Samuel Straioto
Goiânia - Goiás ainda está longe de cumprir a Meta 1 do Plano Nacional de Educação (PNE) para a educação infantil. Dados do IBGE, divulgados na última sexta-feira (13), mostram que apenas 28,7% das crianças de 0 a 3 anos estão matriculadas em creches no estado. O percentual representa cerca de 117 mil alunos, bem abaixo da meta, que previa atender ao menos 50% dessa faixa etária até o fim de 2024.
O problema se agrava diante de um déficit de 38 mil vagas na educação infantil, conforme levantamento do Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás (TCM-GO). O número reflete uma série de entraves, que vão desde a escassez de recursos até obras de creches paralisadas há mais de uma década. A situação de Goiás reflete a realidade de outros estados brasileiros que também enfrentam dificuldades para garantir o acesso universal à primeira etapa da educação básica.
Cenário preocupante
Para monitorar o acesso no sistema de ensino brasileiro, são utilizados dois indicadores principais: a taxa de escolarização e a taxa ajustada de frequência escolar líquida. O primeiro reflete a proporção de estudantes em uma faixa etária específica em relação ao total da população nessa mesma faixa etária.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítica (IBGE), em Goiás, 2,0 milhões de pessoas frequentavam escola ou creche em 2024. Entre as crianças de 0 a 3 anos, a taxa de escolarização foi de 28,7%, ou seja, Goiás alcançou pouco mais da metade da meta estabelecida pelo PNE. Na pré-escola (4 e 5 anos), que tem matrícula obrigatória, a situação também preocupa: a taxa de escolarização foi de 89,9%, abrangendo aproximadamente 208 mil crianças, ainda distante da universalização estipulada pelo PNE.
Em contraste, a universalização para a faixa etária de 6 a 14 anos já estava praticamente alcançada desde 2016 (99,3%), mantendo-se em 99,2% em 2024. Para jovens de 15 a 17 anos, a taxa foi de 92,0% em 2024, representando aumento de 0,4 ponto percentual em relação a 2023.
Metodologias diferentes expõem mesmo problema
O conselheiro Fabrício Motta, supervisor da Comissão Multidisciplinar Específica de Educação (COEDUC) e coordenador do Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação (Gaepe-GO), explica que há diferenças metodológicas entre os levantamentos, mas ambos confirmam o déficit. Os dados do IBGE utilizam a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) contínua, uma amostra residencial, enquanto o TCM-GO desenvolveu um painel de monitoramento baseado nos dados do censo escolar e no número de matrículas informadas pelos próprios municípios.
"Nós temos diferentes retratos, diferentes diagnósticos, a partir desses parâmetros que são utilizados. Então, às vezes, nós temos mesmo dados que são diferentes em razão dessas diferentes perspectivas que existem em cada um", afirma Motta. "De toda forma, realmente há um campo muito grande para se trabalhar, porque independente do número específico de vagas faltando, de escolaridade, de crianças que deveriam estar na escola e não estão, há um déficit que deve ser sanado."
O painel do TCM-GO, disponível para consulta pública, identificou o déficit de 38 mil vagas através de levantamento realizado no final de 2024 com base em informações dos próprios municípios, juntando creches e pré-escolas. "Esse número foi de um levantamento feito em todos os 246 municípios, foi entregue ao governador, foi entregue à presidente da Comissão de Educação da Assembleia, divulgado à sociedade", destaca o conselheiro.
Obrigatoriedade gera complexidade na interpretação
Um dos pontos centrais do debate é a diferença entre a obrigatoriedade do ensino para crianças de 4 e 5 anos e a não obrigatoriedade para a faixa de 0 a 3 anos. Conforme explica Anderlúcia Castro, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) de Goiás e secretária municipal de Educação de Anicuns, "o pai não é obrigado a colocar essa criança na unidade escolar. Mas, se o pai quiser colocar essa criança na unidade escolar, eu sou obrigado a atendê-la".
Esta particularidade gera complexidades na interpretação dos dados oficiais. "Às vezes, o município tem 100 crianças de 0 a 3 anos. Eu tenho 100 crianças. Porém, dessas crianças de 0 a 3 anos, dentre essas 100, às vezes, eu tenho só 30 crianças matriculadas nessa faixa etária. Isso não significa que, às vezes, aquele município, ele não tem a oferta dessas outras vagas. Isso significa que esses outros 70 pais não quiseram colocar essa criança na escola, na creche", exemplifica Castro.
A dirigente da Undime destaca a preocupação com a forma como os dados são contabilizados: "A gente tem conversado muito sobre os dados mesmo do IBGE, não que a gente esteja questionando todos, mas às vezes a forma com que ele está colocando a situação. Tem municípios que constam que tem um número X de crianças nascidas naquele período, crianças de 0 a 3. Só que quando a gente vai ver, não tem cadastro de reserva nas creches e nos CMEs. Por quê? Porque eu tenho, sim, um número grande de crianças, mas são crianças que a família não quis matriculá-la."
