se vocês já foram aos Estados Unidos, mas é impressionante. Tudo lá é maior; esse sanduíche [aponta pro sanduíche] não seria assim, seria assim [sinaliza uma altura bem maior]. Esses pequenos detalhes me revelam uma cultura do excesso, da riqueza, tudo é muito, e eu acho que isso está presente em muitos filmes americanos, e acho interessante. Mas quando você vê um Bad Boys 2 do Michael Bay, tudo isso está presente de uma maneira que quase te faz vomitar. Porque há a arrogância, também americana, que se aplica a... bom, tem uma cena que se passa em Cuba, e eles dirigem um desses 4x4 gigantescos no meio de uma favela, e você não sabe se é engraçado. É uma favela, com as casas, barracos...
FC: E deve ter gente lá...
KMF: Eu imagino que sim. Gente lá, dormindo, fazendo alguma coisa. Então isso, pra mim, é Michael Bay e é muito a cultura americana. E não deixa de ser autoral, porque o cara é arrogante, o cara faz um cinema arrogante. Acho que essa é a palavra.
FC: E que é recorrente em todo filme dele.
KMF: Em todo filme dele. Muito recurso, muito dinheiro, muito equipamento, muita coisa sendo quebrada, numa escala anormal. Então é fácil, de certa forma, identificar um toque autoral no Michael Bay.
FC: Eu estava conversando justamente sobre isso, hoje, com o meu orientador [de mestrado], e mencionei a sua crítica do Transformers 2. Mesmo que ele seja horroroso, pois é muito torturante você ver filme do Michael Bay, se você pega um filme dele passando na televisão, entre outros filmes grandiosos de ação, você consegue identificar que é do Michael Bay. Pelo jeito como ele lida com a imagem, pela forma como ele edita, você consegue identificar que é um filme do Michael Bay e não é um Gore Verbiski genérico, por exemplo.
KMF: É, o Gore Verbinski é meio... meio...
FC: Operário?
KMF: É, como se tivesse um plug in que eles contratam, e um Mac gigante e poderoso que faz o filme por ele. O Michael Bay não. O Michael Bay tem um toque. As cores, o desenho de som é muito agressivo, mais agressivo ainda do que o normal.
RP: Dia desses eu vi um blog que mostrava que as cores do cinema americano viraram uma coisa só: o laranja e o azul.
KMF: É, eu vi isso. Muito massa!
RP: É, muito legal. E as cores ficaram assim, sempre trabalhadas desse jeito.
FC: O A Ilha eu acho que é o pior nesse sentido. Porque A Ilha é azul e laranja mesmo. Só.
KMF: A Ilha deve ser o pior dele.
Todos: Não, Bad Boys 2.
FC: Ou Transformers 2. Que tem duas horas e meia. Mas Bad Boys 2 também tem. Ele não faz filme com menos de duas horas.
KMF: Não, não faz.
FC: Mudando um pouco de foco: na entrevista que você deu para a Cinética, em maio (2011), você fala do seu interesse pela união do cinema com o mundano. Você diz que considera o elemento fantástico um sinônimo para o cinema. Achei muito interessante e queria que você falasse mais sobre isso. Lá na entrevista eu entendi a relação que você faz, do cinema permitir que uma mera cozinha seja mais que uma cozinha, e que o problema de filmar o mundano é que às vezes você filma o mundano mundanamente. Mas o que me interessou foi quando você fala em ser sinônimo.
KMF: É claro, isso vem de alguém que adora o cinema fantástico. Eu cresci vendo cinema fantástico. Um filme que tenha um elemento fantástico, ou uma fábula que você lê, na literatura ou num conto eslavo, por exemplo, ele parece que mexe com a sua imaginação de uma maneira muito saudável, e você dá um pulo além do que se você estivesse lendo um relatório, um boletim de ocorrência, onde é bem factual: o criminoso veio, puxou a bolsa, puxou a faca... É interessante, porque tem tensão, tem conflito, mas se algo sai fora do realismo absoluto, mas de uma maneira que é fascinante, que é intrigante, e alguém consegue filmar isso, eu acho que é um grande momento quando você está sentado num cinema e sente isso: que eu passei pro outro lado, que passamos da linha que divide o normal do anormal. Então é por isso que eu acho que fotografa tão bem, que é tão cinematográfico. Mas eu falo isso da posição de quem fez três filmes que lidam com o fantástico – Recife Frio, Vinil Verde e A Menina do Algodão –, mas n’O Som ao Redor eu não acho que parte pro outro lado. Ele fica num nível...
