Kamylla Rodrigues
Goiânia - É começo de semana e o movimento nas Centrais de Abastecimento de Goiás (Ceasa-GO) é intenso. Um caminhão chega e ligeiramente é descarregado. É uma carga de tomates de Goinápolis. Entre uma caixa cheia que desce e uma vazia que sobe, algumas frutas e verduras ficam no chão. Estão em ótimo estado, mas ali permanecem até serem pisoteadas, esquecidas, levadas para o contêiner de lixo ou, felizmente, recolhidas por diversas famílias que suprem as necessidades de casa com esses itens.
Alimentos desprezados na Ceasa-GO (Fotos: Marcela Patrocínio)
É ali que a cozinheira Maria das Dores faz sua "feira" da semana. Com a ajuda do neto, de 7 anos, ela recolhe, em média, três quilos de alimentos, entre hortaliças, verduras, frutas e legumes. "Eu tenho dois filhos e atualmente estou desempregada. É daqui que eu tiro parte do nosso sustento da semana", diz Maria, que afirmou não se incomodar com alguns defeitos dos produtos. "Eu abaixo, recolho e olho. Cheiro e avalio se está bom pro consumo. Estou fazendo isso há dois meses e às vezes fico até triste de ver tanta comida boa no chão, sem o menor zelo. As pessoas que têm muito não entendem o que é passar fome", lamenta ao lembrar da infância sofrida.
Maria das Dores e o neto vão para a Ceasa toda a semana (Foto: Marcela Patrocínio)
Quem também compartilha desse pensamento e atitude é o autônomo Borges Agamenon, que bate ponto no Ceasa toda semana. Ele tem uma propriedade próximo a Goiânia e alimenta os 200 porcos com os produtos que não possuem mais valor comercial na Ceasa. "Eu saio daqui com a carretinha cheia de coisas que realmente não estão tão boas e de alimentos que eu mesmo uso em casa. São pimentões, maxixe, mandioca, repolho e diversos outros alimentos que me ajudam a economizar, inclusive", diz ao despejar mais uma caixa de maxixe na carretinha.
Borges Agamenon despeja caixa de maxixe na carretinha (Foto: Marcela Patrocínio)
O comerciante atacadista Sérgio Brito de Souza foi quem doou as caixas do vegetal, ainda em bom estado. "Eu venho três vezes por semana. Tem produto que é muito perecível e quando chega no fim da manhã aqui na Ceasa, nós já temos que descartar porque não dá pra guardar por dois dias. Eu costumo mandar para o banco de alimentos, mas às vezes estamos com pressa e descartamos no lixo mesmo", relata. Segundo ele, dependendo do alimento, o desperdício chega a 10%.
A Ceasa-GO recebe, em média, 80 mil toneladas de hortifrutihranjeiros por mês. Desse total, 128 toneladas, ou seja, 1,4% é doado para o Banco de Alimentos da Ceasa /Uniap e 30 toneladas (0,3%) vai para a Usina de Tratamento de Resíduos (UTR), para a produção de adubo. "Os alimentos disponibilizados aqui são dos produtores. Eles são responsáveis pelo produto e realmente muitos não têm o manejo adequado, deixando cair no chão ou até jogando fora coisas boas. Nós da Ceasa tentamos diminuir esse desperdício com o banco de alimentos. Estimulamos, junto às associações, os produtores a fazerem a doação e isso tem dado certo", afirma o presidente da Ceasa, Junior Vieira.
No último mês, o banco de alimentos doou comida para 933 famílias e 65 entidades cadastradas. As doações são feitas às quartas-feiras e aos sábados. "Acredito que o que fazemos é uma ação social, por ajudar tanta gente, e ambiental, por produzir adubo evitando que os alimentos sejam jogados em lixões", ressalta Junior, que estuda um projeto para as unidades do Restaurante Cidadão da Capital e de Aparecida de Goiânia oferecerem sopa feita com os alimentos doados pela Ceasa.
Fila de pessoas para receber doações na Ceasa (Foto: divulgação)
Na mesma modalidade de banco de alimentos, o programa Mesa Brasil Sesc, que é uma rede nacional de bancos de alimentos contra a fome e o desperdício, aproveita o que está “sobrando” para oferecer a quem precisa desde 1994. Atualmente, está implementado em todas as capitais do País. De janeiro a maio deste ano, a unidade em Goiânia arrecadou 235 toneladas de alimentos, que foram distribuídas para 385 entidades filantrópicas no Estado. A rota de coleta passa pela Ceasa, hipermercados, atacadistas, distribuidoras de hortifruti, entre outros pontos. Além das hortaliças, frutas, legumes e verduras, o programa também recolhe produtos com datas próxima a da validade.
O Mesa Brasil ainda oferece capacitação. "Não é só assistencialismo, porque não adianta arrecadar alimentos se a instituição não o aproveita integralmente. Então, trabalhamos também com o gerenciamento desse alimento para a sustentabilidade da instituição. Por meio de oficinas e workshops, por exemplo, ensinamos a usar as casas, talos, sementes e outras partes do alimento que, geralmente, são jogadas fora", explica a gerente do Mesa Brasil em Goiânia, Débora dias Oliveira.
