Fernando Dantas
Especial para o jornal A Redação
Goiânia - O Brasil tem mais de 14,4 milhões de pessoas com deficiência, o que equivale a 7,3% da população com 2 anos ou mais. Em Goiás, as estatísticas revelam cerca de 582 mil pessoas com algum tipo de deficiência, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse público exerce enorme importância para a economia nacional, pois é responsável por movimentar mais de R$ 5,5 bilhões por ano, de acordo com levantamento da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Apesar da força desses números, o cenário de acessibilidade no País ainda está longe do ideal. Ele enfrenta diversas barreiras e, somente nos últimos anos, por meio de projetos e políticas públicas, começou a ganhar espaço nas estratégias de instituições e empresas, que compreenderam que não se trata apenas de um dever legal, mas também de uma vantagem competitiva para os negócios. São iniciativas adotadas para promover a inclusão, com investimentos em ambientes acessíveis, sites adaptados e equipes preparadas para atender consumidores que querem exercer seu poder de compra com autonomia e dignidade.
Entretanto, para que isso ocorra de forma assertiva, é necessário entender que o conceito de deficiência vai além das limitações físicas mais visíveis. De acordo com a legislação brasileira, estão incluídas nesse rol as deficiências físicas, auditivas, visuais e intelectuais, além das múltiplas, o nanismo e os transtornos do espectro autista (TEA), sendo que cada uma apresenta particularidades.
(Arte: Fernando Salazar)
Para a superintendente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Goiânia (CDL Goiânia), Hélia Gonçalves, a acessibilidade já é uma pauta incorporada às políticas públicas e começa a se refletir no comércio. “Já está no radar, tanto na Lei Brasileira de Inclusão (LBI) quanto nas normas técnicas da ABNT (NBR), que tratam de edificações, ruas e serviços. Na capital goiana, por exemplo, temos a Lei das Calçadas (nº 324/2019), que garante a continuidade do trajeto e o nivelamento para o deslocamento seguro de pessoas com deficiência”, explica.
Segundo ela, o varejo goianiense tem avançado, especialmente em empreendimentos mais modernos. “As lojas físicas mais novas já nascem com o projeto retrofit, considerando a acessibilidade desde a planta. Nos shoppings também já é possível evidenciar muitos recursos nesse sentido. Os maiores desafios ainda estão em espaços com arquitetura antiga, como centros comerciais e lojas de rua, mas a tendência é que a regularização avance cada vez mais”, afirma.
A superintendente destaca ainda que a inclusão não se resume apenas a investimentos no ambiente físico. “É fundamental olhar também para o digital. A experiência de compra precisa ser fluida e acessível, com interfaces fáceis de navegar, recursos de leitura de tela, navegação por teclado, legendas, layouts responsivos, ajustes de tamanho de fonte, feedback sonoro e visual claro, de forma a incluir pessoas com deficiência. O digital é tão determinante quanto o físico para garantir a autonomia dos consumidores com deficiência”, avalia.
Superintendente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Goiânia (CDL Goiânia), Hélia Gonçalves destaca que investir em acessibilidade agrega valor competitivo aos lojistas (Foto: CDL Goiânia)
Além de atender a uma exigência legal, investir em acessibilidade traz ganhos diretos aos lojistas. “Isso amplia a base de clientes, fortalece a reputação da marca, a diferencia no mercado e agrega valor competitivo frente ao concorrente que não investe nessa área”, diz Hélia.
Apesar dos avanços, a especialista reconhece que há gargalos a serem superados. “A comunicação e a conscientização continuam sendo grandes desafios, assim como os custos de adaptação em imóveis mais antigos. Mas é nítido que o comércio está mais preparado do que há alguns anos e que existe uma mudança de mentalidade no varejo para receber melhor esse público”, completa.
A CEO da Talento Incluir, Carolina Ignarra, acrescenta que as pessoas com deficiência estão aumentando seu poder aquisitivo, mas a acessibilidade para as compras não evolui no mesmo ritmo. Ela cita uma pesquisa realizada pela BigDataCorp, em parceria com o Movimento Web para Todos (WPT), que avaliou 26,3 milhões de sites ativos no Brasil, em 2024, mostrando que apenas 2,9% dos sites brasileiros foram aprovados em todos os testes de acessibilidade. “A maioria ainda não está acessível para consumidores que necessitam de recursos de acessibilidade para realizar suas compras. Isso acontece mesmo com a aceleração digital que a pandemia da Covid-19 trouxe”.
