Kamylla Rodrigues
Goiânia - Olhe para o seu lixo doméstico. O que tem nele? Comida? Na casa de Lucia Nunes tem o mamão que estava esquecido na geladeira, alguns tomates amassados, cascas de legumes usados no almoço, e a verdura cozida deixada no prato pelo filho. A condenação desses itens na casa dela é proveniente de um hábito comum, que gera um desperdício de 41 mil toneladas de comida diariamente, o que daria para alimentar 25 milhões de pessoas por dia.
Uma pesquisa encomendada pela multinacional de alimentos, bebidas e produtos de limpeza Unilever, conduzida pela Edelman, com apoio da Food and Agriculture Organization (FAO), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), e divulgada em junho deste ano, mostrou que o lixo de seis em cada dez lares brasileiros contém comida ainda boa para o consumo. Lucia assume que vê o desperdício como problema, mas acha que isso não causa tanto impacto em sua vida, ainda. "A gente segue aquela linha: é melhor sobrar do que faltar", diz ela.
Essa sobra não tem impacto só na vida da família de Lucia. O desperdício impacta o mundo todo, como ressalta o analista de comunicação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Gustavo Porpino. "O brasileiro típico percebe que jogar comida fora pode prejudicar o orçamento familiar, mas não relaciona o problema ao meio ambiente. Do ponto de vista social, o desperdício de alimentos prejudica os esforços de enfrentamento da fome. Podemos ampliar a oferta de alimentos por meio da redução do desperdício, o que representa a vantagem de reduzirmos o uso de terra agricultável e diversos insumos necessários para produzir alimentos. Também há uma janela de oportunidades para incrementarmos a distribuição do excedente, fortalecendo a atuação dos bancos de alimentos", diz.
Jogar comida fora é também desperdiçar dinheiro. Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) realizada pelo IBGE, cerca de 25% do orçamento familiar é destinado à alimentação. Pegando a renda da família de Lucia, que é de dois salários mínimos (R$ 1.908), em média, R$ 477 são destinados apenas com a alimentação. Se considerar a média mundial, que aponta que 30% dos alimentos são desperdiçados, essa família gastou R$ 143 com alimentos que, no final das contas, foram parar no lixo. Ao parar para analisar a conta, a dona de casa arregala os olhos. "Vamos repensar o consumo e a forma como descartamos comida. Tanta gente passa fome por ai, né?!", observa.
Como tratado na primeira reportagem desta série, o problema da insegurança alimentar ainda atinge 22% da população, segundo os dados de 2013 do IBGE, e está mais relacionado à distribuição do que à produção insuficiente. O Brasil está entre os dez países que mais desperdiçam comida no mundo e 14 milhões passam fome no país.
Gustavo Porpino atribui a possibilidade de desperdício ao gosto pela fartura, típico da cultura latina. "O brasileiro gosta de abundância e diversidade sobre a mesa. A maioria da população pertence à classe C, e neste segmento há maior valorização da fartura sobre a mesa. As porções tendem a ser mais fartas no preparo da comida nas famílias de classe média baixa porque também simbolizam riqueza. É uma forma das pessoas se distanciarem da situação de pobreza e mostrarem para os membros da família que, mesmo em tempos de crise, há fartura na mesa. O problema desta valorização da abundância é que nem sempre as sobras das refeições são reaproveitadas e terminam sendo descartadas no lixo".

A pesquisa reforça o discurso do pesquisador: 46% dos brasileiros assumem que cozinham comida em excesso, 54% compram comida além do necessário e 37% adquirem opções extras para satisfazer o gosto de diferentes membros da família. Os alimentos mais desperdiçados são os perecíveis, como saladas, vegetais e frutas. Outro vilão apontado pela pesquisa é comprar alimentos diferentes dos habituais para testar, que acabam não agradando (31%). Na hora de decidir se joga ou não fora, o brasileiro leva em conta cheiro e aparência (85%) e prazo de validade expirado (83%).