FC: Intermediário?
KMF: Exatamente. Que você não sabe o que está acontecendo. Isso também é muito interessante, porque é muito cinematográfico. É quando você tem certeza, “pô, estou vendo um filme!”. Claro, você pode ver um Eduardo Coutinho e “estou vendo um filme.”, mas quando você está envolvido naquela forma e chega na linha do limite é “pô, tô vendo um filme!”. Pelo menos pra mim. Isso é muito interessante, e muito raro no cinema brasileiro. Cinema brasileiro tem uma escola mais realista. Historicamente, não é normal o cinema brasileiro lidar com elementos fantásticos, gênero, ficção científica...
RP: Por quê?
KMF: Acho que é uma questão de cultura. Ninguém sabe realmente explicar, mas é uma questão de cultura, acho. É a nossa cultura de cinema. Porque a nossa cultura é mística: temos elementos fortes, africanos, indígenas, católicos, folclóricos... O Brasil é riquíssimo nisso, mas, de alguma forma , não sai no cinema.
FC: De certo modo, o Glauber explorou isso um pouco.
KMF: Explorou. De uma maneira muito peculiar dele. Mas, claro, tem o exemplo clássico do José Mojica, o Zé do Caixão, mas em termos gerais, não acontece. Quanto ao A Menina do Algodão e o Vinil Verde, eles foram recebidos muito bem, mas, por outro lado, com algumas pessoas ficou uma certa rejeição. “Eu não entendo por que”, “que coisa mentirosa”, “não gosto de filme de terror, sai pra lá”. Tinha um estranhamento, uma incapacidade de catalogar. “Que objeto estranho é esse? Não sei o que fazer com isso.” Eu senti muito esse tipo de reação, principalmente no Vinil Verde. Algumas pessoas simplesmente não aceitam que algumas coisas que acontecem no filme aconteçam no filme. Quase como se fosse uma questão de índole, ou de religião.
FC: Não tem aquela relação com a suspensão da descrença, que eu acho que o cinema exige por natureza. Em qualquer situação.
KMF: Exatamente. Eu não entendi algumas das reações negativas ao Vinil Verde. Suspensão da descrença zero. “É o que é e isso não existe”, sabe? Algo a ser combatido, “esse filme precisa ser combatido, porque isso não existe”. Eu achei estranho.
FC: Agora uma pergunta de outro colega nosso: como você concebe a relação entre crítica e teorias de cinema?
KMF: Acho que os teóricos são muito importantes nesse processo todo. Eu acho que tem uma quantidade de ideias incríveis saindo da academia. Existem pensadores que são extremamente relevantes no sentido de você entrar num sistema de pensamento e entender que aquilo faz absolutamente sentido, em relação à sociedade, em relação à maneira como a estética se desenvolveu, em relação à psicologia, à filosofia. Acho que é muito rico. O problema principal é quando isso se torna um button que você fica colocando na sua roupa como crítico e muitas vezes vale mais a citação do que exatamente o que a citação significa. Se você conseguir absorver a citação e conseguir retransformá-la e remixá-la dentro das suas especificações e dentro do que o filme quer dizer pra você, me pareceria mais forte como conceito e como ideia. Eu não gosto da crítica que faz citações demais, pois parece que se torna refém da academia, de certa forma, como se fosse uma vítima da própria academia. No meu jeito de fazer é muito raro colocar uma citação a alguém ou a alguma coisa. Talvez seja um estilo meu. Gosto de trabalhar com uma carga pessoal minha e como eu vejo as coisas, como eu sinto as coisas. Isso me estimula mais do que buscar referências. Na verdade, não me interessa fazer isso. Eu, pessoalmente. E acho que há uma tendência, por mais que o cara diga quenão, mas há uma tendência a soar pedante. É uma coisa que eu não gosto, que eu tento evitar.