(Foto: Mesa Brasil)
O banco de alimentos é uma das boas práticas do Brasil que fortalecem e integram a atuação das unidades de segurança alimentar e nutricional. Mesmo assim, o País ainda se encontra em posição mediana no panorama da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) sobre perdas e desperdício na América Latina.
Estatísticas e varejo
Segundo o boletim de janeiro deste ano, divulgado pela FAO, na América Latina e no Caríbe, 17% das perdas e desperdícios acontecem na distribuição e no mercado. Os dados mais recentes divulgados por pesquisa da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), referente a 2016, os supermercados brasileiros têm um prejuízo de cerca de R$ 7,1 bilhões em decorrência de diferentes formas de perdas e desperdício. O impacto chega a 2,1% do faturamento bruto do setor. A logística de frutas, legumes e verduras (FLV) é a apontada como a área que mais apresenta problemas de perda e desperdício. A baixa durabilidade dos produtos, o transporte e manuseio inadequados tanto nos estabelecimentos quanto por parte dos consumidores, são as dificuldades mais comuns.
Em um estabelecimento varejista de Goiânia, a aposentada Mirian Silva nem percebe, mas passa de gôndola em gôndola apalpando os alimentos e lançando aqueles que não a agrada para cima. "Agora que você perguntou o motivo de eu fazer isso que eu me atentei. É algo tão natural já que nem percebemos o mal que estamos causando. Eu estou condenando o alimento ao fazer isso", reflete ao prometer que mudará o hábito. O neto que a acompanha brinca de "futebol" com um limão que caiu da sessão das frutas.
Mirian aperta os tomates para escolher quais levar (Foto: Marcela Patrocínio)

A ponta da banana danificada por um consumidor condenou toda a penca (Foto: Marcela Patrocínio)
A escolha daqueles com melhor aparência é um processo natural e bastante comum entre os brasileiros. Segundo o analista de comunicação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Gustavo Porpino, há uma associação imediata entre o aspecto visual e a qualidade das frutas e hortaliças. As que estiverem fora dos padrões tendem a perder valor comercial, mesmo nos casos em que possuem qualidades nutricionais iguais às dos produtos mais bonitos.
"Os supermercados podem educar
mais o consumidor sobre como
identificar se uma fruta
está madura", diz
Gustavo Porpino
Gustavo Porpino apoia parcerias entre os elos da cadeia (Foto: divulgação)
Gustavo Porpino acredita que o Brasil precisa investir mais em educação nutricional e construir parcerias que envolvam agentes públicos, varejo e indústria de alimentos. "O varejo, por exemplo, é um elo muito importante por ter tanto contato com as cooperativas agropecuárias quanto com os consumidores. Os supermercados podem educar mais o consumidor sobre como identificar se uma fruta está madura, sem necessidade de amassar as frutas, e orientar também sobre a conservação e preparo dos alimentos", pontua.
Ele reforça que os supermercados também precisam compreender que, em um cenário hipotético de menor desperdício de alimentos nas famílias, não significa que os consumidores comprarão menos alimentos. "Pesquisas realizadas na Inglaterra e Dinamarca têm mostrado que os consumidores tendem a diversificar mais as compras quando passam a desperdiçar menos alimentos. Quer dizer, o valor médio das compras permanece no mesmo patamar, e as compras ficam mais diversas com a introdução de novos produtos alimentícios na dieta familiar. É um cenário ganha-ganha, bom para o bem-estar do consumidor e bom também para produtores, indústria e varejista de alimentos", ressalta Gustavo.
Boas práticas
O setor também tenta minimizar o desperdício de alimentos com as doações e ações e estímulo à mudança de mentalidade sobre a aparência das frutas e legumes adquiridos. Os seis locais pesquisados pela equipe de reportagem do Jornal A Redação, em Goiânia, não oferecem alimento fora dos padrões por um valor mais baixo, mas todos fazem algum tipo de doação. A rede varejista Assaí, por meio do instituto GPA, recolhe os alimentos que não estão com aspecto comercial, mas ainda bom para o consumo, e disponibiliza para instituições cadastradas e para o Mesa Brasil. Em 2017, foram doadas 1,2 toneladas de hortaliças, frutas, legumes e verduras de 205 lojas de 17 estados, incluindo Goiás. Só no estado, em 2018, o volume arrecadado de janeiro a maio ultrapassou 30 toneladas.
Batata, limão, laranja e chuchu fora dos padrões comerciais ou com defeitos superficiais são reclhidos e doados. (Fotos: Marcela Patrocínio)
De acordo com a gerente do instituto GPA, Tatiana Zukas, essa ação visa fomentar a sustentabilidade do mercado. "O destino desses alimentos muitas vezes é o aterro sanitário. Considerando que há milhares de pessoas em algum nível de insegurança alimentar, e que o aterro contamina nosso solo e nossa água, isso é grave. A doação de alimentos vem fechar o ciclo sustentável da rede, propiciando comida na mesa para quem não tem", diz. Atualmente a parceria do instituto com as redes varejistas do Brasil atende mais de 300 instituições cadastradas e a meta para 2019 é aumentar esse número.
O comportamento do consumidor final fecha o ciclo do desperdício. 61% dos brasileiros descartam, semanalmente, um ou dois alimentos em perfeito estado. Saiba quais os principais motivos desse hábito, as consequencias e o que muitas pessoas têm feito para mudar essa atitude na próxima reportagem da Série: Nosso Rico Lixo.