Cegueira na geladeira
A pesquisa ouviu 4 mil pessoas, sendo 2 mil norte-americanos, mil brasileiros e mil argentinos, com idades entre 18 e 64 anos, no período de agosto a setembro de 2017. O estudo buscou entender em detalhes um comportamento chamado de "cegueira da geladeira". Como o nome indica, trata-se do hábito de não ver ou ignorar alimentos que estão em perfeitas condições de uso. Quem compra e desperdiça assume que o grande problema é a falta de inspiração (81%). Muitos olham para a geladeira, mas não sabem o que cozinhar ou comer (78%).
Na contramão do desperdício
O desperdício presente em muitas casas não tem espaço no restaurante do Mercure Goiânia Hotel. Comandada pelo chef Humberto Marra, a cozinha minimiza o que vai pro lixo. No prato oferecido para a equipe de reportagem, talos de couve, cuentro e salsa, cascas de cenoura, chuchu e beterraba. Tudo isso refogado com cebola, alho e sal, agregados a banana frita e farofa de carne. O prato acompanha um suco de manga com a casca. Quem não acompanhou o processo nem nota que alguns dos ingredientes utilizados no prato são facilmente descartados por muitas famílias. "Aqui nós utilizamos os alimentos em sua integralidade. Nenhuma comida é lixo quando se é aproveitável", explica o chef.

À esquerda, cascas de beterraba, cenoura e chuchu. À direita, talos de couve, salsa e cuentro. (Foto: Marcela Patrocínio)

Faroda feita pelo Chef Humberto para a equipe de reportagem (Foto: Marcela Patrocínio)
No restaurante, os legumes, verduras, frutas e hortaliças são muito bem lavados e servidos integralmente - com casca e talos. "Nossos hóspedes já se acostumaram e não separaram nada no prato. É uma questão de mudança de comportamento diante da comida, de respeito com o que vem da terra e que consome muitos de nossos recursos. Além disso, parte dos nutrientes desses alimentos está mais concentrado no que muitos descartam", reforça Humberto. Os talos de couve, de salsa e coentro também viram vinagrete. Sementes e aparas de tomate se transformam em molho sugo. Casca de banana vira doce para recheio de bolos.
O restaurante também faz conservas de produtos que estão sobrando na geladeira. Quiabo, pepino, jiló, beterraba viram conserva. A pimenta vira geleia. A laranjinha vira doce. Tudo tem um destino, menos o lixo. "Comecei a mexer com terra há 40 anos e hoje eu vivo disso. Estar na cozinha é se importar com o outro, porque eu cozinho para o outro. E aproveitar integralmente cada alimento tem a ver com a nossa preocupação com o outro. Infelizmente, isso ainda não é uma prática comum nos restaurantes. Temos um caminho longo a ser trilhado, mas se cada um fizer em sua própria casa já é um ótimo começo. Isso é saúde, é sustentabilidade e é economia", pontua.
Chef Humberto e equipe (Foto: Marcela Patrocínio)
Humberto ainda utiliza os itens que não são reaproveitáveis no consumo, como a casca de ovo por exemplo, para fazer compostagem que mantém seu projeto atual que é uma horta urbana no oitavo andar do hotel. Tem ervas para chá e medicinais, temperos e hortaliças em desenvolvimento. As plantas são cultivas em vasos e em caixinhas de leite. O projeto da horta, que enche os olhos de quem plantou a primeira semente, será em breve aberta aos hóspedes. "Eles poderão vir até aqui, escolher e colher o que vão consumir. Produtos orgânicos sustentáveis cultivados com amor e consciencia. Essa iniciativa abre portas para sensibilizar clientes sobre a importância do aproveitamento total dos alimentos, inserção de espécies que sumiram da mesa dos goianos, a valorização da 'fruta feia' e a alimentação saudável", diz Humberto, que conta com uma equipe engajada.
Projeto do Chef Humberto, horta urbana ganha espaço no oitavo andar do hotel (Foto: Marcela Patrocínio)
Servidora pública e presidente da ONG Eco Amor, Jordana Mendonça é uma das militantes da causa. Há dois anos, ela também utiliza em casa a técnica da compostagem, que evita que resíduos causem contaminação de solos e aquíferos. Essa técnica ainda aproveita os nutrientes dos alimentos ao torná-los disponíveis novamente para a planta. A compostagem converte resíduos em compostos orgânicos ricos em nutrientes, substâncias húmicas e carbono, que servem de fertilizantes para as plantas. "Assim, em vez de virar lixo e ocupar espaço em aterros e lixões, ele servirá de insumo. Eu comecei a fazer isso quando fui selecionada em um projeto de São Paulo e ganhei a composteira. Costumo dizer que meu primeiro bicho de estimação foi a minhoca, uma vez que uso a técnica de vermicompostagem. Depois que eu comecei a fazer isso, meu lixo diminuiu significativamente", conta ela.
