Samuel Straioto
Goiânia - Na manhã de 13 de setembro de 1987, dois catadores de recicláveis encontraram um aparelho de radioterapia abandonado no Instituto Goiano de Radioterapia, em Goiânia. O que deveria ser apenas mais um dia de trabalho se transformou no maior acidente radiológico da história do Brasil, quando Roberto dos Santos e Wagner Mota Pereira romperam a cápsula contendo césio-137. O pó azul brilhante fascinou quem o viu, espalhando-se rapidamente por bairros inteiros da capital goiana e contaminando centenas de pessoas direta e indiretamente.
Neste mês de setembro, passaram-se 38 anos da tragédia, e as vítimas do césio-137 ainda enfrentam uma batalha silenciosa contra sequelas médicas, preconceito social e a busca por reconhecimento judicial pleno de seus direitos. Entre elas está a família Silva Monteiro: José Carlos, de 62 anos, sua esposa Maria Aparecida, de 59, e o filho único Rafael, hoje com 41 anos. Moradores do Setor Aeroporto, próximo ao epicentro da contaminação, eles foram forçados a abandonar Goiânia em 1989 devido ao estigma social e às ameaças de vizinhos que os culpavam pela "maldição radioativa".
Atualmente residem no Rio de Janeiro, onde José Carlos desenvolve um câncer raro no sistema linfático e Rafael apresenta problemas graves na medula óssea - ambos lutam na Justiça Federal para comprovar a ligação de suas doenças com a exposição ao material radioativo.
Descoberta
O acidente radiológico começou quando os catadores levaram o equipamento médico para o ferro-velho de Devair Alves Ferreira. O episódio teve início quando dois catadores de recicláveis, Roberto dos Santos e Wagner Mota Pereira, encontraram um aparelho de radioterapia abandonado no local onde funcionava o Instituto Goiano de Radioterapia. A curiosidade fatal os levou a romper a blindagem do equipamento, expondo 19,26 gramas de cloreto de césio-137 em forma de pó azul luminescente.
O brilho hipnotizante do material radioativo atraiu dezenas de pessoas, que o manipularam sem qualquer proteção. Famílias inteiras brincaram com o pó, espalharam-no pelo corpo como tinta fosforescente e o distribuíram entre amigos e parentes. A beleza etérea do césio-137 contrastava tragicamente com sua capacidade letal de destruição celular. Em poucos dias, o material havia se espalhado por vários bairros de Goiânia, contaminando casas, terrenos, animais e pessoas.
A primeira a suspeitar da gravidade da situação foi Maria Gabriela Ferreira, esposa do dono do ferro-velho, que notou o adoecimento súbito de familiares e funcionários. Persistente em suas suspeitas, ela coletou restos do material em um saco plástico e levou à Vigilância Sanitária em 28 de setembro. Somente então as autoridades descobriram a verdadeira dimensão da catástrofe que se abatia sobre a capital goiana.
Contaminação
O manuseio indevido de um aparelho de radioterapia abandonado, onde funcionava o Instituto Goiano de Radioterapia, gerou um acidente que envolveu direta e indiretamente centenas de pessoas em uma área que se estendia por quilômetros. A radiação gama emitida pelo césio-137 penetrava facilmente em tecidos humanos, causando danos irreversíveis ao DNA celular e desencadeando processos cancerígenos que só se manifestariam anos depois.
Os primeiros sintomas surgiram como uma epidemia misteriosa: náuseas violentas, vômitos incontroláveis, diarreia sanguinolenta e lesões na pele que se assemelhavam a queimaduras graves.
No Hospital de Doenças Tropicais, médicos se depararam com pacientes apresentando sinais clínicos típicos da síndrome aguda da radiação, mas inicialmente não conseguiram estabelecer o diagnóstico correto. Os sintomas eram de exposição à radiação, mas os médicos consideravam pouco provável algo do tipo no interior da pacata Goiânia (GO).
Quando a verdade veio à tona, o pânico se instalou na cidade. Equipes especializadas da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) chegaram de Brasília para coordenar as operações de descontaminação.
Foram identificadas 112.000 pessoas que precisaram ser monitoradas, das quais 129 apresentavam contaminação interna ou externa. Quatro pessoas morreram em consequência direta da exposição: Leide das Neves Ferreira, de apenas 6 anos, sua tia Gabriela Maria Ferreira, Israel Baptista dos Santos e Admilson Alves de Souza.
