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Reportagem especial - 12 de outubro

Eles matam crianças: o grito silencioso da violência infantil

MPGO reforça educação em direitos | 12.10.24 - 08:00 Eles matam crianças: o grito silencioso da violência infantil A violência infantil, sobretudo a sexual, desafia o sistema de segurança pública no Brasil (Foto: Ludymila Siqueira)
Adriana Marinelli e Ludymila Siqueira

Goiânia - 
Cabeça baixa, mãos trêmulas e suadas, olhar distante. Seu comportamento mudou. As roupas estão sujas, nos pés, apenas um chinelo gasto. O semblante, embora inofensivo, carrega a tristeza de quem já perdeu o brilho no olhar. Um sorriso forçado tenta disfarçar a carência de cuidado e afeto. Ela parece envergonhada, com medo. No silêncio angustiante, os olhos inocentes “gritam” por ajuda. Não compreende o que está acontecendo, apenas chora a dor irreparável do abandono dentro do próprio lar. A cena é de uma menina de apenas três anos, que, apesar da pouca idade, já carrega as marcas visíveis da tristeza, algumas impressas em sua própria pele. Este é o triste retrato de uma vítima de violência infantil. 
 
Ana Clara (nome fictício)* passou a morar somente com o pai e os avós paternos após a morte da mãe, em decorrência de um câncer. Em uma casa simples no município de Pontalina, no Sul do Estado de Goiás, a garota presenciava garrafas de bebidas alcoólicas pelos cômodos. Isso era frequente por lá. Já não ia para a escola com a devida higiene, evidenciando os maus-tratos. Ainda passou a guardar consigo as tristes marcas resultantes da exploração sexual, já que foi vítima de estupro dentro da própria casa. O crime foi praticado pelo próprio pai e avô. O caso foi descoberto em julho deste ano, quando Ana Clara revelou os abusos sofridos a uma professora, após aprender sobre partes do corpo que não podem ser tocadas por terceiros. Os suspeitos estão presos. 
 

Menina de três anos foi abusada pelo pai e também pelo avô, além de ser vítima de maus-tratos (Foto: Polícia Civil)
 

O caso de Ana Clara expõe uma realidade vivida por milhares de crianças e adolescentes em Goiás e no Brasil. A violência infantil, infelizmente, é uma triste constante em muitos lares brasileiros, assim como a violência doméstica contra mulheres, configurando-se como um dos maiores desafios para a segurança pública no país. Para ilustrar a gravidade dessa situação, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que, em 2023, houve um aumento significativo no número de agressões físicas contra crianças e adolescentes no ambiente doméstico.
 
Segundo o levantamento, 11,4% das vítimas têm entre 5 e 9 anos, 9,4% estão na faixa de 0 a 4 anos, e 2,3% têm de 11 a 13 anos. Os casos de maus-tratos cresceram 30,3%, com quase 30 mil crianças sofrendo abusos físicos. Dentre essas vítimas, 60,9% tinham no máximo 9 anos de idade.
 
O Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos revela que, entre janeiro e setembro de 2024, foram registradas 197.131 denúncias de violência infantil. Além disso, quase 1,5 milhão de violações contra a população infantojuvenil foram notificadas no mesmo período. A imagem abaixo ilustra que, entre os grupos vulneráveis, as violências envolvendo crianças e adolescentes representam o maior número de casos. A maioria das ocorrências acontece em ambientes de convivência das vítimas, principalmente em suas próprias casas ou na residência de familiares próximos.
 

Fonte: Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, cenário nacional

 
Em Goiás, os dados sobre violência infantil são alarmantes. Foram registradas 5.323 denúncias em todo o estado, com 30.710 violações notificadas apenas entre janeiro e setembro deste ano. O Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos revela que, entre os grupos vulneráveis, a faixa etária de 0 a 18 anos incompletos é a que mais apresenta direitos violados. A análise dos números, juntamente com a identificação dos locais onde essas violações ocorrem, evidencia a complexidade do enfrentamento dessa problemática.
 