RP: Fica meio contracampista, não?
KMF: A [revista eletrônica] Contracampo tem esse pecado. E é uma coisa meio geral, a relação que boa parte das pessoas tem em relação ao que eles [da Contracampo] produzem. Sinto que isso fica no ar. E acho que o resultado é quase sempre aborrecido. Não estou dizendo que não devem ser lidas. A Contracampo tem coisas fantásticas. A Cinética também. Mas há alguma coisa que fica no ar, um certo aborrecimento. É aquela sensação que eu tenho: “sim, mas o que você achou do filme?”
FC: Você se refere mais ao como isso se expressa no texto? Porque quando você fala da carga pessoal, é claro que esse arcabouço teórico, e arcabouço de vida e tudo mais, esse arcabouço de alguma forma está lá. Não só teórico, mas de tudo.
KMF: Eu espero que sim. Eu acho que se for um trabalho bem feito, sim, vai estar muito presente. Mas uma coisa que eu já observei, que acho curioso, é que em alguns embates entre alguns críticos e alguns cineastas, até de uma maneira que seria muito positiva, uma colocação muito positiva vinda de um crítico para um cineasta – e eu percebi isso em 12 ou 13 anos de festivais, coletivas, e até conversas assim, onde eu estava presente –, e alguém vem com uma over teorização, eu diria que, na maior parte das vezes, o cineasta tende a rechaçar isso. Ele ou ela normalmente não tem paciência pra isso, não quer saber disso, e não entende o que aquela pessoa está falando naquele momento. Acho que há uma reação negativa em relação a esse approach, nessa maneira de trabalhar. Mas, tirando a questão do estilo, eu acho absolutamente interessante. Acho que um Serge Daney é um Serge Daney. É um cara que contribuiu muito para a compreensão do cinema através de teorias que são muito interessantes e muito sofisticadas. Mas o problema é que pra cada Serge Daney talvez existam 460 súditos que também pertencem à academia, mas só conseguem ser chatos.
FC: Agora um pouco pro Crítico: ele propõe essa relação entre críticos e cineastas, entre críticos e filmes, e me vem em mente o Bem Me Quer... Mal Me Quer, documentário da Maria de Medeiros. Quando eu soube do projeto do Crítico, lembrei desse filme, porque ele é de 2004 e tem uma proposta semelhante, em que a Maria de Medeiros entrevista críticos e cineastas diversos durante edições do Festival de Cannes. Eu gosto do Bem Me Quer... Mal Me Quer, mas o Crítico me parece ser um irmão mais interessante. Você acha que a similaridade procede? Até onde?
KMF: Sim. Na verdade, a gente tava no meio do processo do Crítico quando surgiu esse filme. Passou no Eurochannel na época.
FC: Passou na TV Cultura também. Foi onde eu vi.
KMF: Ah, é? Eu vi no Eurochannel. E eu: “tá, vou ver.” Não teve aquela coisa de “não, eu estou fazendo um filme parecido, então eu não vou ver.” Não, eu fui ver. E eu acho que ela quis fazer o filme talvez por motivos parecidos. Primeiro, por ter acesso àquelas pessoas, como eu também tive, e por achar o embate interessante. Porém, aí eu lembro dela na cama, e achei muito estranho uma cena em que está esparramada na cama, ou entrevistando alguém na cama, o que me tirou um pouco daquilo. Mas, sim, o Crítico é irmão desse filme, com certeza. Acho que vieram do mesmo tipo de preocupação ou de incômodo.
RP: Já no embalo da pergunta: o que te motivou a fazer o Crítico?