Para Fabrício Motta, essa questão torna o cenário ainda mais complexo: "Há uma demanda que é estimada, as pessoas procuram a creche, geralmente, mais perto da sua casa, para colocar a criança. Algumas não sabem que há um direito, se os pais quiserem, a criança tem direito, a creche não procuram. Então, é uma demanda que, muitas vezes, é estimulada. Só quando se procura que se tem essa ideia da demanda."
Cidades maiores enfrentam desafios específicos
A situação se agrava nas cidades de maior porte, como Goiânia e região metropolitana. Castro destaca que "a gente tem muito um público flutuante ali. Nós temos uma população que ela chega, que ela aumenta todos os dias. Isso acontece nas maiores cidades, cidades também que têm, às vezes, algum tipo de indústria, alguma coisa nesse sentido. A gente tem muito essa população que vem, passa um período e logo elas vão embora".
O fenômeno da conurbação também dificulta o planejamento municipal. "Eu tenho pessoas que moram numa cidade, mas elas acabam procurando em outra, por exemplo, moro em Aparecida, mas eu acabo procurando a creche de Goiânia. Por quê? Porque eu trabalho em Goiânia, então eu prefiro que minha criança fique ali em Goiânia, que fica mais próximo, mais fácil para mim", explica a secretária.
Segundo Castro, esse fluxo populacional "acaba fugindo um pouquinho do controle" e dificulta o planejamento: "Às vezes, você faz, o secretário, juntamente com o prefeito, eles fazem um planejamento. Nós temos um planejamento aqui de atender tantas crianças para 2026. E, às vezes, acontece algo e o número da população naquele período, ele acaba aumentando dessa população flutuante".
Em contraste, as cidades menores têm conseguido atender melhor a demanda: "Conversando com os secretários, as cidades menores, a maioria já conseguiu a procura, a demanda está sendo atendida. E aí, a gente vai para essas cidades maiores que têm um pouco mais de dificuldade."
Obras paralisadas há mais de uma década
Um dos principais obstáculos para ampliar a oferta de vagas são as obras paralisadas de creches espalhadas pelo estado e pelo país. Castro cita o exemplo dramático de Anicuns: "A gente tinha uma obra que começou em 2013. A gente está conseguindo concluí-la agora. Então, quando assumimos a gestão, essa obra estava paralisada."
O problema se agrava quando se considera a defasagem de valores. "Quando você pega uma obra dessa paralisada, quais são os problemas? Junto ao FNDE, ela foi orçada num valor X. Hoje, você não faz mais a obra com o valor que foi orçado lá atrás. E o governo federal, ele não vai disponibilizar mais recursos", explica a secretária.
A situação deixa muitos municípios em situação desesperadora: "Então, o que o município faz? Muitas vezes, ele não tem esse dinheiro para poder concluir. E aí, agora estão abrindo algumas situações para que os municípios retomem essas obras paralisadas, que automaticamente vai contribuir também para essa redução desse número de crianças que estão na fila de espera."
Castro revela que "aqui em Goiás, não só Goiás, em o Brasil todo, fez-se o levantamento da quantidade gigantesca de obras que a gente tinha paralisadas. E essas obras, a maioria são de creches". O governo federal lançou recentemente possibilidades para que municípios com dificuldades possam usar recursos do Fundeb e outras fontes para retomar essas construções.
Impacto financeiro multiplica desafios
O aspecto financeiro é apontado como o principal gargalo pelos gestores municipais. "Eu penso que a maioria é a questão dos recursos financeiros mesmo", destaca Castro. "Eu vejo que o maior problema assim, porque não conseguiram fazer ainda, é a questão financeira."
A secretária explica que a construção de creches envolve custos elevados que vão muito além da edificação: "Porque você construir hoje uma creche, não é barato. E tudo isso implica também, eu construí, eu tenho que mobiliar, eu tenho que organizar e eu preciso de quê? De mais pessoas ainda."
O diferencial da educação infantil está na necessidade de mais recursos humanos: "A educação infantil é a faixa etária que exige um número ainda maior de funcionários dentro da unidade escolar, de servidores. Tendo em vista que se eu estou falando de criança, de crianças de berçário, eu posso ter dez crianças apenas num berçário. E para isso, eu preciso de no mínimo três pessoas ali naquela sala."
Os reajustes salariais dos professores também impactaram significativamente o orçamento municipal: "Tem muitos municípios que estão tentando organizar a questão dos planos de carreira de professores, dos servidores, e tudo isso impacta financeiramente também. A gente vê de um reajuste muito alto para os professores. Não que eles não mereçam, eu sou professora e a gente merece muito, mas quando a gente fala do percentual que foi dado agora em 2022, foi um percentual muito alto para você colocar de uma vez."