Diante desse cenário preocupante, o Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO) desempenha um papel crucial na proteção de crianças e adolescentes que sofrem ou estão expostos a situações de violência. A instituição atua em diversas frentes para garantir os direitos fundamentais da infância e da juventude, priorizando a vida, a dignidade, a saúde, a educação e a convivência familiar, além do respeito aos direitos humanos. O promotor de Justiça Pedro Florentino detalha essas ações na entrevista a seguir:


 
Em entrevista ao jornal A Redação, o promotor de Justiça Pedro Florentino, coordenador da área de Infância e Juventude do Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO), destacou a violência sexual como o principal desafio no combate às violações contra crianças e adolescentes. Ele observa que, apesar do aumento da conscientização da população, o número de denúncias ainda é considerado baixo em relação à realidade, uma vez que a maioria das agressões ocorre no ambiente familiar. Florentino enfatiza a relevância da rede de proteção.
 
"Os principais caminhos para o enfrentamento eficaz da violência infantil são a educação e a conscientização. É imprescindível implementar a educação sobre violência sexual nas escolas, pois a maioria desses casos acontece no lar. Muitas vezes, as situações de abuso são reveladas no ambiente escolar, onde, por meio de ensinamentos sobre autoproteção, as crianças podem perceber que algo está errado. Esse tipo de educação é fundamental para que elas consigam reconhecer e denunciar situações abusivas".
(Promotor de Justiça Pedro Florentino)

Crianças e adolescentes na mira da exploração sexual infantil
O cenário de violência que atinge crianças e adolescentes em todo o Brasil é alarmante, com os crimes sexuais se destacando como os mais recorrentes e desafiadores para o sistema de segurança pública. Isso porque esses crimes, muitas vezes, envolvem pessoas de confiança das vítimas, como pais, responsáveis, familiares e outros indivíduos com vínculos próximos.
 
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, uma criança foi vítima de estupro a cada seis minutos no país, representando um aumento de 6,5% em relação a 2022. O levantamento revela que 61,7% dos casos ocorreram dentro das residências das vítimas, sendo que 88,2% delas são meninas e 61,6% têm até 13 anos.
 
Além disso, os abusos e a exploração sexual de crianças e adolescentes têm mostrado um crescimento preocupante, incluindo o armazenamento e compartilhamento de imagens e vídeos com conteúdos de estupros e cenas sexuais envolvendo menores, especialmente meninas. Esse tipo de crime aumentou 42,6%. Contudo, os números podem ser ainda mais alarmantes, uma vez que muitos casos não são denunciados.
 

Os dados podem ser ainda maiores, devido à falta de denúncias (Foto: Adriana Marinelli/A Redação)
 
Em setembro deste ano, a Polícia Federal realizou uma operação em várias partes do País que resultou na prisão de 60 pessoas, a maioria homens entre 19 e 60 anos, envolvidas em esquemas de armazenamento e compartilhamento de material de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Em Santa Catarina, uma vítima foi resgatada durante a ação.
 

Durante operação da Polícia Federal contra exploração
sexual infantil na internet foram cumpridos mais de 140 mandados de busca e apreensão em todo o Brasil (Foto: Polícia Federal)

 
"A violência sexual representa um dos maiores desafios no combate às violações de direitos infantojuvenis. Por ocorrer, em sua maioria, dentro das residências e envolver pessoas próximas à vítima, o número real de casos denunciados é frequentemente subestimado", destaca o promotor de Justiça Pedro Florentino. "No ambiente digital, muitas vezes, as crianças estão mais vulneráveis em casa, diante de um computador, do que ao caminhar na rua. Dados indicam que pedófilos utilizam a internet para aliciar e atrair suas vítimas", completa. 
 
Diante desse cenário alarmante, o Ministério Público de Goiás (MPGO) desenvolveu uma cartilha que alerta sobre os perigos que adolescentes enfrentam ao acessar conteúdos em plataformas digitais. Com uma linguagem simples e dinâmica, a cartilha destaca a importância da vigilância na prevenção de possíveis aliciamentos por meio das redes sociais e outros sites. Voltada para pais e adolescentes, a publicação foi divulgada em maio deste ano, durante a campanha de conscientização contra o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes.
 
Por meio dessa ação preventiva, o MPGO busca se aproximar da sociedade, promovendo conscientização e orientação sobre um tema que muitas vezes passa despercebido no cotidiano. As iniciativas voltadas à educação em direitos podem salvar inúmeras crianças em situações de vulnerabilidade, garantindo-lhes maior dignidade e voz. Assim, estabelece-se uma relação fundamental com a população, construindo uma narrativa significativa a ser compartilhada.
 
