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Projeto família acolhedora: municípios goianos avançam em implantação

MP Goiás auxilia na expansão a 21 cidades | 07.11.25 - 14:47 Projeto família acolhedora: municípios goianos avançam em implantação (Foto: Michelly Matos)
Michelle Rabelo, Catherine Moraes e Kamylla Rodrigues
Especial para o Jornal A Redação 
 
 
“Descobrimos a incrível graça de um amor que só quem entende quem experimenta. E quando eu achei que estávamos doando, percebi que estávamos recebendo. Esse presente que recebemos de cada criança é o que nos fortalece para continuar nosso propósito”
 
 
Marcela*, de 41 anos, é mãe de três meninos de 12, 14 e 20 anos. Há 17 anos, ela e o marido, Paulo*, de 40 anos, decidiram abrir o coração e a casa para se transformarem numa família acolhedora. O projeto é um serviço público que garante acolhimento de forma temporária a crianças e adolescentes que foram afastados de suas famílias por meio de decisões judiciais. Previamente cadastradas, essas famílias são selecionadas, passam por capacitação e assim, as crianças e adolescentes são abrigados até que possam retornar para suas famílias de origem ou sejam encaminhados à adoção. Nessa casa onde o amor transborda, 17 crianças já foram acolhidas e muitas outras ainda serão. 
 
Marcela* é fisioterapeuta e o marido é bancário. Eles são de Minas Gerais (MG) e atualmente moram em Goiânia (GO). Há 16 anos, quando eles ainda tinham apenas um filho e um ano de casados, ela viu, pela TV, uma reportagem sobre o projeto família acolhedora. Não teve dúvidas que queria aceitar esse propósito e conversou com o marido. O primeiro acolhimento foi no interior de Minas. Depois, se mudaram para o interior de São Paulo e na sequência para Brasília (DF). Agora, a família que mora em Goiânia e tem o filho mais velho estudando nos Estados Unidos, se prepara para receber mais uma criança. “Tivemos muitas mudanças e fomos buscando o projeto nas cidades por onde passávamos. O recorde foi Brasília, onde acolhemos 10 crianças”, explica. 
 

Marcela (nome fictício) e a família (Foto: Michelly Matos )
 
Goiás possui hoje 93 unidades de acolhimento institucional e segundo dados atualizados da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Goiás (SEDS), são 791 crianças e adolescentes acolhidos nestes locais. Desde 2023, entretanto, o Estado aprovou a Lei da Família Acolhedora Goiana (Lei Estadual nº 21.809/2023). O programa faz parte do Goiás Social e tem como objetivo organizar o acolhimento temporário de crianças e adolescentes. 
 
Atualmente, três cidades goianas possuem o serviço implantado: Goiânia, Aparecida de Goiânia e Cristalina. Outros quatro municípios, segundo a SEDS, estão em fase de implantação: São Luís de Montes Belos, Rio Verde, Anápolis e Silvânia. Desde o início do programa, cinco crianças já foram acolhidas. As metas para os próximos dois anos são desafiadoras e esse trabalho têm sido feito a muitas mãos.

Segundo o coordenador da Área da Infância e Juventude do Ministério Público de Goiás (MPGO), o promotor Pedro de Mello Florentino, o programa representa um avanço significativo na proteção à infância. “O programa tem a mesma função do abrigo institucional, mas é infinitamente mais protetivo. Ele proporciona à criança a vivência em família, algo essencial para o desenvolvimento emocional e intelectual”, explica.
 
O ambiente na infância e o nível socioeconômico afetam a capacidade cognitiva e o desenvolvimento cerebral durante os primeiros seis anos de vida, independentemente de fatores genéticos, relatam pesquisadores do Instituto Karolinska em um estudo publicado em 2020.  O estudo demonstra a importância do ambiente familiar durante a primeira infância. 
 

Coordenador da Área da Infância e Juventude do Ministério Público de Goiás (MPGO), o promotor Pedro de Mello Florentino (Foto: Divulgação)
 
 
“Essa é a fase mais importante do desenvolvimento cerebral. Uma criança que vive em família tem um desenvolvimento emocional e cognitivo melhor do que aquela que cresce em uma instituição. O ambiente familiar proporciona cuidado individualizado e relações de afeto que nenhuma instituição é capaz de oferecer”, destaca o promotor.
 