Carolina reforça que as pessoas com deficiência têm buscado sentir que seus desejos e necessidades de consumo são considerados, envolvendo desde a criação dos produtos e campanhas publicitárias até a experiência nas lojas físicas ou on-line e nos próprios produtos, sem capacitismo. “Encontrar caminhos para atender o cliente com deficiência de forma eficiente é uma ação que vai além dos preceitos de inclusão, diversidade e acessibilidade. É uma atitude que humaniza as relações de consumo e que tem o poder de conectar cliente e comércio pelo elo mais forte e importante dessa cadeia: o respeito."
É esse movimento de transformação e respeito que almeja o jornalista Brazil Nunes, de 58 anos. Nascido em Grossos, no interior do Rio Grande do Norte, ele contraiu paralisia infantil aos dois anos de idade. Quando adolescente, mudou-se com a família para Goiânia para realizar cirurgias – passou por seis –, estudou Jornalismo na Universidade Federal de Goiás (UFG) e investiu em concursos públicos. Hoje, é servidor da Justiça Eleitoral e ocupa o cargo de secretário de comunicação. “Segundo minha mãe, eu nunca dei trabalho, talvez até por minha condição como pessoa com deficiência. Mas sempre gostei de estudar e de ler, nunca deixei que a deficiência fosse maior que meus sonhos, minha capacidade de criar e de trabalhar, de querer viver, de consumir, de ser um cidadão como qualquer outro. Encarei de frente e batalhei para chegar onde cheguei, mas sei que muitas pessoas não têm as mesmas oportunidades”, afirma.
Para ele, a verdadeira acessibilidade está em poder entrar e sair de qualquer lugar, em qualquer estabelecimento, e ser integrado de fato. “Não basta ter uma rampa, é preciso me sentir convidado, respeitado e tratado como qualquer outro cliente ou cidadão. Queremos oportunidades, poder consumir igual às outras pessoas”.
O jornalista relata o peso do capacitismo no dia a dia. “Se a gente concorre a uma vaga com outra pessoa com o mesmo currículo, muitas vezes ainda escolhem o outro. Existe a visão de que não vamos dar conta. Isso limita o acesso de pessoas com deficiência a cargos de gestão, mesmo quando temos qualificação. Muitas vezes só oferecem funções de baixa complexidade, quando poderíamos estar liderando projetos”. Ele lembra que a sociedade, de modo geral, ainda trata a pessoa com deficiência como ‘doente’ ou ‘frágil’. “Desde criança eu ouvia comparações dolorosas: ‘esse é o filho doente’. Mas eu nunca fui doente, só tinha uma condição física diferente. O problema é que até hoje insistem em infantilizar a gente, em achar que vivemos de favores ou que queremos apenas aposentadoria. Não, nós queremos oportunidades para trabalhar, consumir, viajar, formar família e realizar sonhos como qualquer outra pessoa”.
O preconceito aparece também na relação de consumo. Em uma viagem recente a São Paulo, por exemplo, Brazil relata que uma atendente perguntou ao amigo que o acompanhava se ele precisava de ajuda para embarcar. “Eu a questionei: por que não pergunta para mim? Eu viajo sozinho muitas vezes, pago minha passagem, tenho autonomia. Esse tipo de situação mostra como ainda nos veem como incapazes”, enfatiza.
Ao mesmo tempo, ele reforça que pessoas com deficiência são consumidores ativos e exigentes. “Nós viajamos, frequentamos restaurantes, teatros, shows, shopping centers. Gostamos de moda, de cultura, de lazer. Pagamos impostos como qualquer cidadão. Então é nosso direito encontrar espaços acessíveis e acolhedores. Isso não é luxo, é cidadania”.
