Samuel Straioto
Goiânia - O futuro da malha ferroviária goiana está em jogo: às vésperas do fim do contrato da Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), previsto para 31 de agosto de 2026, a decisão sobre a nova concessão ainda não foi tomada. O impasse sobre quem e como operará o modal surgiu a partir de um processo iniciado em 1996 com a privatização da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA), e envolve o estado de Goiás, que amarga índices de ociosidade próximos a 90% enquanto aguarda definição da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e do Ministério dos Transportes, em meio a críticas à atuação da atual concessionária VLI.
Enquanto a definição não vem, trilhos que cruzam Goiás — parte dos 7,2 mil quilômetros da FCA, integrando sete estados e o Distrito Federal — são alvo de disputas técnicas, políticas e econômicas. A diferença entre a prorrogação do contrato por 30 anos ou a realização de uma nova licitação pode determinar se o estado romperá um ciclo de abandono e subaproveitamento de seu potencial logístico, fundamental para o agronegócio e a indústria regionais.
Entre a renovação e a relicitação
A decisão de prorrogar a concessão da FCA ou partir para um novo leilão está sendo analisada pela ANTT. Segundo Lorena Duarte, gerente de Estudos e Projetos de Ferrovias da agência, “o processo ainda está em andamento, não houve a prorrogação antecipada da concessão da malha da Ferrovia Centro – Atlântica”, relata.
O governo federal trabalha atualmente com duas frentes paralelas. A ANTT analisa os estudos apresentados pela VLI para uma possível prorrogação da concessão por mais 30 anos, enquanto a Infra S.A. desenvolve estudos para uma nova licitação da malha, por determinação do Ministério dos Transportes.
“Então, nesse momento, acontece aqui dentro da agência uma análise dos estudos referentes à prorrogação, enquanto a Infra trabalha com os estudos para uma possível nova licitação”, detalhou Lorena Duarte. “E o Ministério, como formulador de política pública, vai indicar pela prorrogação ou pela nova licitação da concessão”, explicou a gerente.
(Foto: Samuel Straioto/arquivo)
Segundo a gerente estão sendo analisadas tanto a proposta da concessionária, quanto as alternativas desenhadas pela Infra S.A. “Divididos em dois caminhos que buscam garantir o que de fato é mais vantajoso para o interesse público. O Ministério dos Transportes tomará a decisão final com base nessa análise e na participação da sociedade civil.”, explica.
O processo já passou por dois momentos de audiências públicas nos últimos anos – o primeiro entre 2020 e 2021 e a segundo em 2024. A ANTT recebeu contribuições da sociedade civil que agora estão sendo analisadas junto aos estudos da concessionária.
Baixa densidade
A malha da FCA, atualmente operada pela VLI, enfrenta críticas recorrentes, por sua subutilização. Alguns trechos em Goiás apresentam ociosidade próxima a 90%. A velocidade média dos trens no estado é de apenas 20 km/h, bem abaixo da média nacional para ferrovias.
“Goiás tem trechos que nós chamamos, trechos considerados de baixa densidade, e aí, nessa última versão da audiência pública, não foram indicados investimentos nesse trecho”, reconheceu a gerente da ANTT.. Enquanto o modal deveria impulsionar o agronegócio e a indústria, relatórios oficiais mostram que a gestão concentrou 90% da operação em menos de um terço dos trilhos disponíveis, negligenciando justamente o interior de Goiás e regiões de potencial exportador.
Representantes ligados ao Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Goiás (Crea-GO) manifestara-se em audiências públicas de forma contrária à renovação da concessão nos moldes propostos. Entre os argumentos está o fato de que “o volume transportado pela ferrovia, que é administrada pela VLI, se mantém nos níveis de 2006 e a ociosidade dos trilhos próxima a 90% em muitos trechos no Estado”.
As audiências públicas realizadas desde 2020 — incluindo uma em Goiânia — reuniram técnicos, produtores, sindicatos, órgãos públicos e especialistas. O relatório apresentado não previa devolução de trechos goianos, mas tampouco garantia aportes de recursos para reverter a ociosidade.