A seguir, confira a iniciativa realizada com meninas e meninos quilombolas em Cavalcante:

 
"A conscientização, por meio de iniciativas que dialogam diretamente com crianças, adolescentes e adultos, é fundamental para estimular denúncias de casos de violência sexual. Essa problemática só pode ser enfrentada com o engajamento de todos. Nesse contexto, a educação emerge como o principal caminho, já que muitas vezes a criança não compreende o que está acontecendo. É na escola que ela pode entender que não é aceitável que um adulto toque suas partes íntimas ou cometa qualquer forma de abuso", explica Florentino em entrevista à reportagem do A Redação. Confira mais detalhes sobre as iniciativas desenvolvidas:
 
 

Leia mais
Além da frente voltada à proteção de crianças e adolescentes de 0 a 18 anos vítimas ou expostas a cenários de violência, o Ministério Público de Goiás (MPGO) exerce sua função essencial de promover, de forma privativa, a ação penal pública contra aqueles que infringirem os direitos desse grupo. Um exemplo recente é o caso de um homem condenado a mais de 50 anos de prisão por crimes sexuais cometidos contra três adolescentes, incluindo sua própria filha, em Montes Claros de Goiás. A decisão foi proferida em janeiro deste ano, após denúncia feita pelo Ministério Público. Clique aqui e veja sobre o caso citado
 
Culpa e vergonha: violência infantil deixa marcas irreparáveis 
A violência sexual e todas as violações infantojuvenis deixam marcas irreparáveis na vida de crianças e adolescentes. O trauma se entrelaça aos sentimentos de culpa e vergonha, que podem acompanhar as vítimas ao longo de toda a sua trajetória. Muitas vezes, elas só se tornam conscientes de que foram abusadas e violentadas anos depois do ocorrido. "Mais do que um vazio, as lembranças permanecem vivas na memória, causando uma dor ainda mais profunda pela sensação de impotência que se instala. O abuso sexual não afeta apenas o corpo. Suas consequências psicológicas e emocionais também são devastadoras". Esse relato é de S.S., 30 anos, que optou por manter sua identidade em sigilo.

"Eu tinha apenas 7 anos e não sabia o que estava acontecendo. Entendia que não estava certo, mas ao mesmo tempo não entendia nada. Fui abusada por um primo próximo, uma pessoa que eu via como um amigo. Ficava na casa da minha tia após a escola, enquanto minha mãe estava no trabalho, e era aí que tudo acontecia. Me sentia coagida, envergonhada, com medo de revelar o que acontecia e minha família não acreditar em mim. Guardei isso e sigo guardando pra mim. Ainda lembro como se fosse hoje, uma marca sem fim", relata S.S., com lágrimas nos olhos, em entrevista à reportagem do jornal A Redação. 

Para a entrevistada, a educação em direitos, promovida por meio de ações preventivas como as cartilhas elaboradas pelo MPGO, é essencial para encorajar as vítimas a relatar violações aos servidores da educação.

"Assim como aconteceu comigo, muitas meninas e meninos que sofrem algum tipo de violência, não compreendem ao certo se o que está acontecendo é errado ou não. Uma criança de 7 anos não sabe, muitas vezes, o que é parte íntima, nem o que é relação sexual. Se ela é abusada por pessoas próximas, nas quais ela confia, dificilmente terá coragem de contar o caso para alguém do ciclo familiar. Neste sentido, a escola se torna um ambiente fundamental, e é com cartilhas como essas que elas associam e se sentem confortáveis em contar e, assim, sair do cenário de abuso". 
(S.S, vítima de abuso sexual aos 7 anos)
 
A coordenadora da Unidade Técnico-Pericial do Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO), a psicóloga Sílvia Guimarães, destaca os inúmeros impactos da violência na infância, independentemente do tipo de violação, seja física, sexual, verbal ou abandono, que, de maneira geral, deixam marcas psicológicas profundas.
 