Para ele, o setor empresarial tem um papel decisivo nessa virada de mentalidade. “Se eu pudesse mandar um recado para os empresários, seria: capacitem pessoas com deficiência. Nós somos mão de obra qualificada, determinada e que supera limites diariamente. Se houver oportunidade, vamos mostrar resultados tão bons quanto, ou até melhores do que qualquer outro profissional. Além disso, nós, pessoas com deficiência, queremos apenas espaço, dignidade e oportunidade de mostrar do que somos capazes. O comércio que entender isso não estará apenas cumprindo uma lei, mas abrindo as portas para um mercado mais humano, mais justo e mais lucrativo”, ressalta.
Jornalista Brazil Nunes defende que as pessoas com deficiência querem apenas oportunidades, sem preconceitos e capacitismo (Foto: Arquivo Pessoal)
A trajetória da administradora e atleta Andréia Alves, de 36 anos, também reforça que acessibilidade é questão de cidadania e de oportunidade econômica. Nascida com Atrofia Muscular Espinhal (AME), uma condição genética rara e progressiva, ela faz uso da cadeira de rodas, mas nunca permitiu que a limitação física fosse maior que sua determinação. Andréia encontrou no esporte um novo caminho de transformação: em agosto de 2024, passou a treinar bocha paralímpica e hoje faz parte também da Associação dos Deficientes Físicos do Estado de Goiás (Adfego). “Comecei a praticar bocha movida pelo desejo de superação, mas também para mostrar que o esporte é uma ferramenta poderosa de inclusão social. A prática esportiva me fortalece e, ao mesmo tempo, abre portas para que a sociedade nos enxergue de outra maneira”, afirma.
Assim como no esporte, Andréia acredita que o comércio também pode ser esse agente de mudança. Na avaliação dela e da Adfego, o varejo goiano evoluiu em termos de acessibilidade, mas de forma desigual. Segundo ela, as grandes redes já investem em rampas, banheiros adaptados, treinamento de equipes, entre outros, enquanto pequenos estabelecimentos ainda carecem de estrutura. “Percebemos avanços, mas ainda tímidos. Felizmente, existem empreendedores que, mesmo com poucos recursos, buscam soluções criativas para incluir. Essa vontade é o que nos dá esperança de um futuro mais igualitário”, diz.
A atleta concorda que a inclusão no consumo não é apenas cumprimento de lei, mas um diferencial estratégico para os negócios. “Quando uma pessoa com deficiência consome, ela exerce sua cidadania e fortalece sua autonomia. Isso gera resultados financeiros para o comércio. É um ciclo positivo: ganhamos dignidade e os lojistas ganham clientes fiéis e uma imagem fortalecida e competitiva”, explica.
Entre os principais gargalos que ainda afastam pessoas com deficiência do consumo, Andréia cita a estrutura distante do ideal e o despreparo humano. “Ainda é comum ver profissionais de vendas inseguros, sem saber como se comunicar ou atender clientes com deficiência. Isso gera constrangimento e afasta consumidores”.
No comércio eletrônico, as dificuldades são reais e muitas. Ela lista sites mal adaptados, ausência de legendas em vídeos explicativos e formulários inacessíveis. “Pessoas cegas enfrentam obstáculos digitais, surdos sofrem com a falta de comunicação, cadeirantes esbarram em barreiras arquitetônicas e pessoas com deficiência intelectual precisam de informações mais claras e objetivas. Não existe uma solução única, cada deficiência exige uma atenção específica”, completa.
Para a Adfego, já há setores que se destacam positivamente, como redes de vestuário, supermercados, algumas lojas de eletrodomésticos e bancos. Mas Andréia reforça que ações simples e de baixo custo também podem fazer diferença. “Treinar a equipe para um atendimento humanizado, disponibilizar cardápios acessíveis, organizar melhor os espaços para circulação segura e inserir legendas em vídeos já são passos importantes”. Ela lembra ainda que acessibilidade não se resume a protocolos técnicos, mas passa por uma mudança de mentalidade. “Acessibilidade não é favor, é direito. Quando o lojista entende isso, o atendimento melhora naturalmente”, afirma.
A Adfego tem buscado aproximar esse debate do setor empresarial. A entidade promove campanhas de conscientização, participa de feiras e eventos, realiza treinamentos e estabelece parcerias com empresas para estimular o consumo inclusivo. “Estamos em diálogo constante com entidades empresariais. Nosso papel é mostrar que a acessibilidade fortalece não só os direitos das pessoas com deficiência, mas também os resultados do comércio”, explica Andréia.
