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92 anos da capital

Goiânia: da terra de muitas águas à urgência de preservação hídrica

77% dos cursos naturais se perderam | 24.10.25 - 08:30 Goiânia: da terra de muitas águas à urgência de preservação hídrica Ribeirão João Leite (foto: governo de goiás/arquivo)
Samuel Straioto

Goiânia - Quando Pedro Ludovico Teixeira escolheu a região de Campinas para fundar a nova capital de Goiás, em 1933, a decisão foi estratégica. O local era rico em água. Rios, ribeirões e córregos desenhavam a paisagem do Cerrado, garantindo o recurso mais essencial para o desenvolvimento da cidade planejada que nascia.
 
Não por acaso, Goiânia vem do tupi-guarani "Goyanna", que significa "terra de muitas águas". Uma definição que fazia todo sentido: a região era pródiga em cursos d'água, com nascentes, córregos e ribeirões que prometiam abastecer a capital do futuro. Mas 92 anos depois, a cidade que nasceu da água enfrenta uma realidade preocupante: em apenas dez anos, os cursos naturais de água em Goiânia deixaram de cobrir 56 hectares de superfície — uma redução de 77%.
 
A riqueza escondida
Muitos goianienses não sabem, mas a cidade possui em seu território 85 cursos d'água catalogados: um rio (Meia Ponte), quatro ribeirões (Anicuns, João Leite, Capivara e Dourados) e 80 córregos. Entre os principais córregos destacam-se o Cascavel, Botafogo, Macambira e Caveirinha.
 
No Ribeirão Anicuns desaguam os principais cursos d'água urbanos de Goiânia, drenando toda a área central da cidade e parte das regiões oeste, sul e leste. Estima-se que 70% da população da capital viva nas áreas dessas sub-bacias. É uma rede hídrica que estrutura a vida da metrópole, muitas vezes de forma invisível aos olhos de quem transita pela cidade todos os dias.
 
A escolha do local para a fundação da capital levou em conta não apenas a topografia favorável e a posição central no estado, mas principalmente a garantia de água para abastecer uma cidade moderna. Os rios e córregos eram a promessa de futuro — abastecimento, irrigação, qualidade de vida, desenvolvimento.
 
O que aconteceu com nossas águas
Os números contam uma história difícil de digerir. Em 2011, a capital tinha 72 hectares de área coberta por água natural. Uma década depois, esse total havia reduzido para apenas 16 hectares. A conta é simples e assustadora: perdemos mais de três quartos da superfície hídrica visível da cidade.
 
Todos os 85 mananciais de Goiânia apresentam algum tipo de degradação, com variados níveis de gravidade. Estima-se que 90% dos cursos d'água da capital estejam em situação de risco, sendo que 79 deles sofrem com a ação humana direta.
 
Os problemas são diversos e se acumulam: ausência de mata ciliar, lançamentos clandestinos de esgoto, despejo irregular de entulho, focos de erosão, assoreamento e ocupação irregular das Zonas de Proteção Ambiental. A canalização de córregos, prática comum no processo de urbanização, também contribuiu para o desaparecimento visual desses cursos d'água.
 
"O córrego Botafogo, por exemplo, vem passando por um forte processo de degradação. E não é um caso isolado", explica o ambientalista Silvio Matos, que acompanha a situação dos mananciais da cidade há anos. Para ele, o problema vai além do que se vê: "A prefeitura precisa ampliar o Plano de Drenagem para além da bacia do Anicuns, considerando o crescimento da cidade e outros mananciais que agora fazem parte da macrozona urbana."
 
Diariamente, são retirados cerca de 500 kg de lixo dos cursos d'água de Goiânia. É o suficiente para comprometer não apenas a continuidade dos cursos hídricos, mas também suas margens e toda a vida que habita esses locais — da flora à fauna.
 
Quando a água some, a cidade sofre
A degradação dos mananciais não é apenas uma questão ambiental distante da realidade cotidiana — ela impacta diretamente a vida de quem mora em Goiânia. Córregos assoreados perdem capacidade de drenagem, contribuindo para alagamentos em períodos de chuva. A poluição compromete a qualidade da água disponível. A perda de mata ciliar intensifica processos erosivos e reduz a biodiversidade urbana.
 
A ocupação irregular de áreas próximas aos cursos d'água e a impermeabilização crescente do solo agravam ainda mais os problemas de drenagem. Muitas famílias vivem hoje em áreas de risco, vulneráveis a enchentes e deslizamentos — um problema que exige soluções a longo prazo, como regularização fundiária e realocação planejada.
 
E há um aspecto ainda mais grave: Goiânia depende desses cursos d'água não apenas para drenagem, mas para abastecimento. A bacia do Rio Meia Ponte, que atravessa a cidade, é fundamental para o fornecimento de água tratada à população. A degradação progressiva desses mananciais põe em risco a segurança hídrica futura da capital.
 
O que está sendo feito
A Agência Municipal do Meio Ambiente (Amma) realiza ações de recuperação de nascentes e limpeza dos cursos d'água. São trabalhos de roçagem, poda, retirada de lixo e entulhos, além de tratamento químico para manter a qualidade da água nas fontes. Em 2018, a Câmara Municipal aprovou a instalação de ecobarreiras na rede hidrográfica para contenção de resíduos sólidos.
 
São iniciativas importantes, mas que ainda enfrentam o peso de décadas de degradação. Enquanto equipes trabalham na limpeza, a ocupação irregular avança, o lançamento clandestino de esgoto continua e a impermeabilização do solo se intensifica com o crescimento urbano.
 
Um futuro que depende da água
Silvio Matos é enfático ao falar sobre o caminho necessário: "É preciso revisar a Carta de Risco e atualizar os locais de Zoneamento Ecológico Econômico. Não podemos continuar permitindo que construções avancem sobre os leitos dos rios e córregos, interferindo no lençol freático."
 
Goiânia completa 92 anos neste 24 de outubro carregando uma contradição difícil de aceitar: nasceu como "terra de muitas águas", mas caminha para se tornar uma cidade que perdeu seus rios. A água que justificou a fundação da capital pode se tornar o problema que limita seu futuro.
 
Recuperar os 77% de superfície hídrica perdida é uma tarefa complexa, que exige não apenas políticas públicas eficientes, mas uma mudança cultural profunda. O ambientalista analisa que é necessário que os goianienses voltem a ver seus rios e córregos não como obstáculos ao crescimento urbano ou como canais de esgoto a céu aberto, mas como patrimônio ambiental essencial.
 
A preservação dos mananciais não é apenas questão de sustentabilidade ou responsabilidade com as próximas gerações — é garantia de que a cidade continuará tendo água para beber, para drenar suas chuvas, para manter suas áreas verdes, para viver. É a diferença entre prosperar ou sucumbir à própria urbanização.
 
Matos avalia que Goiânia precisa honrar seu nome. Não como uma referência histórica do que já foi, mas como compromisso com o que ainda pode ser. Os 92 anos da capital são uma oportunidade para reconhecer que a cidade foi generosa em seus recursos naturais, mas que agora precisa retribuir essa generosidade com cuidado e planejamento.
 
A "terra de muitas águas" pode voltar a fazer jus ao seu nome. Mas isso depende das escolhas que fazemos hoje — cada lixo que não jogamos nos córregos, cada ocupação irregular que impedimos, cada mata ciliar que preservamos. Depende de olharmos para nossos rios não como algo que já perdemos, mas como algo que ainda podemos salvar.
 

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