Por isso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece prioridade para o acolhimento familiar. O encaminhamento para abrigos só deve ocorrer quando não há famílias acolhedoras disponíveis ou quando o município ainda não implementou o programa. O programa acolhe crianças e adolescentes de 0 a 18 anos incompletos, encaminhados por decisão judicial em razão de situações de violência, negligência ou abandono. As famílias acolhedoras podem definir o perfil que melhor se adapta à sua rotina — idade, gênero e se desejam acolher irmãos, por exemplo.
 
O Artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante que toda criança ou adolescente tem direito de ser criado em sua família de origem ou, excepcionalmente, em família substituta.
 
Trabalho em grupo e missão coletiva
O promotor Pedro de Mello Florentino explica que o Família Acolhedora é uma política pública municipal, e sua implementação depende de uma articulação entre prefeituras, Ministério Público, Poder Judiciário e secretarias estaduais. “O Ministério Público não cria políticas, mas tem a função de fomentar. Nós apresentamos aos prefeitos e secretários as vantagens da política, o passo a passo da implementação e oferecemos apoio técnico. Também realizamos capacitações com servidores, conselheiros tutelares e equipes da assistência social”, afirma.
 
Segundo ele, a implementação do programa é um processo longo, necessário para garantir a segurança dos envolvidos. O município precisa prever orçamento, contratar e qualificar uma equipe técnica e, depois disso, buscar e capacitar famílias interessadas. Só então o Judiciário começa a encaminhar crianças ao programa. 
 
Gerente de Proteção Social Especial de Alta Complexidade da Seds, Lilian Dayane de Oliveira, explica que a execução dos serviços é feita por meio de equipes técnicas capacitadas e profissionais em cada município. Enquanto o MPGO fomenta a participação dos municípios e também auxilia na capacitação, a Seds também orienta, monitora e co-financia a política de assistência social do município. “Nesse sentido, a Seds lançou um edital de credenciamento para que os municípios possam realizar um termo de parceria desde que cumpram alguns requisitos”, completa. 
 
 

Gerente de Proteção Social Especial de Alta Complexidade da Seds, Lilian Dayane de Oliveira (Foto: Divulgação Seds)
 
Lilian explica que para a execução do serviço, se faz necessário instituir uma equipe profissional (coordenador, equipe técnica – assistente social, psicólogo, entre outros), aos quais cabe organizar e realizar todo o serviço, tais como: divulgação; processo de seleção; formação e acompanhamento das famílias acolhedoras. “A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) preconiza que esta equipe seja formada por profissionais capacitados, de modo a ofertar suporte técnico, psicológico e social à criança e/ou adolescente acolhido(a) e à família acolhedora. Todos os municípios que instituírem o serviço devem ter leis municipais que estabeleçam os critérios para que famílias interessadas possam participar de forma voluntária desse serviço”, acrescenta. 
 
As famílias acolhedoras prestam um serviço público remunerado, por isso não se trata de filantropia, mas de uma função social relevante. “Claro que há um componente de voluntarismo, mas é um serviço que exige preparo e comprometimento. Por isso, as famílias passam por capacitação e são acompanhadas por assistentes sociais e psicólogos”, completa o promotor Pedro de Mello Florentino, Coordenador da Área da Infância e Juventude do MPGO.
 
Em maio deste ano, foi criado um Grupo de Trabalho (GT) para planejar estratégias e ações integradas para a implantação e qualificação do serviço em Goiás. O grupo é composto pela Comissão da Criança e Adolescente da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego); Secretaria de Desenvolvimento Social (Seds); Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO); Ministério Público de Goiás (MPGO), por meio da Área da Infância e Juventude do Centro de Apoio Operacional, Tribunal de Contas do Estado de Goiás (TCE-GO) - participa do Comitê Goiano da Primeira Infância, que revisa ações do GT, entre outros. 
 

Juíza Célia Regina Lara (Foto: TJGO)
 
À frente da Coordenadoria da Infância do TJGO, a juíza Célia Regina Lara proferiu a decisão judicial que marcou o início do projeto Família Acolhedora no Poder Judiciário goiano, baseada nos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A magistrada explica que é papel do Poder Judiciário proferir as decisões e promover o acompanhamento por meio de reavaliações do acolhimento obrigatórias a cada 90 dias. Além disso, o Poder Judiciário atua na supervisão do cumprimento da medida e na fiscalização do serviço. 
 
