Culpa e vergonha: violência infantil deixa marcas irreparáveis
A violência sexual e todas as violações infantojuvenis deixam marcas irreparáveis na vida de crianças e adolescentes. O trauma se entrelaça aos sentimentos de culpa e vergonha, que podem acompanhar as vítimas ao longo de toda a sua trajetória. Muitas vezes, elas só se tornam conscientes de que foram abusadas e violentadas anos depois do ocorrido. "Mais do que um vazio, as lembranças permanecem vivas na memória, causando uma dor ainda mais profunda pela sensação de impotência que se instala. O abuso sexual não afeta apenas o corpo. Suas consequências psicológicas e emocionais também são devastadoras". Esse relato é de S.S., 30 anos, que optou por manter sua identidade em sigilo.
"Eu tinha apenas 7 anos e não sabia o que estava acontecendo. Entendia que não estava certo, mas ao mesmo tempo não entendia nada. Fui abusada por um primo próximo, uma pessoa que eu via como um amigo. Ficava na casa da minha tia após a escola, enquanto minha mãe estava no trabalho, e era aí que tudo acontecia. Me sentia coagida, envergonhada, com medo de revelar o que acontecia e minha família não acreditar em mim. Guardei isso e sigo guardando pra mim. Ainda lembro como se fosse hoje, uma marca sem fim", relata S.S., com lágrimas nos olhos, em entrevista à reportagem do jornal
A Redação.
Para a entrevistada, a educação em direitos, promovida por meio de ações preventivas como as cartilhas elaboradas pelo MPGO, é essencial para encorajar as vítimas a relatar violações aos servidores da educação.
"Assim como aconteceu comigo, muitas meninas e meninos que sofrem algum tipo de violência, não compreendem ao certo se o que está acontecendo é errado ou não. Uma criança de 7 anos não sabe, muitas vezes, o que é parte íntima, nem o que é relação sexual. Se ela é abusada por pessoas próximas, nas quais ela confia, dificilmente terá coragem de contar o caso para alguém do ciclo familiar. Neste sentido, a escola se torna um ambiente fundamental, e é com cartilhas como essas que elas associam e se sentem confortáveis em contar e, assim, sair do cenário de abuso".
(S.S, vítima de abuso sexual aos 7 anos)
A coordenadora da Unidade Técnico-Pericial do Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO), a psicóloga Sílvia Guimarães, destaca os inúmeros impactos da violência na infância, independentemente do tipo de violação, seja física, sexual, verbal ou abandono, que, de maneira geral, deixam marcas psicológicas profundas.
"Uma criança que sofre violência pode enfrentar consequências a curto, médio e longo prazo, que podem se manifestar na vida adulta. Entre as consequências mais comuns, encontramos desde sintomas físicos e marcas visíveis até manifestações cognitivas, comportamentais, psíquicas e emocionais. Por exemplo, essas crianças podem ter dificuldades de relacionamento, problemas de autoestima, além de apresentar comportamentos agressivos ou episódios de choro inexplicáveis, entre outros", explica.
A psicóloga ressalta ainda que diversos fatores dificultam a redução dos casos de violência infantojuvenil. Segundo ela, existe uma concepção social que naturaliza e banaliza a violência sexual, especialmente contra adolescentes, tratando-os como se já fossem adultos e muitas vezes responsabilizando as vítimas. "Esse é um tema frequentemente abordado como tabu, com pessoas relutando em discutir. Entretanto, informação é uma forma de proteção. Crianças, adolescentes e adultos bem informados são mais alertas em relação à violência sexual. Na maioria das vezes, as vítimas começam a sofrer abusos quando ainda são muito pequenas, não compreendendo o que está acontecendo. Elas apenas percebem que um tio, por exemplo, tem um tipo de brincadeira que não entendem como um abuso sexual, não sabendo que essa pessoa não pode tocar suas partes íntimas", pontua.
"Discutir o tema por meio da educação é fundamental para enfrentar a violência infantil. É extremamente desafiador viver em uma sociedade onde muitos se opõem à educação sexual, enxergando-a como uma forma de sexualização da criança, quando, na verdade, representa o oposto. Ao abordarmos a educação sexual nas escolas, estamos disponibilizando uma ferramenta crucial para a conscientização e a prevenção de abusos e exploração sexual contra meninos e meninas. Vale ressaltar que essas violações frequentemente ocorrem no ambiente familiar. Portanto, é na escola, em um espaço seguro, que a criança deve aprender maneiras de se proteger"
(Sílvia Guimarães, Pscicóloga do MPGO)
A coordenadora da Unidade Técnico-Pericial do MPGO destaca que algumas características podem indicar que uma criança ou adolescente não está bem:
Mudanças bruscas de comportamento: a criança pode deixar de demonstrar carinho, tornando-se mais distante; pode se tornar agitada em vez de calma, ou apresentar agressividade constante quando antes era afável e meigo(a).
Irritabilidade ou agressividade excessiva: essas atitudes podem sinalizar que algo está errado.
Comportamento arredio: a criança pode desejar ficar sempre sozinha, evitando a interação, ou, em contrapartida, pode ficar ansiosa ao se ver sozinha, quando antes reagia bem a essa situação. A inversão do hábito de dormir sozinha ou acompanhada é outro exemplo dessa mudança.
Tensão e ansiedade: a criança pode permanecer tensa, ansiosa e assustada, como se estivesse sempre em "estado de alerta". Também pode chorar com frequência maior do que o habitual, muitas vezes por motivos aparentemente pequenos.
Regressão no desenvolvimento: pode apresentar comportamentos mais infantis do que sua idade, como involução no vocabulário, retorno a brincadeiras e jogos de interesse mais infantis, ou dependência dos responsáveis para se locomover. É comum que volte a chupar o dedo.
Silêncio e inexpressividade: pode permanecer calada e inexpressiva, com pensamentos distantes, tentando passar despercebida.
Dificuldades de aprendizagem: o rendimento escolar pode cair, acompanhando um estado constante de tristeza, melancolia, e aversão ao contato físico.
Problemas de saúde sem causa aparente: sintomas como alergias, doenças de pele, dores de cabeça, vômitos ou dificuldades digestivas podem, na verdade, ter origem emocional, caracterizando doenças psicossomáticas.