Samuel Straioto
Goiânia - Mariana Silva fechou os olhos e tentou recordar o mundo como ele era antes: cores nítidas, rostos reconhecíveis, a lousa legível mesmo da última fileira. Aos 34 anos, professora de uma escola municipal em Anápolis, a rotina se transformou em desafio. As letras no quadro viraram borrões, dirigir à noite passou a ser arriscado e até os rostos de seus alunos já não tinham contornos claros.
O diagnóstico caiu como um choque: ceratocone avançado. A córnea, a película transparente que deveria ser sua janela para o mundo, estava se deformando, afinando progressivamente até impedir a passagem da luz. Em novembro de 2020, seu nome entrou para a fila de transplante de córneas em Goiás.
Em fevereiro de 2022, o telefone tocou com a notícia tão esperada: havia chegado sua vez. Mariana chorou ao ouvir a voz de um representante do Hospital Estadual Dr. Alberto Rassi. "Alguém havia partido, mas ia me devolver a vida", recorda, ainda emocionada.
A história dela se repete em cada um dos 1.731 goianos que hoje aguardam por um transplante de córnea – a maior fila entre todos os órgãos e tecidos no estado. Em Goiás, segundo a Secretaria de Estado da Saúde (SES-GO), 2.435 pessoas esperam por algum tipo de doação: córneas lideram disparado, seguidas por rins (685 pacientes) e fígado (14).
O drama vivido em Goiás dialoga com uma realidade nacional igualmente preocupante: as filas que crescem, as doações que não acompanham a demanda e a resistência familiar que ainda é o maior entrave.
Um olhar que renasce
Meses após o transplante, Mariana Silva retomou suas aulas presenciais. Voltou a reconhecer cada expressão dos estudantes, a ler sem esforço e a dirigir com segurança. "É como se tivessem acendido a luz de novo", descreve. A transformação não foi apenas física: recuperou a autoestima, a independência e a confiança para planejar o futuro.
Hoje, ela integra um grupo de pacientes transplantados que participa das campanhas de conscientização da SES-GO, contando sua experiência para sensibilizar outras famílias sobre a importância da doação.
Mas o caminho até ali não foi simples. Durante os meses de espera, Mariana Silva enfrentou o progressivo estreitamento de seu mundo visual. Tarefas rotineiras como cozinhar se tornaram desafios. Reconhecer pessoas à distância, impossível. A noite trouxe isolamento, já que sair se tornou arriscado.
"Você vai perdendo a autonomia aos poucos, e isso mexe com a cabeça", relata. Era como se uma cortina opaca fosse sendo lentamente fechada sobre sua vida, fazendo-a depender cada vez mais da ajuda de familiares e colegas de trabalho.
O cenário em Goiás
Os números da SES-GO revelam a dimensão do desafio em solo goiano. Das 2.435 pessoas que aguardam na fila para receber uma doação no estado, mais de 71% esperam por córneas. A desproporção chama atenção: enquanto 14 pessoas aguardam por um fígado e 685 por rins, a fila das córneas soma 1.731 pacientes.
O dado indica tanto a alta demanda por esse tipo de transplante quanto a complexidade específica da doação de tecidos oculares. A situação se agrava quando observamos que Goiás enfrenta o mesmo problema nacional: a alta taxa de recusa familiar.
Enquanto a média brasileira de aceitação familiar gira em torno de 55%, em Goiás apenas 29% das famílias abordadas aceitaram doar os órgãos de seus entes queridos entre janeiro e julho de 2025 – uma recusa de 71%.
Obstáculos da doação
"É um desafio muito grande falar de morte em casa. Ninguém quer falar sobre isso", admite Katiúscia Freitas, gerente de Transplantes da SES-GO. Para ela, essa dificuldade cultural de abordar o tema da morte e da doação é um dos principais entraves para reduzir as filas. Entre os motivos mais frequentes de rejeição familiar estão o desejo de manter o corpo íntegro, a percepção de que o falecido não manifestara em vida o desejo de ser doador e a preocupação com o tempo necessário para os procedimentos.
O cenário se torna mais complexo quando consideramos que, mesmo havendo documentos ou registros eletrônicos indicando a vontade de ser doador – como o promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) –, a legislação brasileira exige sempre a autorização familiar. A família pode rejeitar essa doação, independente de haver um documento em que a pessoa fale que é doadora.