“Nós recebemos os estudos de engenharia, ambientais, operacionais, financeiros — e todos estão sendo avaliados à luz das contribuições recebidas. Temos duas linhas principais de atuação: induzir melhorias de via para fomentar o transporte ferroviário e avaliar, caso a caso, as restrições que justificam a baixa oferta de trens em Goiás”, explica Lorena Duarte. “As restrições são frequentemente relacionadas ao estado precário dos dormentes, lastro deteriorado, e questões de segurança operacional detectadas nas auditorias da agência.”
Ainda segundo ela: “Mesmo sendo considerado trecho de baixa densidade, se a restrição é de via, temos obrigação de avaliar e induzir melhorias que permitam ao menos que o modal ferroviário seja competitivo. A gente precisa parar de ver a ferrovia como sinônimo de abandono, não só nas estatísticas, mas no aspecto físico, da paisagem mesmo.”
A malha da FCA tem 7,2 mil quilômetros de extensão e cruza sete estados: Bahia, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Sergipe, além do Distrito Federal. Seria o primeiro caso de relicitação no setor. Outras grandes ferrovias como: Malha Paulista (Rumo), Malha Sudeste (MRS Logística), Estrada de Ferro Carajás (Vale) e Vitória-Minas (Vale) tiveram suas concessões renovadas.
Efeitos econômicos do abandono
Goiás registrou, em 2024, o embarque de quase 2 milhões de toneladas de produtos agrícolas por rodovias, mesmo tendo acesso aos trilhos da FCA. Catalão seguiu a mesma lógica, importando mais de 1,5 milhão de toneladas de insumos via caminhão. Esse gargalo logístico impacta o agronegócio, reduz a competitividade e perpetua danos ambientais.
O próximo contrato determinará a lógica logística dos próximos 30 anos no Centro-Oeste. Lorena Duarte destaca que o objetivo é ter uma ferrovia mais eficiente e sustentável, que atenda aos interesses econômicos e sociais das regiões que ela corta.
“Temos que pensar tanto no escoamento agrícola, quanto na redução dos conflitos urbanos, questões ambientais e sociais — e principalmente na obrigação legal de garantir que a outorga da concessão seja revertida em investimentos concretos para a sociedade”, relata.
Até o momento, estima-se que R$ 30 bilhões sejam investidos na rede total, com Minas Gerais concentrando cerca de R$ 12 bilhões. Para Goiás, não há compromissos contratados. Produtos como soja, minério de ferro, açúcar, calcário, milho, bauxita e farelo de soja seguem, em sua maioria, à margem das prioridades da concessionária, excluindo cidades polo como Catalão e Anápolis dos fluxos ferroviários relevantes.
Calendário e próximos passos
Se a escolha for por relicitação, a Infra S.A. tem até setembro de 2025 para apresentar seus estudos; a ANTT terá até março de 2026 para promover a última audiência pública e publicar parecer técnico. Se a decisão for prorrogar, a agência encaminha o processo ao Ministério dos Transportes até novembro de 2025, para que o Tribunal de Contas da União avalie e delibere.
O Ministério dos Transportes só manterá contratos que garantam benefícios claros ao interesse público. Para Goiás, parte do debate é dividir a FCA em blocos e renegociar responsabilidades e investimentos. Segundo Lorena Duarte, “a decisão depende da avaliação das externalidades positivas de cada alternativa.”
Posição política e mobilização
O impasse da FCA repercutiu na bancada federal. A deputada Adriana Accorsi (PT-GO) enfatizou que o assunto precisa ser tratado com cuidado e atenção: “Isso está sendo discutido ainda, eu acho que precisamos analisar com cuidado, precisamos dessa linha ferroviária, porque é um desenvolvimento econômico para o nosso estado.”, analisou a parlamentar.
Além do transporte de cargas, existe potencial para transporte de passageiros na região. Lorena Duarte mencionou que o Ministério dos Transportes trabalha com seis eixos prioritários para transporte ferroviário de passageiros, incluindo o trecho Brasília – Luziânia.