Quando questionada sobre o cenário em termos de acessibilidade no varejo para a próxima década, por exemplo, ela se mostra otimista. “Daqui a dez anos, esperamos ver um varejo mais preparado, tanto no digital quanto no físico. Queremos profissionais capacitados, lojas acessíveis e consumidores com deficiência respeitados como parte fundamental da economia”, destaca.
Administradora e atleta Andréia Alves reforça que a inclusão no consumonão é apenas cumprimento de lei, mas um diferencial
estratégico para os negócios (Foto: Arquivo Pessoal)
Existem iniciativas empresariais que conseguiram transformar o desafio da acessibilidade em oportunidade. São empreendedores e redes de varejo que têm dado passos importantes para tornar o consumo mais democrático, investindo em espaços acessíveis e atendimento humanizado. Um dos exemplos vem do Braseiro Burger, que iniciou as atividades em 2019, em Goiânia. A hamburgueria se tornou referência por criar um espaço infantil inclusivo, pensado especialmente para crianças com deficiência.
A ideia, da empreendedora Eliane Pereira Soares — uma das fundadoras e CEO do Braseiro —, surgiu a partir de uma experiência que ela teve com o público infantil, onde aprendeu sobre as necessidades específicas de cada criança em diferentes áreas. Mas, mais do que teoria, ela decidiu colocar a mão na massa: cada detalhe do projeto foi idealizado e executado por Eliane, que usou sua formação em Design Gráfico para transformar um espaço pequeno em um ambiente lúdico, de acolhimento e representatividade.
O espaço conta com painéis sensoriais, brinquedos silenciosos e na altura adequada para crianças cadeirantes, além de acabamento seguro em cada parafuso. Até a escolha dos elementos decorativos foi feita pensando no conforto e no bem-estar de todos. “Aprendi que inclusão não depende do tamanho do espaço, mas da atenção e do amor colocados em cada decisão”, relata.
De acordo com ela, a reação das famílias tem sido emocionante, com pais relatando que se sentem acolhidos e representados, já que nem sempre encontram locais preparados para seus filhos. O fotógrafo Ewerton Moura Rodrigues, pai do Augusto Oliveira Moura, de 8 anos, autista e com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), avalia que a brinquedoteca do Braseiro mudou a experiência da família nas refeições fora de casa. “Hoje damos prioridade a locais que oferecem estrutura inclusiva. No Braseiro, meu filho brinca com segurança, minha bebê de 1 ano e oito meses também se diverte, porque já começou a brincar com o irmão, e nós conseguimos aproveitar o momento com mais tranquilidade para fazer as refeições. Isso é bom para a família e para o negócio, porque o cliente fica mais tempo e consome mais satisfeito”, afirma.
Augusto Oliveira Moura, de 8 anos, pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA):
ele aproveita a brinquedoteca do Braseiro Burger para se divertir com segurança (Foto: Arquivo Pessoal)
A experiência do Braseiro mostra que é possível ir além de servir hambúrgueres; transformando experiências e gerar impacto. A iniciativa foi fortalecida ainda pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae Goiás), parceiro que ajudou a estruturar o negócio. “Foi com esse suporte que recebemos estratégias para crescer e, principalmente, coragem para inovar sem medo. O projeto de inclusão nasceu também desse aprendizado. Quando você busca conhecimento e entende a importância da excelência no atendimento, percebe que o verdadeiro propósito é fazer o cliente se sentir feliz, acolhido e representado. Essa mudança de mentalidade transformou a minha forma de empreender e a história da Braseiro Burger”, defende.
Outro exemplo inspirador é o da rede Flávio’s, tradicional no varejo de calçados e confecções, com 27 lojas físicas distribuídas estrategicamente em shoppings e centros urbanos. A empresa alcançou nota 4,7 (de 5) no Índice de Maturidade de Gestão Inclusiva (IMGI), indicador que mede o nível de compromisso com diversidade e acessibilidade. Segundo a gerente de Recursos Humanos da rede, Edna Mesquita, a Flávio’s tem investido em melhorias contínuas, como corredores mais amplos para circulação de cadeirantes, banheiros adaptados, piso tátil em novas unidades e sinalização adequada nas calçadas. “A escuta ativa é a chave. Muitos avanços nasceram de sugestões de colaboradores e clientes com deficiência. Inclusão não é projeto isolado, é processo permanente”, afirma.
