Para adicionar atalho: no Google Chrome, toque no ícone de três pontos, no canto superior direito da tela, e clique em "Adicionar à tela inicial". Finalize clicando em adicionar.
Cidade tenta combater violência com inclusão | 28.06.22 - 07:30
O superintendente de assuntos LGBTQIA+ da Prefeitura de Goiânia, John Maia, é pioneiro na gestão pública (Foto: acervo pessoal)José Abrão
Goiânia – Nesta terça-feira (28/6) é celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. Há muitas conquistas para comemorar, especialmente nos últimos 20 anos, porém, a luta por direitos fundamentais, como ao respeito, à moradia e ao emprego, ainda faz parte do cotidiano de toda a comunidade que permanece invisibilizada.
Este traço ainda é bastante forte principalmente para a população T: transexuais e transgêneros, inclusive em Goiânia, apesar do pioneirismo da cidade. Na capital, o Projeto TX, que permite o processo transexualizador por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), está presente no Hospital Alberto Rassi (HGG), que é referência nacional na área, e no Hospital das Clínicas da UFG (HC-UFG). Apenas no HGG, segundo a Secretaria Estadual de Saúde (SES-GO), de 2017 até janeiro deste ano já foram realizadas 5.718 consultas e 22 cirurgias, atendendo homens e mulheres trans. Já passaram pelo serviço cerca de 550 pacientes e, atualmente, mais de 350 são acompanhados no ambulatório.
Além disso, a cidade é pioneira na política: o atual superintendente de assuntos LGBTQIA+ da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas da Prefeitura de Goiânia, John Maia Gomes, é o primeiro homem trans a assumir um cargo de chefia municipal no país. Tais conquistas não são apenas marcos, mas se fazem necessárias frente aos números da violência contra a comunidade LGBTQIA+ toda e a comunidade trans especificamente.
Segundo o Relatório Anual de Mortes Violentas LGBT+ feito pelo Grupo Gay da Bahia, 300 pessoas LGBTQIA+ foram assassinadas ou cometeram suicídio no Brasil em 2021, um número 8% superior ao registrado em 2020. Foram 276 homicídios, mantendo o país no topo do ranking de nações que mais matam pessoas LGBTQIA+, com média de um assassinato a cada 29 horas.
Em 2021, apenas o Estado de Roraima não registrou nenhum assassinato relacionado à comunidade LGBTQIA+. Ainda segundo a pesquisa, a letalidade na comunidade atinge principalmente os homens gays e pessoas trans. Em 2021, foram assassinados 153 homens gays (53% do total de mortes) seguidos por 110 assassinatos de pessoas trans (36,67%). Em 2021, a vítima mais jovem foi uma travesti de 13 anos: Keron Ravac, que foi espancada até a morte em sua cidade no interior do Ceará.
“As pessoas muitas vezes só lembram da população LGBTQIA+ em época de parada, porque pensam que a gente é só festa, e não é. Ter alcançado este patamar de superintendente da pasta é uma quebra de tabu, principalmente em Goiânia, que vem de um cenário bem conservador, e mostrar que a gestão Rogério Cruz é focada em cuidar de pessoas. Independente de ser um pastor e da vida religiosa dele, na vida pública ele não faz distinção entre pessoas e sou a prova viva disso”, avalia Maia sobre sua nomeação na gestão municipal.
“Assumir a superintendência foi algo que eu não esperava, e um dos projetos que trouxe para a secretaria é sobre a empregabilidade. É algo que tenho batido muito na tecla e ido atrás de parceiros, especialmente o Sesc e o Senai, para capacitar as pessoas e inseri-las no mercado de trabalho. Da mesma forma, também para qualificar as empresas para receber e incorporar estas pessoas”, pontua Maia.
A ativista e mulher trans Cristiany Beatriz faz parte da ONG Rede Trans Brasil e ressalta a importância da consolidação das conquistas até aqui, além da importância de educar e informar. “Eu precisei de uma política pública para retificar o meu nome conforme minha identidade feminina e para fazer o processo transexualizador do SUS. Vim do interior de Goiás, tenho 42 anos, e até os 30 vivenciei minha transexualidade de uma forma bastante sofrida devido à ausência destas políticas, além de vivenciar o preconceito de pessoas que, por sua vez, também não tinham o conhecimento sequer sobre o que é identidade de gênero ou da importância de respeitar isso”, relata.