Jordana afirma que existem vários materiais e formas para se iniciar uma compostagem, que requer cuidados. "Têm composteiras muito caras no mercado, mas a pessoa que quer iniciar pode usar uma caixa de manteiga, por exemplo. Muitos ainda têm preconceito e acham que esse tipo de processo atrai bichos, o que não é verdade. Toda manipulação de alimento em compostagem requer cuidados e acaba se tornando um hábito", diz ao dar dicas para quem tem vontade de iniciar um trabalho parecido. "O primeiro passo é uma reeducação alimentar: comer melhor, o que significa reduzir comida industrualizada. Depois, procurar se informar. A internet é uma aliada muito boa, já que conseguimos acomanhar muitos tutorias. Quem faz a compostagem diminui muito a geração de lixo e isso é cuidar do lugar onde vivemos", ressalta.

Composteira fica na sacada da casa de Jordana (Foto: Jordana Mendonça)
Os alimentos depositados em aterros sanitários, ou simplesmente descartados no ambiente, produzem metano, um gás com efeito estufa 23 vezes mais potente do que dióxido de carbono, aumentando o custo ambiental. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, os compostos orgânicos passíveis de compostagem, como é o caso das frutas e hortaliças, representam aproximadamente 60% do total de resíduos gerados. Isso demonstra a importância de se repensar os padrões de consumo de alimentos, assim como alternativas mais sustentáveis para a destinação desses resíduos.
Formar cidadãos conscientes
De acordo com o pesquisador da Embrapa, Gustavo Porpino, o Brasil precisa investir mais em educação nutricional e construir parcerias que envolvam agentes públicos, varejo e indústria de alimentos. "Faltam fortalecer programas de educação nutricional nas escolas e reaproximar o consumidor urbano da produção de alimentos. As crianças podem ser agentes de mudança comportamental em suas famílias, que, se passarem a perceber que jogar comida fora é muito mais do que perder apenas o alimento, poderemos avançar com o consumo sustentável", pontua.
Ele reforça que para reaproximar o consumidor da produção de alimentos são necessárias ações diversas, desde campanhas de comunicação nos pontos de venda até atividades extra-classe nas escolas para que as crianças e jovens compreendam todo o esforço necessário para produzir alimentos. "Investir em hortas comunitárias e alinhar os bancos de alimentos com ações educativas é um bom caminho", aponta.
Gustavo complementa que o problema envolve todos os elos da cadeia agroalimentar e por isso é necessário uma aproximação maior entre esses agentes. Um dos eixos de ação da Estratégia Nacional de Combate às Perdas e ao Desperdício de Alimentos, aprovada este ano pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), é comunicação e educação. "O desafio é conseguirmos engajar o setor privado, destravar os projetos de Lei de incentivo as doações de alimentos e temos mais recursos para campanhas educativas que contribuam com mudança comportamental".
Você pode mudar o mundo
Executivo, legislativo, agricultores, comerciantes e a indústria alimentícia são responsáveis pela mudança e diminuição do problema. Mas os consumidores também têm sua parcela de responsabilidade e, para contribuir com o planeta, não depende de investimento, apenas de mudança de comportamento. Que tal começar hoje?
Por meio do projeto “Hortaliça não é só salada”, a Embrapa disponibiliza em seu site, entre outros conteúdos, informações sobre como identificar os produtos de melhor qualidade, como acondicionar para que durem por mais tempo e como consumir em diferentes tipos de preparações.
Outro exemplo é a ONG Banco de Alimentos, uma associação civil que atua com o objetivo de minimizar os efeitos da fome e combater o desperdício de alimentos. Eles disponibilizam também neste site conteúdos sobre como conservar os alimentos mais perecíveis e receitas utilizando o alimento integralmente.