Assim como os empreendedores que mostram na prática que acessibilidade pode ser sinônimo de inovação e pertencimento, instituições de apoio também têm papel fundamental para fortalecer esse movimento. Em Goiás, o Sebrae se destaca nesse cenário ao preparar pessoas com deficiência para empreender e, ao mesmo tempo, sensibilizar empresários sobre o potencial desse mercado.
De acordo com o gerente da Unidade de Soluções do Sebrae Goiás, Victor Costa, a entidade tem se dedicado a preparar pessoas com deficiência para empreender e, ao mesmo tempo, sensibilizar empresários sobre o potencial desse mercado. Um dos exemplos é o curso ‘Empreendedorismo Inclusivo’, pioneiro no Sistema Sebrae no Brasil, direcionado especificamente para pessoas com deficiência visual. “O objetivo é oferecer condições para que essas pessoas desenvolvam competências e transformem ideias em negócios, superando barreiras do mercado e empreendendo com autonomia, confiança e sucesso”, explica. O curso é gratuito, oferecido no formato EAD, e foi desenvolvido com participação direta de pessoas com deficiência visual, garantindo que as adaptações de conteúdo, linguagem e recursos digitais fossem realmente eficazes.
Além de fundamentos de gestão e planejamento de negócios, o curso trabalha aspectos de empoderamento e autoconfiança, trazendo exemplos inspiradores de empreendedores que venceram barreiras e alcançaram sucesso. “É também sobre desmistificar o capacitismo, mostrando que o empreendedorismo é para todos”, ressalta.
Victor reforça ainda que investir em inclusão amplia a base de clientes, gera fidelização e fortalece a imagem das empresas. “Clientes com deficiência têm direito de acesso aos produtos e serviços como qualquer outro, e empresas inclusivas reforçam cidadania e justiça social. Atender esse público não é só questão ética, mas também uma oportunidade de crescimento, porque há demanda não atendida, então adaptar-se pode abrir novos nichos de clientes. Além disso, empresas que demonstram responsabilidade social, compromisso com acessibilidade e diversidade tendem a ganhar a confiança de clientes, parceiros, comunidade, resultando em fidelização, marketing boca a boca e melhor imagem pública”.
O gerente do Sebrae Goiás acrescenta que empresas que adaptam processos, produtos, atendimento digital e físico para todos tendem a inovar mais e essas adaptações, segundo ele, quase sempre beneficiam também outros públicos. “No setor varejista, isso se torna ainda mais crítico: o varejo é sobre experiência do cliente, visibilidade do produto, interação física ou digital, acessibilidade do ponto de venda, embalagem, atendimento on-line etc. Se não estiver bem adaptado, o cliente com deficiência pode ter escolha limitada ou desistir da compra”, enfatiza.
Gerente da Unidade de Soluções do Sebrae Goiás, Victor Costa destaca que empresas que demonstram compromisso com acessibilidade e diversidade tendem a ganhar a confiança de clientes (Foto: Sebrae Goiás)
Mesmo sem dados oficiais consolidados, estima-se que o Brasil tenha mais de 65 mil pessoas com algum tipo de nanismo. No mundo, esse número chega a 3 milhões. Projeções indicam ainda que, a cada 10 mil brasileiros, aproximadamente 3,2 podem apresentar a condição. No caso da acondroplasia – a forma mais comum –, a incidência é de um a cada 25 mil nascimentos. Embora existam mais de 750 tipos de nanismo descritos pela medicina, cerca de 80% das pessoas com a condição têm acondroplasia.
Esses números revelam um público com potencial de consumo, mas que ainda busca validar o que o gerente do Sebrae destacou: “o varejo é sobre experiência do cliente”. Pessoas com nanismo ainda não têm experiências positivas no comércio e quase não são consideradas nas estratégias do setor, especialmente em relação à estrutura. A realidade são lojas físicas com barreiras simples, como balcões altos, prateleiras fora do alcance e provadores sem adaptação, que acabam comprometendo a experiência.