A família Silva Monteiro vivia na época no Setor Aeroporto, a menos de dois quilômetros do ferro-velho onde o material foi manipulado. José Carlos trabalhava como mecânico e frequentemente passava pela região contaminada.
Maria Aparecida estava grávida de Rafael e costumava fazer compras no mercadinho próximo ao epicentro da contaminação. O casal lembra que nos dias seguintes ao acidente, uma poeira estranha se depositou sobre os quintais da vizinhança, e que várias pessoas da região começaram a apresentar sintomas inexplicáveis.
Estigma
O preconceito contra as vítimas do césio-137 revelou uma face cruel da natureza humana. A tragédia com o césio-137, em Goiânia, completa 20 anos nesta quinta-feira (13) e muitas vítimas ainda sofrem com doenças provocadas pelo material radioativo e, principalmente, com o preconceito provocado pela falta de informação sobre o caso. Famílias inteiras foram marginalizadas, crianças impedidas de frequentar escolas, trabalhadores demitidos e relacionamentos sociais rompidos abruptamente.
O medo irracional da contaminação transformou vizinhos em inimigos. Pessoas que moravam nas proximidades das áreas afetadas eram tratadas como párias sociais, evitadas em locais públicos e discriminadas no mercado de trabalho. Muitos comerciantes se recusavam a vender produtos para suspeitos de contaminação, e motoristas de ônibus chegavam a impedir o embarque de moradores de bairros considerados "radioativos".
José Carlos Silva Monteiro relembra com amargura os dois anos que se seguiram ao acidente. "As pessoas nos olhavam como se fôssemos leprosos", conta o mecânico aposentado. "Perdí clientes, amigos atravessavam a rua para não falar conosco, e chegaram até a jogar pedras na nossa casa."
Maria Aparecida complementa: "Foi quando Rafael nasceu, em março de 1988, que decidimos que não podíamos mais ficar aqui. As pessoas diziam que nossa criança ia nascer deformada, que éramos amaldiçoados."
O estigma social forçou centenas de famílias a abandonar Goiânia em busca de uma nova vida longe do preconceito. O acidente ocorrido em Goiânia constituiu-se em um evento altamente destrutivo, produzindo, por um lado, enquanto evento social: segregação, desorganização e migração. Essa diáspora involuntária espalhou as vítimas por todo o território nacional, dificultando ainda mais o acompanhamento médico e o reconhecimento de seus direitos.
Migração
Em janeiro de 1989, a família Silva Monteiro embarcou em um ônibus com destino ao Rio de Janeiro, carregando apenas duas malas com roupas e a certidão de nascimento do pequeno Rafael. José Carlos havia conseguido trabalho em uma oficina mecânica em Nova Iguaçu através de um primo distante. "Não foi uma escolha", explica Maria Aparecida. "Foi uma questão de sobrevivência. Não conseguíamos mais viver em Goiânia."
A adaptação no Rio de Janeiro foi traumática. Sem rede de apoio familiar e enfrentando dificuldades financeiras, o casal precisou recomeçar do zero. José Carlos trabalhava longas jornadas para sustentar a família, enquanto Maria Aparecida cuidava do bebê em um pequeno apartamento alugado em um conjunto habitacional da periferia fluminense. O isolamento social persistia, pois eles evitavam contar sua origem por medo de novo preconceito.
Rafael cresceu ouvindo fragmentos da história familiar, mas só aos 15 anos compreendeu completamente o que havia acontecido em Goiânia. "Meus pais sempre foram muito reservados sobre o assunto", conta o técnico em informática.
"Quando descobri a verdade, muita coisa fez sentido: as consultas médicas frequentes, a tristeza dos meus pais, nossa distância da família que ficou em Goiás."
Durante quase quatro décadas no Rio de Janeiro, a família Silva Monteiro construiu uma nova vida, mas nunca conseguiu se libertar completamente das sombras do césio-137. José Carlos desenvolveu um pequeno negócio de conserto de eletrodomésticos, Maria Aparecida trabalhou como diarista até se aposentar, e Rafael se formou técnico em informática. Contudo, o passado radioativo continuava presente nas consultas médicas regulares, nos exames de sangue constantes e na preocupação permanente com a saúde.