A ativista Cristiany Beatriz (Foto: acervo pessoal)
Empregabilidade e acolhimento
A principal pauta de Maia na superintendência tem sido a da capacitação e absorção da mão de obra das pessoas trans pelo mercado de trabalho. “Hoje em dia, existem muitas vagas de emprego, mas nem toda empresa está qualificada para receber o público LBGTQIA+, especialmente a população T. Tem muita empresa que acha que, ao contratar estas pessoas, elas vão perder clientela. É um trabalho de formiguinha para desconstruir isso”, afirma.
Além dos projetos já em andamento, especialmente em parceria com o Sistema S, nesta terça-feira (28) a superintendência fará uma oficina de integração e marketing para qualificar e certificar a população, já com parcerias junto a empresas para empregar os participantes. A pasta também oferece outros serviços, como retificação do nome social e atualização cadastral no CadÚnico. Também está nos planos uma parceria de empregabilidade com a Cargill e o desenvolvimento de uma cartilha em parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Goiás (OAB-GO).
Maia conta que também está desenvolvendo um projeto paralelo, voltado especificamente para profissionais do sexo da capital. “A superintendência se tornou um ponto para todos os profissionais do sexo. Eles podem pegar camisinha sem constrangimento e estamos criando um projeto de empregabilidade só para essa população, porque temos a situação em que muitas não têm opção e outras que querem ficar e gostam do que fazem”, explica.
Cristiany conta que na Rede Trans Brasil já existe o próprio programa que buscar empregar pessoas trans, chamado Oportunizar. “É uma das ações pontuais desenvolvidas pela militância como forma de promover inclusão, fazendo parcerias com gestões estaduais e municipais. Temos hoje tramitando na Câmara Municipal de Goiânia dois projetos de lei específicos para a população trans, para garantir cotas para serviço público e para empresas que prestam serviço para a gestão pública”, conta. “Com esses projetos, conseguimos fazer com que estas pessoas tenham outras oportunidades, não apenas em relação ao mercado de trabalho, mas em relação aos direitos humanos, segurança, moradia, saúde. É uma população que vive em uma situação de vulnerabilidade social muito grande”, completa.
Cristiany também relata que os levantamentos feitos pela ONG mostram que, devido ao preconceito, muitas pessoas trans acabam saindo da escola, o que agrava o cenário de exclusão. “O que mais aparece neste questionário é a falta de escolaridade. Temos um projeto junto ao Sesc-Senai para realizar o EJA profissionalizante para que possam concluir sua educação”, conta.
O esteticista animal Kaique Moraes já sentiu na pele essa dificuldade no mercado de trabalho. “Já tive experiência ruim no trabalho pelo empregador não contratar mulher, nem lésbica, nem homens gays. Fui trabalhar lá sendo trans e foi um período bastante tenso, pois não sabia a forma como eles poderiam agir comigo”, relata. Segundo Kaique, seus empregadores não perceberam que ele é um homem trans e, o considerando um homem cisgênero, se sentiam confortáveis para fazer comentários preconceituosos, mas ele não suportou a pressão. “Não consegui ficar lá muito tempo. Na época, foi uma das melhores oportunidades que eu teria, mas dinheiro não paga tudo. Lá eles faziam muita piadinha, especialmente com mulheres trans, e eu ficava com receio de ser maltratado”, conta.
Por outro lado, ele atua há 10 anos no mercado pet e conta que agora está trabalhando junto à prefeitura para oferecer cursos de banho e tosa para a comunidade trans. “Eu e o John estamos organizando um meio de formar parceria e deixar o curso mais acessível para a comunidade. O mercado pet é uma área bem remunerada e que está bastante aquecido. Mesmo se não for o foco da pessoa trabalhar na área, pode ser uma porta de entrada para ela ir atrás do que quer”, aponta.
O esteticista animal Kaique Moraes (foto: acervo pessoal)
Acesso
O personal trainer Caleb Novais está no Projeto TX há quatro anos e conta que se sente privilegiado por Goiânia ter um dos melhores serviços de acompanhamento do Brasil. “Essa assistência à saúde e da psicologia é fundamental. A visibilidade da pessoa trans melhorou, mas precisa ganhar mais espaço e mais respeito. Temos muito o que conquistar ainda, precisamos pensar um Brasil com menos preconceito e com mais amor pelo próximo”, avalia.