“Muitos órgãos também têm papéis importantes na execução e fiscalização do serviço, por exemplo: Conselho Tutelar que atua em situações de violação de direitos e realiza encaminhamentos; o Ministério Público monitora, incentiva e acompanha a implantação do serviço, além de requerer as medidas protetivas; a Defensoria Pública, por seus defensores, e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelos advogados que atuam para a garantia do devido processo legal, contraditório e ampla defesa; o Poder Judiciário que, por decisões judiciais, determina o afastamento da criança ou adolescente da família natural, concede a guarda provisória e fiscaliza o trabalho do serviço”, finaliza a juíza. 

 
 

Titular da 3ª Defensoria Pública da Infância e Juventude da Capital, o defensor público João Pedro Carvalho (Foto: DPE/GO)
 
Titular da 3ª Defensoria Pública da Infância e Juventude da Capital, o defensor público João Pedro Carvalho afirma que o órgão exerce papel estratégico no âmbito do Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora (SFA), em articulação com o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), o Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO), a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social (SEDS) e os municípios. Ele diz que a atuação é de apoio à implementação -- não apenas de fiscalização ou de intervenção pontual -- mas de promoção, articulação, acompanhamento e garantia de que o modelo funcione como política pública de convivência familiar.
 
“Contribuímos para os fluxos de atuação interinstitucional (assistência social, justiça, promotoria, saúde, educação) de modo que o serviço de família acolhedora não fique isolado e seja parte integrante da rede de garantia de direitos. Também efetuamos o acompanhamento jurídico e técnico das crianças e adolescentes que se encontram em acolhimento familiar, bem como de suas famílias de origem, e ainda das famílias que se dispõem a acolher, para garantir que todos os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) sejam assegurados”, completa. 

Presidente da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/GO, Roberta Muniz Elias, afirma que, por meio de suas subseções, a OAB/GO promove a interlocução entre os profissionais da Rede de Proteção e os gestores municipais, contribuindo para a plena implementação do serviço de acolhimento familiar, em consonância com as diretrizes nacionais de proteção integral.
 

Presidente da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/GO, Roberta Muniz Elias (Foto: arquivo pessoal)
 
“O acolhimento familiar é a expressão mais genuína do direito à convivência familiar e comunitária. Cada criança deve ter a oportunidade de se desenvolver em um ambiente de afeto, respeito e pertencimento. A OAB/GO segue firme no compromisso de fortalecer a Rede de Proteção, estimulando a implementação do Serviço Família Acolhedora em todos os municípios goianos", acrescenta Roberta Muniz.
 
Meta nacional para 2027: 25% das crianças em famílias acolhedoras
O Brasil estabeleceu a meta de que até 2027, pelo menos 25% das crianças e adolescentes afastados do convívio familiar estejam acolhidos em famílias acolhedoras e não em instituições. Dados atualizados do Conselho Nacional de Justiça apontam que esse percentual hoje é de apenas 6,4%. Isso porque de acordo com o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) há 2.291 crianças e adolescentes em famílias acolhedoras ou programa de acolhimento familiar e 33.138 crianças e adolescentes em instituições de acolhimento. 
 

Sede do Conselho Nacional de Justiça (Foto: Rômulo Serpa/Agência CNJ)
 
Goiás, um dos últimos estados a aderir ao programa, pretende avançar para 21 cidades até 2027. “Hoje temos um alto índice de acolhimento institucional justamente pela falta dos serviços municipais, mas queremos avançar muito a partir do próximo ano e o Grupo de Trabalho foi um marco para isso. Temos feito todo um movimento para estimular essa implantação nos municípios. Existe uma recomendação conjunta e o país precisa chegar a 27% em 2027. Estamos muito abaixo, com 6%, e Goiás foi um dos últimos estados a implantar esse serviço que é de alta complexidade. Queremos alcançar 21 polos e precisamos de muita gente envolvida e mobilizada como os prefeitos e secretários, por exemplo. Precisamos cuidar das crianças e adolescentes que sofrem violência ou violação de direitos”, pontua a gerente de Proteção Social Especial de Alta Complexidade da Seds, Lilian Dayane de Oliveira. 
 