Sequelas
As consequências médicas da exposição ao césio-137 se manifestam de forma insidiosa e progressiva. Para as vítimas diretas, aquelas que vivenciaram, foram contaminadas pelo Césio 137, tem um impacto emocional, um impacto na saúde, um impacto social. Os danos celulares causados pela radiação podem permanecer latentes por décadas antes de se manifestar como cânceres, disfunções imunológicas e degenerações orgânicas.
Em 2019, José Carlos foi diagnosticado com linfoma não-Hodgkin, um tipo raro de câncer que ataca o sistema linfático. Os médicos no Rio de Janeiro inicialmente não estabeleceram conexão com a exposição radioativa ocorrida 32 anos antes, tratando o caso como uma neoplasia espontânea. Somente após José Carlos apresentar documentos comprobatórios de sua residência em Goiânia durante o acidente, a equipe médica começou a considerar a possibilidade de correlação causal.
Rafael, por sua vez, desenvolveu aos 35 anos uma aplasia medular parcial - condição em que a medula óssea não produz células sanguíneas em quantidade suficiente. O diagnóstico veio acompanhado de uma enxurrada de questionamentos sobre histórico familiar, exposição a produtos químicos e radiação ionizante. "Foi quando contei ao hematologista sobre Goiânia que ele mudou completamente o foco do tratamento", relembra Rafael.
Os entrevistados demonstraram que, para além de problemas físicos, como câncer e falência de órgãos, muitos também foram afetados psicologicamente, sofrendo danos à saúde mental, como vícios e depressão. Maria Aparecida desenvolveu síndrome do pânico e depressão crônica, condições que ela atribui ao estresse pós-traumático de ter vivenciado o acidente durante a gravidez e enfrentado décadas de incerteza sobre a saúde da família.
O impacto psicológico se estende além das questões médicas individuais. A família carrega o peso de uma culpa irracional pelo acidente, questionando constantemente se poderiam ter feito algo diferente, se deveriam ter saído de Goiânia antes, se expuseram desnecessariamente Rafael aos riscos. Essa culpa existencial permeia as relações familiares e alimenta ansiedades constantes sobre o futuro.
Justiça
A batalha judicial das vítimas do césio-137 espelha a complexidade de estabelecer nexo causal entre exposição radioativa e doenças que se manifestam décadas depois. Ainda que possuam o reconhecimento, há descaso no atendimento médico, valor de pensão defasado, receio de não ter o atendimento médico estendido a seus filhos e preconceito que os impede de integrar-se socialmente. O sistema jurídico brasileiro ainda não desenvolveu mecanismos adequados para lidar com as especificidades dos danos radioativos de longo prazo.
José Carlos e Rafael entraram com ação na Justiça Federal em 2020, buscando reconhecimento como vítimas indiretas do acidente e direito a assistência médica integral. O processo, que tramita na 1ª Vara Federal do Rio de Janeiro, enfrenta resistência de peritos que questionam a correlação temporal e geográfica entre a exposição e as doenças desenvolvidas. "É uma luta desigual", desabafa José Carlos. "Eles querem que provemos cientificamente algo que a própria ciência ainda está estudando."
A família contratou advogados especializados em direito ambiental e nuclear, que argumentam com base em estudos epidemiológicos internacionais sobre os efeitos tardios da radiação ionizante. O caso se baseia na teoria da responsabilidade objetiva do Estado, considerando que as autoridades públicas falharam na fiscalização e no controle de material radioativo, permitindo que o acidente ocorresse.
Dessas, 60 são vítimas diretas do césio e devem receber medicamentos, mas isso não acontece desde novembro de 2010. A inconsistência no atendimento às vítimas reconhecidas oficialmente demonstra as dificuldades que enfrentam aquelas que lutam por reconhecimento. Atualmente, apenas 340 pessoas estão cadastradas como vítimas do acidente, número que muitos especialistas consideram subestimado.
O processo judicial da família Silva Monteiro se arrasta há cinco anos, com sucessivas perícias médicas, contestações de laudos e recursos protelatórios. Os advogados estimam que uma decisão definitiva pode demorar mais uma década, considerando a complexidade técnica do caso e a tendência de recursos às instâncias superiores. "Estamos lutando contra o tempo", observa Rafael. "Meu pai já tem 62 anos e está enfrentando câncer. Não sabemos se viverá para ver a Justiça reconhecer nossos direitos."
