Samuel Straioto
Goiânia - Com 32 anos de operação, o Aterro Sanitário de Goiânia tornou-se um dos pontos mais elevados da capital e tem vida útil estimada em cerca de 15 anos. Enquanto estudos técnicos apontam para o esgotamento progressivo da capacidade, prefeitura e governo do Estado protagonizam uma disputa que adiciona incertezas ao futuro da destinação dos resíduos da cidade.
O impasse ganhou contornos mais tensos nas últimas semanas. A secretária estadual de Meio Ambiente, Andréa Vulcanis, foi categórica ao afirmar que "não há possibilidade de regularização do lixão de Goiânia". Do outro lado, o prefeito Sandro Mabel defende que o aterro pode ser regularizado com investimentos e acusa a existência de uma "máfia do lixo" interessada em sua desativação.
Montanha de problemas acumulados
A transformação do aterro numa verdadeira montanha de resíduos revela décadas de problemas estruturais. Atualmente, Goiânia gera aproximadamente 1,5 mil toneladas de resíduos sólidos por dia. Deste total, 60% são resíduos orgânicos, enquanto a taxa de reciclagem mal atinge 3%.
Para o professor José Roberto dos Santos Beraldo, especialista em gestão de resíduos sólidos, a situação é preocupante. "O aterro já ultrapassou sua vida útil original e agora opera em condições limítrofes. O acúmulo de resíduos por décadas criou um maciço instável, com riscos geotécnicos significativos. Quando você observa a altura que o aterro atingiu, percebe que estamos lidando com um passivo ambiental imenso, que exige monitoramento constante mesmo após o encerramento das atividades", explica o professor.
Cronologia de uma degradação
Recuperando a história, o ponto próximo à GO-060, na saída para Trindade, desde 1979 havia se tornado o grande lixão da cidade. Depois, passou ao que se chama de aterro de trincheira – onde os resíduos são jogados em uma vala – para então começar a ser erguido em camadas, formando um maciço, na forma com que é trabalhado atualmente.
Mas o que era um aterro sanitário bem-conceituado no País até os primeiros anos do século perdeu esse status por um processo de sucateamento que ocorreu, na visão dos especialistas, por falta de investimento público.
1979 - Local torna-se lixão da cidade, próximo à GO-060
1992 - Aterro sanitário é inaugurado com vida útil prevista para 20 anos
Anos 2000 - Aterro perde status de bem-conceituado devido ao sucateamento
2008 - Primeira iniciativa oficial de coleta seletiva, experimental no Jardim América
2011 - Início da operação irregular, segundo acusação do Ministério Público
2014 - Problemas com descarte irregular de entulho de construção civil
2020 - Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre prefeitura e MP-GO
2021 - Aterro apresenta chorume em céu aberto, falta de licenciamento e problemas na rede elétrica
2023 - Problemas com caminhões de coleta e unidades de transbordo expuseram as dificuldades enfrentadas pela Comurg na gestão operacional
2024 - TAC aditivado; MP-GO cobra R$ 45 milhões por danos ambientais
2025 - Aterro opera com estrutura deteriorada e disputas jurídicas e políticas
Paradoxo da "capital verde"
Goiânia, conhecida como "capital do meio ambiente" pelos seus parques e áreas verdes, vive um paradoxo quando se trata da gestão de resíduos. A cidade que se orgulha de ter o maior número de metros quadrados de área verde por habitante no país apresenta uma das piores taxas de reciclagem entre as capitais brasileiras.
"É uma contradição gritante. Temos uma cidade planejada, com consciência ambiental em muitos aspectos, mas que ainda trata seus resíduos como se estivéssemos na década de 1980. Enquanto outras capitais avançaram na coleta seletiva e na compostagem, Goiânia permaneceu estagnada", analisa Marina Oliveira Silva, engenheira ambiental e consultora em resíduos sólidos.
A taxa de reciclagem de apenas 3% contrasta com cidades como Curitiba, que alcança 20%, ou mesmo Belo Horizonte, que supera os 10%. "Não é falta de conhecimento técnico ou recursos. É falta de vontade política e continuidade nos programas. Goiânia tem potencial para ser referência nacional em gestão de resíduos, mas desperdiça essa oportunidade ano após ano", complementa Silva.