"Os procedimentos não prejudicam a integridade do corpo", garante. "Todos os mitos relacionados à doação são inverídicos e fantasiosos", complementa o subsecretário de Políticas e Ações em Saúde, Luciano de Moura Carvalho, mencionando especificamente as falsas crenças sobre desligamento precoce de aparelhos durante a assistência e mutilação corporal decorrente da doação.
Campanha Setembro Verde
É neste contexto que ganha importância a Campanha Setembro Verde, que acontece tanto na capital quanto no interior do estado com apoio de instituições públicas e privadas, empresas e entidades civis. O mês de setembro foi escolhido estrategicamente para intensificar as ações de conscientização, aproveitando a proximidade com o Dia Nacional da Doação de Órgãos e Tecidos, celebrado em 27 de setembro.
"Este mês é escolhido para intensificarmos as ações e, desta forma, conscientizar e sensibilizar as pessoas sobre a importância de conversar em família sobre a doação de órgãos", destaca Katiúscia Freitas. A campanha busca não apenas informar sobre os procedimentos técnicos, mas principalmente estimular o diálogo familiar sobre um tema ainda tabu na sociedade brasileira.
As ações envolvem desde palestras em empresas e escolas até a participação em eventos públicos, sempre com foco na humanização da causa.
"Mesmo em um momento difícil, de muita dor, é importante que as pessoas tenham a clareza da importância da doação para que outra vida possa continuar", ressalta o subsecretário Luciano de Moura Carvalho. O objetivo é transformar números estatísticos em histórias humanas, mostrando como o gesto de uma família pode devolver esperança e qualidade de vida a dezenas de pessoas.
Avanços e desafios
Apesar dos obstáculos, Goiás tem motivos para otimismo. No ano passado, o estado atingiu um recorde histórico com 114 doadores efetivos de órgãos, o maior número já registrado na série histórica estadual. Foram captados 1.168 órgãos e tecidos ao longo de 2024, resultando em 890 transplantes realizados. Um dado significativo: o Hospital Estadual Dr. Alberto Rassi (HGG) foi responsável por 98% do total de transplantes de órgãos sólidos no estado, consolidando-se como referência na área.
Em 2025, até julho, já haviam sido realizados 481 transplantes de órgãos e tecidos no estado, demonstrando que o ritmo dos procedimentos se mantém consistente. Os números indicam não apenas o aumento na estrutura de captação e transplante, mas também maior eficiência nos protocolos adotados pelas equipes médicas.
O Hospital Estadual Dr. Alberto Rassi se destaca não apenas pelo volume de procedimentos, mas pela excelência técnica. A instituição conta com equipes multidisciplinares especializadas em diferentes tipos de transplante e mantém protocolos rígidos para garantir a segurança de todos os procedimentos.
"O processo para a realização de doação é extremamente seguro", garante o subsecretário Luciano de Moura Carvalho, enfatizando que todos os profissionais seguem protocolos rigorosos estabelecidos nacionalmente.
Causas médicas para transplante
Para entender a alta demanda por transplantes de córnea, é preciso compreender a importância dessa estrutura ocular. Considerada uma das partes mais sensíveis do olho, a córnea atua como uma lente natural, permitindo a passagem da luz até a retina. Quando essa estrutura transparente é afetada por doenças ou lesões, a visão pode ser gravemente comprometida, impactando diretamente a qualidade de vida dos pacientes.
O transplante é indicado quando não há alternativas para devolver a visão ao paciente. Entre os quadros mais frequentes que levam a essa cirurgia está o ceratocone em estágio avançado, quando o afinamento progressivo da córnea provoca deformações que não podem mais ser corrigidas com tratamentos menos invasivos, como o implante de anéis intracorneanos. A condição, que afetou Mariana, é uma das principais causas de transplante no país.
Outras situações incluem cicatrizes deixadas por traumas ou infecções oculares severas, que podem tornar a córnea opaca e impedir a passagem adequada da luz. A ceratopatia bolhosa, caracterizada por dor intensa e baixa visão devido ao inchaço da córnea, também figura entre as indicações mais comuns. Completam o quadro as degenerações hereditárias, que afetam progressivamente a estrutura corneal desde idades mais jovens.
Essas condições impactam drasticamente a rotina dos pacientes, dificultando tarefas simples como ler, dirigir ou reconhecer rostos. Para muitos, como relatou Mariana, o mundo vai se estreitando gradualmente, roubando autonomia e qualidade de vida. O transplante de córnea surge como a única alternativa para devolver não apenas a visão, mas a independência e a dignidade perdidas.