Memória
A preservação da memória do acidente radiológico de Goiânia transcende a mera recordação histórica, constituindo-se em um imperativo ético de prevenção e reconhecimento das vítimas. A imprudência no manuseio de um aparelho de radioterapia abandonado resultou em quatro mortes confirmadas e deixou marcas indeléveis em centenas de pessoas. O Memorial do Césio-137, inaugurado em Goiânia, representa um espaço de reflexão sobre os riscos da energia nuclear e a importância da regulamentação rigorosa de materiais radioativos.
Passados 38 anos, o acidente continua sendo objeto de estudos acadêmicos em universidades brasileiras e internacionais. Pesquisadores analisam desde os aspectos radiológicos e epidemiológicos até as dimensões sociológicas e psicológicas do desastre. Esses estudos são fundamentais para compreender os efeitos de longo prazo da exposição à radiação ionizante em populações civis, contribuindo para protocolos de emergência nuclear em todo o mundo.
A família Silva Monteiro participa esporadicamente de estudos sobre as consequências tardias do acidente, fornecendo dados médicos e relatos para pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "É nossa forma de contribuir para que isso nunca mais aconteça", explica Maria Aparecida. "Se nossa dor pode ajudar a proteger outras famílias, então ela não foi completamente em vão."
As narrativas pessoais das vítimas constituem um patrimônio imaterial que precisa ser preservado e transmitido às futuras gerações. Projetos de história oral coletam depoimentos de sobreviventes, documentando não apenas os fatos objetivos, mas também as experiências subjetivas, os sentimentos, os medos e as esperanças daqueles que viveram a tragédia. Esses relatos humanizam estatísticas frias e conferem dignidade às vítimas, combatendo o esquecimento e a invisibilidade social.
Prevenção
As lições do césio-137 ecoam em regulamentações mais rígidas para o descarte de materiais radioativos e na criação de protocolos de emergência nuclear. A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) implementou normas mais severas para o controle de fontes radioativas, exigindo rastreamento permanente desde a fabricação até o descarte final. Equipamentos médicos contendo material radioativo agora devem ser registrados em bancos de dados federais, com responsabilização legal de fabricantes, distribuidores e usuários.
O Sistema de Gerência de Rejeitos Radioativos foi aprimorado, estabelecendo depósitos seguros e procedimentos padronizados para descontaminação. Hospitais, clínicas e centros de radioterapia são obrigados a manter controle rigoroso de seus equipamentos, comunicando imediatamente qualquer irregularidade às autoridades competentes. Multas severas e responsabilização criminal foram estabelecidas para casos de negligência no manuseio de material radioativo.
A educação sobre radioatividade foi incorporada aos currículos escolares e campanhas de conscientização pública são realizadas periodicamente. Bombeiros, policiais e equipes de emergência recebem treinamento especializado para identificar e responder a acidentes radiológicos. Esses protocolos foram testados em simulações que reproduzem cenários similares ao ocorrido em Goiânia, permitindo o aperfeiçoamento constante dos procedimentos de resposta.
Internacionalmente, o acidente de Goiânia é citado como caso de estudo em cursos de engenharia nuclear, medicina nuclear e gestão de emergências radiológicas. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) incorporou as lições aprendidas em suas diretrizes globais para segurança radiológica, influenciando políticas públicas em dezenas de países que utilizam tecnologia nuclear para fins médicos, industriais ou energéticos.
Reconhecimento
O reconhecimento pleno das vítimas do césio-137 permanece como uma questão de justiça social e reparação histórica. Muitas das pessoas afetadas pelo acidente ainda enfrentam dificuldades para comprovar sua condição de vítima, especialmente aquelas que desenvolveram doenças anos ou décadas depois da exposição inicial. A criação de critérios científicos mais abrangentes para estabelecer nexo causal entre exposição radioativa e patologias tardias representa um desafio técnico e jurídico complexo.
O mais grave acidente radioativo da história brasileira completa, na próxima, semana 30 anos. O acidente radiológico com Césio 137 ocorreu em Goiânia (GO), em 13 de setembro de 1987. Organizações não-governamentais e movimentos sociais continuam pressionando por políticas públicas mais inclusivas, que reconheçam não apenas as vítimas diretas, mas também aquelas indiretamente afetadas pelo preconceito, migração forçada e consequências psicossociais.