Riscos ambientais crescentes
Estudos alertam que aterros saturados geram riscos de contaminação do solo e das águas subterrâneas, emissão de gases poluentes e custos elevados para transporte e disposição em outros aterros.
"Se o aterro chegar ao colapso, o custo de construção de um novo espaço pode superar R$ 50 milhões, sem contar as despesas operacionais e o impacto ambiental de uma solução emergencial. Mas o pior não é nem o custo financeiro, é o ambiental. Um aterro que fecha de forma inadequada pode contaminar o solo e os lençóis freáticos por décadas", alerta Beraldo.
Equipamentos essenciais para o funcionamento do aterro, como as bombas de chorume, frequentemente apresentam falhas devido à falta de manutenção preventiva. "O problema é que estamos sempre no modo emergencial, apagando incêndios. Nunca houve um planejamento estratégico de longo prazo para a gestão de resíduos em Goiânia", observa o professor.
Disputa política em meio à crise
Enquanto o aterro enfrenta problemas técnicos crescentes, prefeitura e estado divergem sobre as soluções. A secretária estadual de Meio Ambiente considera que não há mais possibilidade de regularização, enquanto o prefeito Sandro Mabel defende que investimentos podem viabilizar a continuidade da operação.
O Termo de Ajustamento de Conduta firmado em 2020 e aditivado em 2024 estabelece obrigações para melhorias no aterro, mas a implementação das medidas tem gerado controvérsias entre os órgãos responsáveis.
Alternativas sustentáveis necessárias
A instalação de uma usina de compostagem, por exemplo, poderia reduzir em até 60% o volume de resíduos destinados ao aterro.
"A compostagem é uma solução prática e eficiente. Além de diminuir a quantidade de resíduos orgânicos no aterro, ela permite a produção de adubo, que pode ser usado na agricultura urbana ou vendido para produtores rurais. Com 60% dos resíduos sendo orgânicos, uma usina de compostagem bem dimensionada poderia transformar Goiânia em referência nacional", destaca Silva.
A especialista enfatiza que as soluções existem e são viáveis: "Não estamos falando de tecnologia espacial. São técnicas conhecidas, testadas e aprovadas. O que falta é decisão política e continuidade administrativa. Cada nova gestão quer inventar a roda, em vez de dar continuidade aos projetos que já estão funcionando".
Cerca de 2 mil grandes geradores de resíduos em Goiânia, como hospitais, supermercados e indústrias, têm responsabilidade direta na sobrecarga do aterro. "Esses grandes geradores poderiam ser parte da solução, não do problema. Com incentivos adequados e fiscalização eficiente, eles podem reduzir drasticamente o volume de resíduos que chegam ao aterro", completa Beraldo.
Futuro incerto
Caso o aterro seja efetivamente fechado, Goiânia precisará encontrar alternativas em um raio de 100 a 200 quilômetros, o que elevaria significativamente os custos operacionais para o município.
A logística de transporte para aterros particulares na região metropolitana poderia dobrar os gastos municipais com resíduos.
A questão central permanece: enquanto prefeitura e estado divergem sobre os rumos do aterro sanitário, o tempo continua passando e a necessidade de uma solução definitiva torna-se cada vez mais urgente.
"O planejamento para o futuro da gestão de resíduos em Goiânia não pode mais esperar que a disputa política se resolva. É preciso agir com base em critérios técnicos e ambientais. Quinze anos podem parecer muito tempo, mas para licenciar, construir e operacionalizar um novo aterro, considerando todas as exigências ambientais, é um prazo muito apertado", avalia Beraldo.
Silva é ainda mais enfática: "Goiânia tem todas as condições para ser a capital brasileira da gestão sustentável de resíduos. Tem universidades, profissionais qualificados, recursos e uma população consciente. O que falta é coragem política para enfrentar os interesses econômicos e tomar as decisões necessárias. O centenário da cidade deveria ser o marco dessa transformação".