“Somos pessoas comuns, pagamos nossas contas e ainda lutamos por coisas pequenas do cotidiano, como o uso de banheiros públicos ou não sermos perseguidos em escolas”, diz. Para Caleb, um passo importante que ainda precisa ser dado é a educação: uma ampliação do acesso à informação sobre gênero, sexualidade e o que é o processo transexualizador como forma de combater o preconceito.
“A gente pode ter impressão que não, mas ainda existe muita homofobia e transfobia. Eu perdi alguns alunos, perdi a convivência com uma irmã, tudo por preconceito, por ignorância. Não é fácil. As portas vão se fechar, muita gente até hoje, especialmente no interior, não pode contar até mesmo com o acolhimento dos pais”, relata. O educador físico avalia que a educação sexual nas escolas é fundamental, assim como o acompanhamento psicológico de adolescentes trans via SUS. “Acho que é importante passar esse conhecimento especialmente para os adolescentes, que é na fase em que temos mais dúvidas. Não para fazer tratamento hormonal, mas para ter um o acompanhamento psicológico e multidisciplinar adequado. Não é todo mundo que pode arcar com um terapeuta e é toda uma equipe preparada para receber esses jovens”, explica.
O personal trainer Caleb Novais (foto: acervo pessoal)
De onde vem o ódio
O Atlas da Violência 2021 aponta que o que tem ocorrido é um aumento incremental destes crimes a cada ano, também potencializados por um motivador político. O Atlas identifica como principal motivação o que é chamado de backlash: “emergência de movimentos neoconservadores apoiados pela inversão da narrativa sobre direitos, reivindicando direitos de grupos politicamente hegemônicos que estariam supostamente sendo violados pelos avanços na promoção de direitos de grupos subalternizados. Reivindicando, portanto, uma agenda centrada na noção de que existiriam grupos moralmente indignos do direito a ter direitos”. Tal violência emerge, então, como uma espécie de punição “corretiva” para que tais grupos, nominalmente a comunidade LGBTQIA+.
Kaique conta que o preconceito ainda é muito presente. “Às vezes, depois que a pessoa sabe [que você é trans], ela te trata diferente. Nunca aconteceu comigo, mas já vi acontecer de, após saber que uma pessoa é trans, outra não respeitar mais o nome retificado ou o pronome, investigar a vida passada da outra para desrespeitar”, relata. Segundo ele, o cenário político de fato contribuiu para agravar a situação. “Piorou, porque agora as pessoas são encorajadas a serem preconceituosas. Às vezes ela mantinha essas opiniões na cabeça dela, mas agora se sente no direito de manifestá-las. Quando a gente era menos exposto, os ataques eram menores, mas não tem como conquistar tudo o que a gente conquistou sem se expor”, avalia.
Segundo levantamento da Rede Trans, o Brasil também continua sendo o país que mais mata pessoas trans do mundo: 111 assassinatos em 2021, atrás apenas do ano anterior, 2020, quando foram registradas 162 mortes. O ano passado, porém, foi o mais violento para pessoas trans no mundo: 375 assassinatos.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 aponta que Goiás registrou 70 casos de lesão corporal contra pessoas LGBTQIA+ em 2020, um crescimento de quase 50% em relação a 2019. Em 2020, o Estado também registrou quatro homicídios e nove estupros contra a comunidade.
Desta forma, o caminho ainda é longo. “Ainda precisamos falar e reivindicar o respeito por parte da sociedade que ainda marginaliza e estigmatiza toda uma parcela da população com base na sua identidade sexual e de gênero. É uma exclusão pelo simples fato de você ser quem você é. Então ainda precisamos abordar o respeito enquanto pessoa e enquanto ser humano”, resume Cristiany.
“A população LGBTQIA+ é muito maior do que a gente imagina, porque ainda tem muita gente vivendo escondida, que não são elas mesmas. Sei disso porque eu vivi escondido por 30 anos sem ser quem eu realmente era. Hoje, o que posso dizer a todos é: seja você mesmo, não deixe outra pessoa ditar quem você deve ser”, aconselha Caleb.