Samuel Straioto
Goiânia - Goiânia completa 92 anos neste 24 de outubro. Mais do que uma data, a capital celebra um processo contínuo de construção identitária. Diferente de cidades centenárias que carregam tradições consolidadas ao longo de gerações, Goiânia tem sua personalidade moldada diariamente por gente que chega de todos os cantos do Brasil, reunindo sotaques, sabores e jeitos de viver que se misturam ao que já existe.
Entre 2017 e 2022, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), Goiás foi o segundo Estado que mais recebeu migrantes no país, com quase 187 mil novos moradores vindos de outros locais do País. Goiânia concentra boa parte desse fluxo. Mas o que significa, na prática, essa constante chegada de pessoas para uma cidade ainda jovem, que busca definir quem é?
Esse movimento migratório não é novo, mas se intensificou nas últimas décadas. Goiânia nasceu assim: construída por trabalhadores de diversas regiões que vieram erguer uma capital planejada no meio do cerrado. O que era um projeto para 50 mil habitantes se tornou uma metrópole que hoje se consolida como o terceiro maior mercado imobiliário do país, justamente pela força de atração que exerce sobre pessoas em busca de qualidade de vida, oportunidades e um custo de vida mais acessível que outras capitais.
Diferente de São Paulo, que absorve migrantes em sua grandeza impessoal, ou do Rio de Janeiro, com sua identidade carioca bem definida, Goiânia se constrói na horizontalidade. Aqui, mineiros trazem o queijo e o café com quitanda, nordestinos chegam com a carne de sol e a informalidade dos botecos, sul-mato-grossenses mantêm o tereré, paulistas incorporam o empadão goiano. E tudo isso convive, se mistura, se transforma. O resultado é uma cidade que ainda se pergunta "quem somos?", e encontra a resposta justamente nessa pluralidade.
O professor que veio de Campinas e se descobriu goiano
Orestes Antônio Nascimento Reboa Filho, 45 anos, professor e advogado, conheceu Goiânia aos poucos. Desde 2014 vinha da sua Campinas, em São Paulo, para dar aulas de pós-graduação aos finais de semana. Em 2022, quando recebeu a proposta para assumir o curso integralmente, optou por trocar os voos constantes pela mudança definitiva.
"Sempre achei uma cidade muito tranquila. Uma capital com clima interiorano", resume Orestes, que encontrou em Goiânia algo familiar: o jeito de viver do interior paulista, onde nasceu sua família. "A abertura maior das pessoas, um envolvimento maior entre as pessoas, um acolhimento maior, bem diferente de Campinas, que é próxima a São Paulo e acaba sendo uma cidade muito impessoal."
Orestes Antônio Nascimento Reboa Filho
A adaptação foi tão natural que ele não identifica estranhamentos. Pelo contrário, encontrou correspondências. "O costume que eu mantenho é o de frequentar bares, o que na verdade calha muito com Goiânia, porque aqui o pessoal também aprecia", diz, com bom humor.
Na gastronomia, Orestes se encantou. "A culinária tem uma variação muito grande, uma junção de gastronomia sertaneja com um pouco de gastronomia indígena. Achei sensacional", conta. Ele destaca os petiscos dos bares, as "jantinhas", estabelecimentos que não existem em São Paulo e, especialmente, a diversidade de pratos à base de milho.
Hoje, depois de três anos morando definitivamente na cidade, Orestes não tem dúvidas: "Já me sinto puramente goianiense e basicamente goiano, porque Pirinópolis é a minha segunda casa também."
A maranhense que virou metade goianiense
Celiana Medeiros de Morais veio do Maranhão em busca de oportunidades de trabalho. A primeira impressão foi de uma "cidade acolhedora, com pessoas educadas e com boas possibilidades profissionais". Mas a adaptação trouxe seus desafios: a dificuldade inicial com o deslocamento, a insegurança — foi assaltada e furtada mais de uma vez — e até o ritmo das faixas de pedestres.
"Eu não sabia atravessar faixas de pedestres rapidamente", lembra. E há um estranhamento que persiste: "O que observo desde sempre é que os motoristas têm dificuldade em dirigir um carro ou moto. A seta não existe."