A Associação das Vítimas do Césio-137 mantém cadastro próprio de pessoas que se consideram afetadas pelo acidente, número que supera significativamente os registros oficiais. Essa discrepância evidencia a necessidade de revisão dos critérios de reconhecimento, incorporando conhecimentos científicos mais recentes sobre os efeitos biológicos da radiação ionizante e os impactos sociais de desastres tecnológicos.
O caso da família Silva Monteiro ilustra as lacunas do sistema de proteção às vítimas. Apesar de terem vivido na área contaminada durante o acidente, de terem desenvolvido doenças potencialmente relacionadas à exposição radioativa e de enfrentarem décadas de consequências sociais e psicológicas, eles não constam nos registros oficiais de vítimas. Essa invisibilidade institucional perpetua injustiças e impede o acesso a direitos básicos como assistência médica especializada e compensação financeira.
Futuro
As perspectivas para as vítimas do césio-137 dependem fundamentalmente de avanços na compreensão científica dos efeitos tardios da radiação ionizante e da evolução da jurisprudência sobre responsabilidade por danos ambientais e nucleares. Estudos longitudinais acompanham a saúde de sobreviventes há quase quatro décadas, gerando dados epidemiológicos valiosos para a comunidade científica internacional e fornecendo evidências para processos judiciais.
A família Silva Monteiro mantém esperança de que a Justiça reconheça seus direitos, mas também se prepara para a possibilidade de que isso não aconteça durante suas vidas. "Não estamos lutando só por nós", afirma Rafael. "Estamos lutando pelos nossos netos, para que eles não tenham que carregar esse fardo sem reconhecimento." O jovem técnico em informática planeja ter filhos em breve e teme que eles possam herdar predisposições genéticas resultantes da exposição radioativa dos avós.
José Carlos continua o tratamento oncológico no Instituto Nacional de Câncer, no Rio de Janeiro, onde participa de um protocolo experimental para linfomas associados à radiação. Sua resposta ao tratamento tem sido positiva, mas os médicos são cautelosos quanto ao prognóstico a longo prazo. "Cada dia é uma vitória", filosofa o mecânico aposentado. "Já vivi 35 anos mais do que muitas vítimas conseguiram viver."
Maria Aparecida dedica-se ao artesanato e participa de grupos de apoio para pessoas com transtornos de ansiedade. Ela encontrou na fé religiosa e na solidariedade comunitária forças para superar o trauma e construir uma vida com propósito. "Deus nos deu uma segunda chance", reflete a costureira aposentada. "Nossa missão agora é testemunhar sobre a importância da prevenção e da compaixão."
O legado do césio-137 transcende as fronteiras temporais e geográficas do acidente original. Cada vítima que luta por reconhecimento, cada pesquisador que estuda as consequências, cada autoridade que implementa medidas preventivas contribui para que a tragédia de 1987 não seja esquecida nem repetida. A dor transformada em conhecimento, a injustiça convertida em mobilização social, o sofrimento individual transmutado em solidariedade coletiva - essas são as sementes de um futuro mais seguro e justo.
Enquanto houver uma única vítima sem reconhecimento, uma única família lutando por justiça, uma única criança nascida sob a sombra radioativa, o acidente do césio-137 permanecerá como uma ferida aberta na consciência nacional. Cabe às próximas gerações decidir se essa ferida cicatrizará como uma marca de aprendizado ou como uma cicatriz de esquecimento. A família Silva Monteiro, assim como centenas de outras famílias dispersas pelo Brasil, aguarda essa decisão com a paciência dos que sabem que a verdade, embora tardia, sempre encontra seu caminho.
Em suas quase quatro décadas de exílio involuntário no Rio de Janeiro, os Silva Monteiro nunca mais voltaram a Goiânia. Mas carregam a cidade natal na memória, nas sequelas médicas, na saudade dos parentes distantes e na esperança de que um dia a Justiça reconheça que eles também são vítimas daquele setembro trágico de 1987. Até lá, continuam vivendo entre duas vidas: a que tinham antes do césio-137 e a que construíram depois dele, sempre com a radioatividade invisível pulsando silenciosamente em suas células, em suas dores e em seus sonhos de reparação.
*Os nomes José Carlos, Maria Aparecida e Rafael Silva Monteiro são fictícios, utilizados para preservar a identidade da família retratada nesta reportagem. Os entrevistados concordaram em participar da matéria sob condição de anonimato.