Ferramentas de monitoramento orientam políticas públicas
O painel de monitoramento do TCM-GO surge como instrumento fundamental para auxiliar na construção de políticas públicas efetivas. A ferramenta, que pode ser acessada gratuitamente por qualquer cidadão através do site do TCM-GO (disponível
no site), permite acompanhar em tempo real a situação de cada município goiano.
"Essas ferramentas são importantes, primeiro, para ajudar nesse diagnóstico. Porque para ter um plano, é preciso ter objetivo, é preciso ter metas", destaca Motta. O conselheiro explica que a ferramenta é especialmente relevante no momento atual, com o encerramento do atual Plano Nacional de Educação e a construção do novo: "É o momento de fechar esse primeiro ciclo, porque geralmente, sobretudo os municípios de pequeno porte, não costumam ter muito presentes essas atividades de monitoramento e de avaliação, de acompanhamento do plano."
Para Castro, os dados são fundamentais para o planejamento estratégico municipal: "Quando eu sei o número de crianças que tem essa faixa etária dentro do meu município, o número de nascidos no meu município, eu já começo a pensar as minhas estratégias para eu poder organizar, para atender essas crianças ao longo dos anos."
A secretária exemplifica com a realidade de Anicuns: "Em 10 anos, lá atrás, a gente fala de 2010, de 2011 a 2021, 2010 a 2020, mais ou menos, o município perdeu mil alunos. Então, quando eu tenho esses dados que o município perdeu essa quantidade de alunos, isso eu já começo o quê? As minhas estratégias. Eu preciso realmente construir mais escolas nesse município? Não, mas aí, há quatro anos, o município aumentou o número de alunos e aumentou o número de pessoas também, dentro do município."
Com esses dados, os gestores conseguem direcionar melhor os investimentos: "Aí a gente já começa a imaginar, não, espera aí, agora então, com esses dados, eu preciso o quê? Aumentar o número de vagas. Onde que eu vou aumentar esse número de vagas? É na creche? É na escola? É na primeira fase? É na segunda fase? É no ensino médio? Onde que está concentrando? Então, esses dados, sim, eles são de extrema importância para nós."
Controle social e indução de políticas
O trabalho conjunto entre órgãos de controle visa estimular ações concretas dos gestores municipais. "O controle atua muito nesse intuito de indutor, que a gente chama, que é de você oferecer essas ferramentas para o município ter um diagnóstico", explica Motta.
O conselheiro ressalta que o desafio é "respeitar o espaço de decisão do gestor" sobre as estratégias a serem adotadas - seja construir novas vagas ou fazer convênios - mas exigindo "esse diagnóstico, exigir planejamento, exigir metas e o acompanhamento dos resultados. Então, de certa forma, é aquele instar a agir, estimular a agir. A partir do momento que a gente divulga um painel dizendo que metas não estão sendo cumpridas, algo tem que ser feito."
O TCM-GO trabalha em rede através do Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação (Gaepe), "uma governança que une todas as entidades ligadas à educação", incluindo Tribunal de Contas, Ministério Público e outras instituições de controle.
Caminhos para universalização
Para enfrentar o déficit, Motta sugere que os municípios, especialmente os de pequeno porte que representam cerca de 80% dos municípios goianos, façam diagnósticos mais precisos da real demanda: "Nós estamos falando aqui de cerca de 80% dos municípios de Goiás, que são de pequeno porte. Então, que eles mesmo podem fazer mini censo, micro censo, podem pegar os dados da saúde, dos agentes comunitários de saúde, e verificar se esse número corresponde mesmo à realidade."
O conselheiro destaca que municípios menores têm vantagens para esse diagnóstico: "Nesses pequenos municípios, sobretudo, eles têm mais condições, ali, locais mesmo, no município que todo mundo conhece, que a diretora, os professores sabem, os alunos da escola, que são poucas crianças na faixa etária, eles têm condição de saber a real demanda e se há realmente um problema."
O TCM-GO está desenvolvendo metodologia para calcular o custo por vaga e estimar quantas unidades seriam necessárias construir em cada município. "Nós estamos nos dedicando, agora, a construir uma metodologia para verificar uma espécie de custo por vaga, na verdade, por unidade. Quantos centros municipais de educação infantil seriam necessários de construir ou quantas creches e quantos municípios teriam que investir."
A intenção, segundo Motta, "não é criar exatamente esse número de vagas, mas é estimular o diagnóstico o mais preciso possível" para que cada município possa conhecer sua real demanda e desenvolver estratégias adequadas para garantir que todas as crianças tenham acesso a essa etapa fundamental da educação básica.
O cumprimento da Meta 1 do PNE representa um desafio que vai além dos números estatísticos, envolvendo questões de financiamento, planejamento urbano, recursos humanos e políticas públicas integradas que exigem articulação entre diferentes esferas de governo e a participação efetiva da sociedade civil no monitoramento e cobrança de resultados.