É o que ressalta Gabriel Yamin, de 18 anos, líder do movimento Somos Todos Gigantes e integrante do Instituto Nacional de Nanismo. Ele explica que, no comércio eletrônico, a compra tende a ser mais tranquila, mas nas lojas físicas os obstáculos ainda predominam. “Os balcões e caixas muito altos dificultam a comunicação com o vendedor e reduzem nossa autonomia. Nos provadores, o constrangimento é ainda maior. Pedir ajuda para experimentar uma roupa é muito mais difícil do que solicitar apoio para pegar um produto em uma prateleira”, afirma.
Ele acredita que grandes redes até realizam treinamentos que, mesmo sem abordar especificamente o nanismo, preparam os profissionais para um atendimento mais respeitoso. “O que observo é que, em pequenas redes, sem protocolos de atendimento bem definidos, ficamos ‘à mercê’ da mentalidade do vendedor. Como o nanismo ainda é culturalmente visto de forma jocosa, isso abre brechas para situações desrespeitosas e infantilizadoras no processo de compra”, observa.
Para Gabriel, os ajustes não exigem grandes investimentos: mobiliário adaptado, funcionários de apoio capacitados e sinalização inteligente já fariam diferença. “A gente pensa que acessibilidade é cara, mas não é. Medidas simples, como balcões mais baixos e a presença de um colaborador preparado para auxiliar durante a compra, mudam completamente a experiência. São ações que também beneficiam outros públicos, como idosos ou pessoas com mobilidade reduzida”, reforça.
Gabriel Yamin, de 18 anos, e Maria Thereza, de 41 anos, representantes do movimento Somos Todos Gigantes e do Instituto Nacional de Nanismo (Foto: Michelly Matos)
Essa visão é compartilhada por Maria Thereza Coelho, de 41 anos, conselheira do Instituto Nacional de Nanismo. Ela reconhece que algumas grandes redes já avançaram, mas alerta que as mudanças ainda não se tornaram regra no setor. “Já encontrei boas práticas em lojas de moda, como a Renner, que mantém araras em alturas acessíveis e oferece atendimento especializado. Em supermercados, há caixas exclusivos para pessoas com deficiência, mas muitas vezes eles seguem o mesmo padrão de altura dos demais, o que nos expõe ao constrangimento de ter que ficar na ponta dos pés para sermos atendidos. Inclusão não é uma placa, é adaptação real”, critica.
Maria Thereza cita ainda o exemplo da HPE Automotores, que adaptou postos de trabalho para colaboradores com deficiência, garantindo ergonomia e autonomia. Para ela, o mesmo raciocínio precisa se espalhar pelo varejo. “Não basta oferecer um espaço ‘preferencial’ que não funciona na prática. É preciso entender que pessoas com nanismo são consumidoras reais, com renda, profissão e família. Nosso dinheiro vale tanto quanto o de qualquer cliente. Quando o comércio ignora isso, perde oportunidades e também cria barreiras sociais desnecessárias”, pontua.
Na visão da conselheira do INN, ainda existe um preconceito velado que subestima a capacidade econômica das pessoas com deficiência. “Muitos lojistas acreditam que não temos poder aquisitivo ou profissão, que dependemos exclusivamente de benefícios. Isso não é verdade. Podemos ser médicos, engenheiros, industriários, advogados. Podemos ser o que quisermos. Mas, infelizmente, ainda somos vistos como caricatura, ligados ao humor ou à limitação. Essa barreira cultural é tão nociva quanto a física”, reforça.
A experiência cotidiana confirma essas dificuldades. João Ferreira da Rocha, de 19 anos, estudante de Direito em Goiânia, também tem nanismo e relata que os principais obstáculos no consumo estão ligados à altura dos produtos e mobiliários. “Geralmente preciso pedir ajuda para alcançar o que está fora do meu alcance. Para mim não é um problema, mas muitos sentem vergonha porque nem sempre as pessoas ajudam com respeito. Já vi situações em que atendentes trataram clientes com deboche, chamando-os de ‘anão’ em tom de chacota. Isso fere a dignidade e afasta o consumidor”, comenta.