Celiana Medeiros de Morais
Mas foi na cozinha que Celiana encontrou seu lugar. Ela mantém as tradições culinárias da família maranhense — vai à feira comprar farinha de puba e feijão branco, prepara pratos que a mãe fazia —, mas incorporou completamente a gastronomia goiana.
"Antes eu não usava açafrão, nem comia quiabo ou abóbora, e hoje adoro", conta. A galinhada virou seu prato preferido. "Simples e deliciosa." Ela também passou a frequentar feiras nos finais de semana, clubes, parques e bares com música ao vivo. "Aprendi a gostar de sertanejo", admite.
Para Celiana, a mistura de culturas é o que faz de Goiânia uma cidade viva. "Muitos migrantes contribuíram para o desenvolvimento econômico, social e cultural da capital. Essa convivência de diferentes costumes enriquece a cidade."
Quando perguntada se ainda se sente maranhense, a resposta vem em forma de síntese: "Acho que sou metade maranhense e metade goianiense. Hoje carrego um pouco dos dois lugares em mim, e isso me faz sentir completa."
A sul-mato-grossense que se tornou mais goianiense que campo-grandense
Natali Roa Assis, corretora de imóveis, chegou há um ano e oito meses de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, acompanhando a transferência do marido. A primeira impressão assustou: "Goiânia é gigante e eu não daria conta de me adaptar à cidade."
O trânsito foi seu maior estranhamento. "A falta de paciência e a bagunça no trânsito", enumera. Mas Natali mantém o hábito mais característico da sua terra: tomar tereré. E, ao mesmo tempo, já fala com sotaque goiano.
Natali Roa Assis
"A forma de conversar, com o sotaque e jeito de falar" foram incorporados naturalmente ao seu dia a dia. Na gastronomia, ela não economiza elogios: "É maravilhosa, do restaurante simples até o mais elaborado a comida é muito boa!" Aprendeu a amar pamonha, embora ainda não tenha se acostumado com o pequi.
O acolhimento que recebeu foi decisivo. "Os goianienses são muito acolhedores, amigos e prestativos, então não tive nenhum problema em relação à adaptação."
Para Natali, a diversidade cultural é o que define Goiânia hoje. "As diferenças culturais formam quem Goiânia é: de tudo um pouco, um pé em Minas, Bahia, Tocantins, diversificando culinária, música e estilo de vida."
E a resposta final surpreende pelo tempo curto de cidade: "Apesar de pouco tempo em Goiânia, eu me sinto mais pertencente a essa terra do que à minha terra natal."
Uma identidade que se constrói todos os dias
Os três relatos têm em comum mais do que a condição de migrantes. Eles revelam uma cidade que não impõe uma identidade pronta, mas que se abre para construí-la coletivamente. Goiânia não pede que o migrante abra mão de suas origens, mas o convida a misturá-las ao que já existe.
É uma identidade que se faz na pamonha que a maranhense aprendeu a amar, no sotaque que a sul-mato-grossense incorporou sem perceber, nos bares que o paulista frequenta sentindo-se em casa. É uma identidade que está no açafrão, no quiabo, na galinhada, mas também na farinha de puba, no tereré, nos costumes que cada um traz e mantém.
Como bem resume Orestes, que veio para ser professor: "A colaboração na formação vem no próprio desenvolvimento do pensar e do raciocínio, ampliando a possibilidade de questionamento da vida justa, legal, boa para as pessoas."
Aos 92 anos, Goiânia continua jovem justamente porque se permite renovar a cada chegada, a cada história que se soma, a cada sotaque que se mistura. Uma capital que, diferente das metrópoles impessoais, mantém o acolhimento interiorano. Uma cidade que não tem medo de ser muitas ao mesmo tempo.
E talvez seja exatamente isso que a define: Goiânia é a cidade que se constrói na generosidade de receber, na coragem de quem chega e na sabedoria de misturar sem perder. É, nas palavras de Celiana, um lugar onde se pode carregar dois lugares dentro de si e, assim, sentir-se completo.