KMF: Eu valorizo muito a possibilidade de registrar alguma coisa. Considero importante, principalmente quando ela faz parte da minha vida, e eu comecei a querer fazer o filme quando entrei, digamos, na velocidade de cruzeiro como crítico, logo um ano depois de começar a escrever. Viajando muito, entrevistando e conversando com muita gente. Eu achei que em 30, 40, 50 anos, para o arquivo do futuro talvez fosse interessante ter uma série de pensamentos e impressões e pontos de vista sobre o cinema, de pessoas que no futuro já estarão mortas. E no futuro eu também estarei morto um dia, e isso ficaria como registro. Isso era uma coisa muito importante e acho que pode se aplicar a qualquer que eu fiz até hoje. O Crítico, claro, é um documentário, tem essa carga mais forte de arquivo, mas todo filme é um arquivo importante. Outra coisa que foi muito importante pra mim, que eu sentia desde que comecei a escrever, até hoje, é o mal-estar que sinto, na própria profissão, de você ter que apreciar ou ter que expressar sobre uma obra que foi feita por uma outra pessoa. Essa expressão de um ponto de vista causa um incômodo ou uma alegria que é passageira. Uma angústia. Isso eu sempre senti. Entrar num coquetel de um festival e saber que tem dois caras que ficaram muito chateados com alguma coisa que eu escrevi. Ou aquele colega meu que escreveu. Essa tensão estranha, como administrar? Como escrever sobre um filme, cirurgicamente no filme, sem sugerir que o realizador é um idiota, um retardado, um imbecil? Essa tensão humana me interessou em fazer o Crítico. E me parece que é o que Maria de Medeiros tentou fazer no filme dela. Essas tensões humanas que existem.
RP: E você, como cineasta hoje, como é sua relação com a crítica?
KMF: Bom, em primeiro lugar, eu tenho que dizer que até agora eu fui bem tratado pela crítica. Meus filmes já ganharam prêmios de crítica, textos bem bons. Nas ocasiões em que saíram coisas negativas, aí eu voltei para o período em que eu estava fazendo Crítico, e através dessa experiência de entrevistar os cineastas eu cheguei a uma teoria de que existem cinco tipos de crítica que você precisa entender para entender como cineasta. Tem a crítica positiva e inteligente, que é a melhor que existe: o cara te entendeu, a crítica é positiva, faz as pessoas quererem ver o filme, você se sentiu compreendido, o cara é ótimo, tá tudo certo. A segunda é a crítica positiva e estúpida, burra: o cara adorou seu filme, mas ele não entendeu o seu filme. Obrigado e tal, mas não, obrigado, porque você não entendeu nada do meu filme. Acontece. Mas você também não vai brigar com o cara; você vai ler e “ok”.
FC: Só fazer um parêntese: tem uma parte que eu acho interessante no filme, que é o Carlos Reichenbach, não lembro o crítico que ele menciona, mas que aponta uma certa recorrência na obra dele, “um filme masculino e um feminino, masculino, feminino”, e o Reichenbach diz nunca ter notado essa recorrência apontada pelo crítico. O Carlão acha interessantíssimo. Porque acontece muito, do crítico enxergar coisas que nem o cineasta enxergou.
KMF: Bom, isso pode entrar na primeira categoria, em que é tudo maravilhoso e você ainda aprendeu com o cara. E aí tem a segunda, que é super positiva mas o cara não entendeu. “Pô, adorei Vinil Verde, é hilário!” Ok, algumas pessoas podem achar engraçado, mas eu particularmente não acho engraçado. É uma coisa que eu discordo, mas qualquer um pode achar o filme engraçado, e algumas coisas são engraçadas, mas eu não acho que seja um filme hilariante. Aí vem a crítica negativa estúpida: é aquela que você lê e você ri. Esse cara, além de não ter entendido nada, ele não entendeu nada. Saiu uma do Crítico, acho que semana passada, no site Críticos.com.br. Qual é o nome dele...? Nelson Hoineff. Ele claramente queria ter visto outro filme, não o filme que eu fiz. Ele escreveu sobre o Crítico muito negativamente, mas ele queria ter visto um filme que existia na cabeça dele. Acho que o Fernando Meirelles fala sobre isso no Crítico.
FC: O Truffaut também fala. Ele chama de crítica professoral, lá no [artigo] Os sete pecados da crítica.