João destaca que já encontrou exemplos positivos em Goiânia, como o supermercado 3 Amores, no setor Condomínio das Esmeraldas, que fez adaptações após receber a demanda dele como cliente. Para ele, pequenas mudanças criam um ciclo de fidelização. “A loja que se preocupa em me atender é a loja para a qual eu volto e indico para outras pessoas. Quando não há acessibilidade, a tendência é migrar para o comércio on-line, onde não precisamos lidar com o constrangimento”, avalia.
Em comum entre todos, está a defesa de que a acessibilidade é mais do que um direito: é também uma oportunidade de negócios. Gabriel resume em uma frase: “Se investir em acessibilidade, o lojista terá todo tipo de cliente”. Já Maria Thereza reforça o poder multiplicador de uma boa experiência: “Um cliente bem atendido volta, indica, fideliza. É marketing gratuito e genuíno”. João completa lembrando que a inclusão fortalece não apenas a economia, mas também a autoestima e a cidadania: “Com acessibilidade, não precisamos depender dos outros para comprar um simples par de sapatos. Isso nos devolve dignidade”.
João Ferreira, de 19 anos, estudante de Direito em Goiânia, também tem nanismo: ele ministrou palestra sobre Bullyingn (Foto: Arquivo Pessoal)
Pelos depoimentos e histórias compartilhadas até aqui, fica evidente que a acessibilidade precisa ser encarada não apenas como cumprimento de lei, mas como diferencial competitivo e estratégia de crescimento. Para a professora Ana Cláudia Antonio Maranhão Sá, diretora de Acessibilidade da Secretaria de Inclusão da UFG, pensar em acessibilidade no varejo é pensar na jornada completa do cliente — desde o momento em que ele chega ao estabelecimento até o pós-venda.
“Do lado de fora, as adaptações começam com calçadas niveladas, rampas sem degraus, vagas acessíveis em tamanho adequado e entradas livres de obstáculos. Do lado de dentro, é preciso investir em corredores amplos, balcões e prateleiras na altura certa, carrinhos adaptados, banheiros acessíveis, elevadores, sinalização tátil, visual e sonora. Tudo isso aliado a uma iluminação adequada e a uma equipe realmente preparada para acolher diferentes necessidades”, explica.
A especialista lembra que, cada vez mais, o consumo acontece em sites, aplicativos e canais de atendimento on-line — e esses ambientes também precisam ser acessíveis. “As empresas devem seguir as Diretrizes de Acessibilidade para Conteúdos Web, que recomendam práticas como contraste de cores, legendas em vídeos, descrição de imagens, tradução em Libras, possibilidade de navegação por teclado e linguagem simples. Quando isso é feito, toda a sociedade ganha: clientes com deficiência conseguem autonomia, e os demais usuários também usufruem de uma experiência mais clara e eficiente”, detalha.
Segundo Ana Cláudia, já existem bons exemplos que inspiram o setor. Algumas empresas tratam a acessibilidade como parte da identidade da marca, mostrando que inclusão pode ser também estratégia de marketing e fidelização. Mas, para ela, o segredo está em ouvir as próprias pessoas com deficiência. “O lema internacional da inclusão, ‘Nada sobre nós, sem nós’, nunca foi tão atual. É preciso trazer consumidores com deficiência para o centro da discussão, perguntar a eles como gostariam de ser atendidos, quais barreiras enfrentam e como podemos superá-las. Só assim o comércio vai conseguir oferecer experiências verdadeiramente inclusivas”, defende.
Ela ressalta ainda que o consumidor com deficiência não é um nicho pequeno, mas um público com poder de compra significativo, que movimenta bilhões de reais por ano. “As empresas que assumirem a acessibilidade como compromisso coletivo, ‘de todos para todos’, vão conquistar vantagem competitiva. Vão atrair consumidores, investidores e colaboradores, além de reforçar sua imagem como empresas inovadoras, responsáveis e humanas”, reforça.
A especialista deixa um recado direto aos empresários que querem dar o primeiro passo: “comece agora. Contratar pessoas com deficiência, perguntar a elas como gostariam de ser acolhidas, oferecer autonomia e respeito são medidas simples que geram impacto imediato. Não infantilize, não subestime. Dê espaço para que cada pessoa mostre suas capacidades. Crie um ambiente de livre diálogo e respeito às diferenças. Quando as pessoas com deficiência se sentirem verdadeiramente incluídas, elas mesmas vão evidenciar o poder de consumo que têm e as lacunas que ainda existem no comércio”, afirma.