Silêncio da VLI
A VLI, comandada pela canadense Brookfield (36,5%) com participação de grandes grupos nacionais e internacionais, herdou um cenário de baixa performance. Em 2019, após acordo extrajudicial com o Ministério Público Federal, comprometeu-se a pagar R$ 1,2 bilhão por descumprir cláusulas contratuais relacionadas a investimentos e segurança.
Quando solicitada a responder sobre investimentos, cronogramas ou eventual devolução de trechos de Goiás, a resposta da empresa foi: “Sobre este tema, a VLI não apresentará nenhum comentário.” A postura, reiterada nas tentativas de esclarecimento, agrava o clima de desconfiança e distancia a VLI do debate público, mesmo com demandas legítimas sobre o interesse coletivo e a necessidade de transparência em contratos de concessão.
Esse silêncio ecoa não só em Goiás, mas também em estados como Bahia, Espírito Santo e Minas Gerais, que manifestaram insatisfação formal nas audiências públicas — reforçando o isolamento da concessionária em um debate de dimensão nacional.
A herança ferroviária em Goiás
O legado histórico da ferrovia goiana tem suas raízes no início do século XX, época em que o modal ferroviário representava elemento essencial para a integração territorial e o progresso econômico regional. Em 1935, a linha férrea finalmente chegou a Anápolis, estabelecendo um marco significativo para o município e, mais tarde, para a extensão ferroviária até Goiânia. Somente em 1950, após aproximadamente vinte anos de interrupção dos trabalhos em Leopoldo de Bulhões, o transporte ferroviário atingiu a capital estadual, demonstrando as dificuldades financeiras e as decisões políticas que atrasaram sua ampliação.
A chegada da ferrovia a Goiânia representou uma importante vitória em termos de infraestrutura, estabelecendo conexões entre o interior goiano e as metrópoles do Sudeste, incluindo o Rio de Janeiro, então centro do poder federal. Em 1959, ocorreu o prolongamento até Campinas, porém o projeto inicial, que almejava criar uma ligação ferroviária até o Rio Araguaia atravessando a cidade de Goiás, jamais foi realizado.
Embora seja pouco recordada nos dias atuais, a Estrada de Ferro Goiás desempenhou papel fundamental na edificação de Brasília: um ramal especial viabilizou o transporte de insumos e trabalhadores até os locais de construção da nova capital, contribuindo para o estabelecimento da estação Rodoferroviária e do bairro Núcleo Bandeirante.
O desafio para estabelecer esse sistema de transporte foi duplo: foram necessários aproximadamente quarenta anos para que os trens alcançassem o centro de Goiânia — e outros quarenta para sua completa remoção. Durante as décadas de 1960 e 1970, a presença ferroviária moldou o cotidiano urbano: com a expansão até Campinas e a transferência administrativa de Araguari para Goiânia, várias transformações ocorreram, incluindo o nascimento do Ferroviário, renomado time de futebol goianiense nas décadas de 1950 e 1960.
A partir dos anos 1970, contudo, as diretrizes nacionais passaram a considerar certas ramificações como “não rentáveis”, promovendo a eliminação de linhas urbanas e tornando inviável o transporte de passageiros. Este processo acelerou o fim do serviço ferroviário em múltiplas cidades — em Anápolis, os trilhos desapareceram do centro em 1973; em Goiânia, o encerramento foi progressivo, finalizando com a última viagem de passageiros em junho de 1983.
Do período ferroviário, permaneceram escassos vestígios: a estação central hoje opera como museu e unidade do Atende Fácil, a antiga estação de Campinas atende aos militares e o antigo percurso dos trilhos converteu-se na avenida Leste-Oeste.
Outros locais anteriormente vinculados ao modal foram adaptados para diferentes finalidades, como o terminal rodoviário, complexos comerciais e até mesmo a sede da Câmara Municipal. Dessa forma, a narrativa ferroviária persiste nas lembranças dos habitantes e no desenho urbano, mesmo que parcialmente obscurecida pela expansão rodoviária e a metamorfose das cidades.