KMF: Exatamente. Ele tinha um filme: “Crítico, vou ver um filme sobre a crítica”, aí ele já criou um filme na cabeça dele, e o filme que eu fiz não era esse filme, então a crítica inteira é um lamento do filme que deveria ter sido, o que é um problema. Bem, a quarta é a crítica negativa e inteligente, o que é complicado, porque você pode ficar mal, com uma pulga atrás da orelha. Quando você faz seu filme, claro, você faz da melhor maneira possível, você deu o melhor de si, mas alguém pode chegar pra você e dizer “Mas e isso aqui? Você bla-bla-bla...?”, e você “Nossa, é verdade! Eu nunca tinha pensado nisso.” Essa é uma crítica inteligente e negativa. Você pode ficar meio mal com ela, porque talvez você se sinta descoberto. Por fim, tem a quinta crítica, que pode parecer absurda mas ela existe, que é a crítica negativa pessoal, em que é muito difícil você provar que é uma crítica pessoal, uma perseguição pessoal, porque você vai se passar por paranóico, síndrome de perseguição, essas coisas. É muito complicado.
FC: Isso me lembra o momento em que o Sérgio Bianchi diz que há “uma montanha de ressentimento” em parte da crítica brasileira, lembrando de colegas que tentaram fazer filmes mas não conseguiram.
KMF: Esse é o velho mito do “todo crítico é um cineasta frustrado.”
FC: Sim. O maior clichê em torno da crítica é justamente esse: que o crítico é um cineasta frustrado. Inclusive você tem uma camiseta que inverte isso [“Todo cineasta é um crítico frustrado”], até meio famosa, e que se você permitir eu gostaria de fazer uma.
KMF: Claro!
FC: É que eu lembro que tem o “R” de “registrado” nela.
KMF: Não, claro! Sem problema.
FC: O Crítico me parece ser sobretudo uma reflexão sobre o cinema e sobre o olhar. Mas existe no filme alguma tentativa de que a figura do crítico seja melhor compreendida nessa estrutura do cinema em geral?
KMF: Eu juro que essa não foi a intenção. Não é um filme utilidade pública pra tentar melhorar a imagem do crítico. Acho que, no processo final do resultado do filme, pode até ser. Alguém entender que não é uma ciência exata, é o ser humano no que há de melhor e pior no que ele tem pra oferecer. Acho que isso pode ser uma conclusão indireta do filme. Mas nunca fiz isso pra mostrar “Olha, como nós somos humanos!”, nada disso. Pra mim, sempre foi claro que críticos são seres humanos. Muitos cineastas podem, brincando ou não brincando, achar que não são, mas pra mim é muito claro.
FC: Porque eu acho que, embora, como disse, o filme é mais sobre o olhar, sobre como você vê o cinema, a relação que cada um tem com o cinema – até as inserções daqueles filminhos são muito sobre isso, o objeto e o olhar –, mas vejo o filme também passando essa oportunidade. A primeira vez que vi foi no Canal Brasil, e uma amiga minha estava do lado. Ela sempre meio me enchia o saco com “ah, vocês críticos são muito chatos.” Ela tinha aquela ideia de que o crítico quer falar o que o filme é, imperativo. Quando o filme acabou, ela disse: “É, agora eu entendo melhor essa sua paixão pela crítica. Entendo melhor a crítica de cinema e o que ela se propõe a fazer.” Gostei muito de ouvir isso. Ela é da Psicologia, e também trouxe uma bagagem bem pessoal dela no depoimento do Reichenbach, quando ela disse: “Crítico é como um psicólogo às vezes, como um terapeuta.”
KMF: Totalmente. Sim, exatamente.
FC: Que às vezes até mostra pro cineasta o que ele não vê.