"Uma criança que sofre violência pode enfrentar consequências a curto, médio e longo prazo, que podem se manifestar na vida adulta. Entre as consequências mais comuns, encontramos desde sintomas físicos e marcas visíveis até manifestações cognitivas, comportamentais, psíquicas e emocionais. Por exemplo, essas crianças podem ter dificuldades de relacionamento, problemas de autoestima, além de apresentar comportamentos agressivos ou episódios de choro inexplicáveis, entre outros", explica.
 


A psicóloga ressalta ainda que diversos fatores dificultam a redução dos casos de violência infantojuvenil. Segundo ela, existe uma concepção social que naturaliza e banaliza a violência sexual, especialmente contra adolescentes, tratando-os como se já fossem adultos e muitas vezes responsabilizando as vítimas. "Esse é um tema frequentemente abordado como tabu, com pessoas relutando em discutir. Entretanto, informação é uma forma de proteção. Crianças, adolescentes e adultos bem informados são mais alertas em relação à violência sexual. Na maioria das vezes, as vítimas começam a sofrer abusos quando ainda são muito pequenas, não compreendendo o que está acontecendo. Elas apenas percebem que um tio, por exemplo, tem um tipo de brincadeira que não entendem como um abuso sexual, não sabendo que essa pessoa não pode tocar suas partes íntimas", pontua.
 
"Discutir o tema por meio da educação é fundamental para enfrentar a violência infantil. É extremamente desafiador viver em uma sociedade onde muitos se opõem à educação sexual, enxergando-a como uma forma de sexualização da criança, quando, na verdade, representa o oposto. Ao abordarmos a educação sexual nas escolas, estamos disponibilizando uma ferramenta crucial para a conscientização e a prevenção de abusos e exploração sexual contra meninos e meninas. Vale ressaltar que essas violações frequentemente ocorrem no ambiente familiar. Portanto, é na escola, em um espaço seguro, que a criança deve aprender maneiras de se proteger"
(Sílvia Guimarães, Pscicóloga do MPGO)
 
A coordenadora da Unidade Técnico-Pericial do MPGO destaca que algumas características podem indicar que uma criança ou adolescente não está bem:
 
Mudanças bruscas de comportamento: a criança pode deixar de demonstrar carinho, tornando-se mais distante; pode se tornar agitada em vez de calma, ou apresentar agressividade constante quando antes era afável e meigo(a).
 
Irritabilidade ou agressividade excessiva: essas atitudes podem sinalizar que algo está errado.
 
Comportamento arredio: a criança pode desejar ficar sempre sozinha, evitando a interação, ou, em contrapartida, pode ficar ansiosa ao se ver sozinha, quando antes reagia bem a essa situação. A inversão do hábito de dormir sozinha ou acompanhada é outro exemplo dessa mudança.
 
Tensão e ansiedade: a criança pode permanecer tensa, ansiosa e assustada, como se estivesse sempre em "estado de alerta". Também pode chorar com frequência maior do que o habitual, muitas vezes por motivos aparentemente pequenos.
 
Regressão no desenvolvimento: pode apresentar comportamentos mais infantis do que sua idade, como involução no vocabulário, retorno a brincadeiras e jogos de interesse mais infantis, ou dependência dos responsáveis para se locomover. É comum que volte a chupar o dedo.
 
Silêncio e inexpressividade: pode permanecer calada e inexpressiva, com pensamentos distantes, tentando passar despercebida.
 
Dificuldades de aprendizagem: o rendimento escolar pode cair, acompanhando um estado constante de tristeza, melancolia, e aversão ao contato físico.
 
Problemas de saúde sem causa aparente: sintomas como alergias, doenças de pele, dores de cabeça, vômitos ou dificuldades digestivas podem, na verdade, ter origem emocional, caracterizando doenças psicossomáticas.
 
Violência doméstica contra a mulher também atinge crianças e adolescentes 
O enfrentamento da violência doméstica contra a mulher representa um desafio significativo para a segurança pública em geral. Em Goiás, os casos de feminicídio permaneceram estáveis entre 2022 e 2023, com 56 ocorrências registradas em cada ano, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-GO). Os números de 2024 seguem alarmantes, com 20 mulheres assassinadas apenas entre janeiro e junho.
 

Altos índices de violência doméstica contra a mulher desafiam o
sistema de segurança pública (Foto: Agência Brasil)
 
 
 
 


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