Esperança
Para enfrentar os desafios identificados, especialmente a alta taxa de recusa familiar, o governo federal anunciou o Programa de Qualidade em Doação para Transplante (PRODOT). A iniciativa visa qualificar e monitorar as equipes responsáveis pela abordagem das famílias, em parceria com a Associação de Medicina Intensiva Brasileira. O programa representa uma mudança de paradigma: em vez de apenas aumentar o número de abordagens, o foco será melhorar a qualidade dessas conversas cruciais.
Em Goiás, o investimento na capacitação já mostra resultados. Até maio de 2025, mais de 800 profissionais foram treinados em 31 comissões intra-hospitalares que atuam diretamente no acolhimento das famílias. O treinamento abrange desde aspectos técnicos sobre os procedimentos até habilidades de comunicação empática, fundamentais para conduzir conversas em momentos de extrema dor e fragilidade emocional.
As comissões intra-hospitalares representam um avanço significativo na estrutura de doações. Formadas por equipes multidisciplinares, elas atuam de forma integrada para identificar potenciais doadores, realizar os protocolos necessários e, principalmente, fazer a abordagem familiar de maneira humanizada e esclarecedora. O objetivo é não apenas solicitar autorização, mas educar sobre a importância da doação e esclarecer dúvidas que possam influenciar negativamente na decisão.
A perspectiva é de que essas iniciativas contribuam para reduzir gradualmente a fila de espera por córneas em Goiás. O trabalho conjunto entre capacitação profissional, campanhas educativas e melhoria nos protocolos hospitalares pode representar a diferença entre a espera indefinida e a possibilidade de recuperar a visão para centenas de goianos.
Enquanto isso, Mariana continua sua rotina como professora, agora enxergando cada detalhe da sala de aula. Quando fala sobre sua experiência, sempre menciona a família desconhecida que, em um momento de dor, escolheu transformar a partida de seu ente querido em renascimento para outra pessoa. "Eles não sabem meu nome, nem eu o deles, mas carrego essa córnea como um presente sagrado", diz. Para ela e para os outros 1.730 goianos que ainda esperam na fila, cada família que diz 'sim' à doação representa não apenas uma córnea disponibilizada, mas a possibilidade de ver o mundo com outros olhos – literalmente.
Dados nacionais
A situação em Goiás reflete um quadro que se repete em todo o país. Segundo informações do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO) compiladas pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT), o tempo médio de espera por uma córnea no Brasil mais que dobrou em uma década. Em 2015, um paciente aguardava cerca de 174 dias. Em 2024, a média saltou para 374 dias, e, apenas nos seis primeiros meses de 2025, já chegou a 369 dias.
Entre 2015 e julho de 2025, foram realizados 150.376 transplantes de córnea no Brasil. São Paulo lidera, com 52.913 procedimentos, seguido por Ceará (10.706), Minas Gerais (10.397), Paraná (9.726), Rio Grande do Sul (6.895) e Goiás (6.533). Já os estados com menor número de cirurgias foram Acre (212), Tocantins (451) e Alagoas (866).
As disparidades também aparecem no tempo de espera: em 2024, pacientes do Rio de Janeiro aguardavam, em média, 1.424 dias; no Acre, 1.065; em Alagoas, 1.064; e no Rio Grande do Norte, 1.072. Na outra ponta, Ceará apresentou o menor tempo, 58 dias, seguido por Santa Catarina (164), Mato Grosso (227), Amazonas (243), São Paulo (247) e Paraná (256).
Até julho de 2025, o Brasil tinha 31.240 pessoas inscritas na fila de espera para transplante de córnea. São Paulo concentrava 6.617 (21%), seguido por Rio de Janeiro (5.141) e Minas Gerais (4.346). O perfil dos pacientes também revela um recorte social e etário: 55,7% são mulheres e quase metade tem 65 anos ou mais, reflexo do envelhecimento populacional e do aumento de doenças degenerativas da córnea. Há ainda jovens (17% entre 18 e 34 anos, em grande parte por ceratocone) e 458 crianças e adolescentes.
Outro ponto que pesa no sistema é o financiamento. Os repasses do Sistema Único de Saúde (SUS) para os bancos de olhos estão defasados há mais de dez anos, enquanto os custos com insumos e exames cresceram diante de novas exigências e tecnologias. Para enfrentar esse desequilíbrio, o SNT publicou em maio de 2025 um decreto reajustando o valor de itens essenciais, como o líquido de preservação da córnea e a sorologia. Ainda assim, especialistas apontam que medidas mais amplas são necessárias para reduzir a fila.