KMF: Tem cineastas que são tão autorais e você percebe claramente os trejeitos dele ou dela, e isso talvez seja claro pra muita gente. Essa coisa de filmar o masculino e o feminino no Reichenbach é bem curioso. Não é uma coisa tão fácil, porque você tem que acompanhar cada obra do cara. Não é um elemento de cena que você percebe: “ah, outro pé aí. O cara é podolatra.”, como no Tarantino. Acho que, sim, há um aspecto psicológico. Tem uma coisa muito interessante: acontece muito de o cineasta chegar em Cannes, a estreia mundial do filme dele, zero quilômetro, nasce ali, e uma vez teve um cineasta brasileiro com quem eu falei uma semana antes de todo mundo ir pra Cannes, no Brasil ainda, no Rio de Janeiro, e eu percebi que ele não sabia nada de seu próprio filme. Ele estava numa página em branco ainda. Investiu tanta energia naquele filme que realmente estava uma página em branco, e não sabia o que falar – que é algo que eu estou sentindo em relação a O Som ao Redor, neste momento. Em Cannes, depois do primeiro dia que o filme passou, eu li uma crítica bem interessante que falava do longa. No dia seguinte, quando conversei com o diretor, ele estava todo falador e utilizando o discurso dessa crítica que eu já tinha achado interessante. Ou seja, ele passou a repetir, se apropriou e agora era o discurso dele, mas veio da crítica. Ele não só gostou, mas se sentiu compreendido: “É isso! É isso aqui, é isso aqui!” Passou a adotar. Achei muito curioso o cara repetir. E até hoje ele repete esse discurso.
FC: Essa relação crítico-cineasta eu acho muito parecida com a relação crítico-leitor. Sua relação com o leitor parece ser bastante saudável. Você é bem aberto a discussões, ao diálogo, mas na relação crítico-cineasta tem algo de mais delicado, já que estamos mexendo diretamente com a construção da arte de alguém, muitas vezes pessoalizada pelo autor. Você já passou algum desconforto com alguém por conta de uma crítica negativa? O Crítico traz entrevistas com diretores de filmes sobre os quais você já criticou negativamente. Como foi o contato com eles? Porque você fez a maior parte das entrevistas, ou todas, se não me engano.
KMF: Sim, foi. Acho que 98%. Isso depende muito de cada pessoa, cada diretor. Se o cara sentiu com tanta raiva, tão chateado, ele provavelmente não quer mais falar comigo. Alguns ficaram chateados, mas falam, e entendem que cada filme é um filme. Outros guardam rancor pra sempre, outros não guardam rancor nenhum, outros me desprezam. Acho que depende muito de cada pessoa. Não existe uma regra pra isso. Tem de tudo. Isso tudo que falei já aconteceu: gente que te despreza, gente que continua te respeitando, gente que ficou com gosto ruim na boca, amargo. Tem muito cineasta que fica amargo, vez o outra solta uma gracinha: “é, mas você escreveu aquilo”... Memória de elefante, sabe? Remoendo. Anos depois e o cara continua remoendo.
FC: Diz que está tudo bem, mas não está.
KMF: Diz que está tudo bem, mas não está. Porque toda vez que você encontra a pessoa, ela vem com a mesma piada. Tipo: get a life, sabe? [risos]
FC: Em outra passagem, Crítico aponta o prazo de apenas duas horas para escrever sobre um filme em Cannes, o que é próprio da rotina de qualquer festival, assistir a cinco ou seis filmes por dia, o crítico tendo de falar sobre aquilo o mais rápido possível. Na suas coberturas, é possível notar certa preocupação de que isso pode ser resultado de impressões iniciais, de uma sessão corrida, o risco de ser um pouco impreciso, ou até injusto com o filme; às vezes você até informa que mais texto pode ser adicionado, ou reformulado após uma segunda leitura. Qual é a sua relação com o tempo de reflexão sobre um filme e a escrita?
KMF: Na minha experiência, os melhores textos vêm de uma sintonia que você tem com o material, com o filme. Às vezes você já tem uma sintonia pra receber aquele filme, da mesma maneira que você pode não estar sintonizado pra receber aquele outro, não te interessa, porque não é o tipo de escola que te interessa, o tipo de tratamento, o tipo de assunto, o tipo de pensamento, o tipo de freqüência cerebral do filme não é a sua. Quando você sintoniza um filme, é a melhor coisa que pode acontecer, porque pode ser o mais difícil do mundo, 04 horas e 20, mas você está sintonizado naquele filme. É muito mais fácil você escrever sobre um filme que você tenha a sorte de estar sintonizado. Não é como se todos os filmes viessem iguais e você tem que [Kleber imita a posição da estátua O Pensador, de Auguste Rodin] parar pra pensar sobre ele. Não é assim. Quando a exibição começa, você percebe que já está em sintonia com aquele filme, para o bem ou para o mal. Você pode estar sintonizado com um filme em que você esteja vendo que está tudo errado.