(Arte: Fernando Salazar)
A inclusão das pessoas com deficiência não depende apenas do interesse das empresas em investir em estrutura física ou digital, ou mesmo da sensibilidade da sociedade. Precisa estar amparada por políticas públicas consistentes, que garantam direitos e criem condições para que a acessibilidade deixe de ser exceção e se torne regra. Com esse propósito, o Ministério Público de Goiás (MPGO) desenvolve o Projeto +Inclusão, coordenado pela Área de Direitos Humanos e Políticas Públicas, sob a liderança do promotor André Lobo.
O objetivo central do programa é fomentar a criação e a regularização dos Conselhos Municipais dos Direitos da Pessoa com Deficiência e de seus respectivos Fundos, considerados instrumentos essenciais para assegurar que as políticas públicas voltadas a esse segmento saiam do papel. “Esses espaços constituem um encontro entre o poder público e a sociedade civil, garantindo maior legitimidade às ações e viabilizando soluções compartilhadas”, explica.
Desde sua implantação, o +Inclusão já apresentou resultados concretos em Goiás. Pelo menos três municípios — Faina, São Francisco de Goiás e Jandaia — aprovaram leis que instituem seus Conselhos e Fundos Municipais. Atualmente, o projeto conta com a adesão de 56 municípios por meio das respectivas Promotorias de Justiça e atua em parceria com a União de Vereadores de Goiás (UVG), a Associação Goiana de Municípios (AGM), a Federação Goiana de Municípios (FGM) e diversas instituições que compõem a Rede Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência. Essa rede amplia o alcance da iniciativa, permitindo que mais cidades se preparem para implantar políticas estruturadas.
Coordenador da Área de Direitos Humanos e Políticas Públicas do MPGO, promotor André Lobo reforça que investir em acessibilidade deve ser compreendido como diferencial competitivo (Foto: MPGO)
Embora não atue diretamente com o comércio varejista, o Projeto +Inclusão repercute de maneira indireta no setor privado. Ao estimular o debate e a implementação de políticas públicas, o programa contribui para criar um ambiente de conscientização social que também alcança empresas e gestores. Na avaliação do promotor André Lobo, o varejo pode assumir um papel estratégico na inclusão. “Ao adotar medidas de acessibilidade e inclusão, o setor não apenas cumpre a legislação, mas amplia sua base de clientes e fortalece sua imagem institucional como parceiro da inclusão social”, avalia. Segundo ele, cada empresa que investe em acessibilidade contribui para transformar um direito em oportunidade, tanto social quanto econômica.
O MPGO também tem se empenhado em levar esse debate para diferentes públicos. Por meio de eventos formativos, capacitações e ações de sensibilização, o projeto promove o diálogo entre gestores públicos, sociedade civil e instituições ligadas à causa da deficiência. O foco, segundo Lobo, é reforçar que a inclusão não é apenas um dever legal, mas também uma oportunidade de desenvolvimento coletivo. “O investimento em acessibilidade deve ser compreendido como diferencial competitivo. Ao tornar espaços, produtos e serviços acessíveis, as empresas ampliam o público consumidor e atraem clientes que valorizam práticas inclusivas”, destaca.
Para o futuro, o MPGO pretende ampliar o alcance do Projeto +Inclusão em todo o Estado, consolidando a criação e a regularização dos Conselhos Municipais, fortalecendo parcerias institucionais e promovendo novas capacitações voltadas à formação de gestores e lideranças locais. A meta é transformar a acessibilidade em realidade cotidiana e não apenas em discurso.
O coordenador reforça ainda que a inclusão é mais do que cumprimento de lei. “Investir em acessibilidade significa reconhecer a dignidade e o potencial das pessoas com deficiência como cidadãos, consumidores e profissionais. Quem adota práticas inclusivas contribui para uma sociedade mais justa e, ao mesmo tempo, fortalece seus negócios com inovação, diversidade e responsabilidade social”, finaliza André.
Arte: Fernando Salazar