FC: É o que eu ia comentar agora. Não precisa necessariamente falar bem.
KMF: Não necessariamente positiva. Você pode entender tudo o que ele está falando. Por exemplo, um filme que eu detesto: Domésticas, do Fernando Meirelles. É um filme em que estou completamente sintonizado no que ele diz e eu acho que é absolutamente inaceitável o que ele está fazendo. Estou sintonizado, porque um assunto que me interessa muito na crítica, e no cinema, é a questão da representação. Como é que você vai representar uma classe social num país como o Brasil, que é todo fatiado em classes bem específicas? Pra mim, isso é muito importante no cinema brasileiro: representação de classes. E o Domésticas é um filme que se propõe a fazer isso, e faz da maneira mais catastrófica que eu posso imaginar. Estou sintonizado, e assim que ele acaba eu poderia escrever quatorze páginas sobre o filme. Por outro lado, posso ver um filme que absolutamente não me estimula em nada a escrever sobre, porque não me interessa. O que é um problema na crítica, porque esse outro filme não me interessa e, profissionalmente, tem quarenta linhas me esperando pra preencher no jornal, o cara ligando: “Tá pronto?”, e eu: “Não daria pra diminuir pra quinze linhas?”
FC: Num blog você já tem total liberdade.
KMF: Em Cannes, certo? Este ano foi perfeito. Eu escrevi sobre o que me interessava.
FC: O Duda [Eduardo Valente, da Cinética] fala isso no Crítico. Que na internet você pode simplesmente não escrever.
KMF: Sim. “Eu não tenho nada pra falar sobre esse filme.” O filme é ruim? Não, não é isso. Eu só não tenho nada pra falar sobre esse filme.
FC: Pode ser até bom.
KMF: Sim, pode ser até bom.
RP: Só pra fechar este tópico: eu acho que você faz um papel de formação de público, principalmente lá no Cinema da Fundação, e também com a comunidade do Cinemascópio nos tempos de Orkut, acho que também rolou toda uma formação ali. Eu queria saber qual é a importância disso, qual é o reflexo que você vê na formação desse público com que você faz contato direto lá no cinema da Fundação – e eu acompanho de longe, mas sei um pouco do resultado – nesses últimos dez anos?
KMF: É difícil falar. Acho que a melhor maneira de quantificar isso é talvez fazer uma série de perguntas a pessoas que pertencem a essa comunidade que, de alguma maneira, para o bem ou para o mal, se beneficiaram desse trabalho de formação de público. Porque pra mim é um pouco complicado dizer “ah, é fantástico”. Eu gostaria de acreditar que sim, porque tive sorte no Fundação. O que poderia ter acontecido era o seguinte: tudo o que começa do zero precisa de um tempo para crescer, adquirir velocidade, começa andando devagarinho... Alguém poderia ter decidido que com sete meses isso não não ia funcionar. “Vamos passar filmes populares.” Mas isso não aconteceu. Chegou a um ano, um ano e meio, dois anos, e aí o cinema já estava jovem, treinando, já estava correndo, e eu tive tempo de fazer isso acontecer. O primeiro ano foi difícil, porque tinha um monopólio da empresa que pegava todos os filmes com maior destaque e possibilidade de atrair público, então foi mesmo um trabalho de guerrilha. Até por viajar muito como crítico, eu conhecia os filmes, e o cara do outro lado não conhecia, ele só conhecia os sucessos. Então foi uma maneira de programar como guerrilha, trazer filmes que ninguém quer mas eu sei que são bons, e dava resultado em Recife e não dava em nenhum outro lugar, porque ninguém queria. Acho que nesses treze anos foi possível construir um público aos poucos e que e hoje é amplamente conhecido esse trabalho no cinema da Fundação. Agora, dizer que tipo de impacto isso teve, eu não sei. Posso dizer que Recife tem cenários de cinema muito interessantes, tanto de produção quanto de cinefilia mesmo. A produção pernambucana é muito interessante, os curtas e longas, e me sinto bem em ter contribuído de alguma maneira com isso. Não posso dizer que o impacto é fenomenal, mas é importante.