Famílias não podem adotar as crianças 
Um dos critérios para a adesão ao programa é que a família acolhedora não pode ter interesse na adoção, nem estar inscrita no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). "Outro aspecto importante é o trabalho realizado pela equipe técnica no fortalecimento de vínculos entre a criança e sua família de origem. Nesse processo, o apoio da família acolhedora é fundamental. No caso de uma família com o desejo de adotar a criança acolhida, dificilmente haveria colaboração para a reintegração familiar, prejudicando o direito da criança de retornar à sua família de origem ou extensa. Todos os membros da família têm que concordar com o acompanhamento técnico, tendo como premissa que esse acolhimento é temporário e excepcional”, explica Lilian Dayane de Oliveira. 
 

(Foto: Michelly Matos)
 
Depois de 17 acolhimentos, Marcela* e Paulo* falam que é muito importante ter muito claro que a adoção não é uma opção. “Precisamos ser honestos com nós mesmos, com nossos filhos e com a criança ou bebê acolhido. Essa criança precisa saber que está em um ambiente seguro e com muito amor, mas que um dia terá seu próprio lugarzinho e jamais deixará de ser amado, mesmo com a partida. É claro que o vínculo é uma coisa necessária e fica para a vida toda. Eu acredito que isso deva existir no acolhimento para que você também possa cuidar da melhor maneira possível”, completa. 
 
Marcela* diz que quando a família ficou sabendo da decisão do casal em acolher, duvidou que eles fossem conseguir deixar as crianças partirem sem o desejo de adotar. “Todos falavam a mesma coisa, que eu não conseguiria deixar essas crianças partirem. Depois que enxergaram a transformação das crianças e começaram a entender o projeto, todos acabaram se envolvendo e se transformaram em uma grande rede de apoio”, diz a fisioterapeuta.
 
Ela conta ainda que algumas vezes as crianças começam a chamá-la de mãe e seu marido de pai, mas que sempre explica quem eles são. “Muitos estão na fase de interação e acabam vendo os meninos nos chamarem de mãe e pai. Tudo bem se isso os deixarem mais seguros, mas sempre explicamos quem somos e eles entendem. São muito espertos”. Na maior parte dos casos, as crianças acolhidas pelo casal retornaram para a família biológica, mas também já houve casos de adoção. Ela também explica que nem sempre pede informações profundas sobre o histórico da criança. “Se você quiser saber mais a fundo, na maior parte das vezes recebe todas as informações, mas em alguns casos eu prefiro que as informações sejam superficiais. Não estamos aqui pra julgar. Cuidar deles é o que mais importa para nós”. 
 
Como lembrança, a família guarda inúmeras fotos com as crianças. Retratos de rotinas compartilhadas e uma sensação de amor palpável. “Temos fotos e sempre lembramos de todos com muito carinho e saudade, mas na certeza de termos dado muito amor para todos eles”, finaliza.
 
Continuidade da rotina
 

Tribunal de Justiça de Goiás (Foto: Letícia Coqueiro/ A Redação)
 
A Coordenadora-Geral da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO), a juíza Célia Regina Lara elenca mais um ponto positivo do programa que é a continuidade da rotina diária (escola, lazer, saúde), o que é mais desafiador em grandes instituições. 
 
Gerente de Proteção Social Especial de Alta Complexidade da Seds, Lilian Dayane de Oliveira explica que o cenário depende das situações que levaram à aplicação da medida protetiva de acolhimento, sendo possível a criança/adolescente permanecer na mesma escola não é necessário a troca de local, no entanto, se o convívio com a família gera risco, a equipe profissional e o judiciário (Vara da Infância e Juventude e MP) providencia a mudança necessária a proteção da criança/adolescente.
 
“Cada caso precisa ser cuidadosamente avaliado e acompanhado. Não existe impeditivo, por exemplo, para uma família acolhedora oferecer o melhor para essa criança/adolescente, no entanto, é necessário avaliar se ele teria condições de acompanhar o nível de uma escola particular, por exemplo. Muitos chegam, infelizmente, com sérios problemas de saúde e defasagem escolar. Todas as estratégias para garantir direitos e acesso a essas crianças e adolescentes são pensadas juntamente com equipe técnica”, completa Lilian. 
 
Marcela* explica que o primeiro caso de acolhimento da família foi de uma adolescente e um irmão de 1 ano. Depois disso, vieram outras idades e optaram por acolher apenas bebês e crianças menores de dois anos que acabaram se encaixando na rotina da família de forma mais fácil. “Como acolhemos mais bebês, no quesito saúde, por exemplo, muitas vezes conseguimos atendimentos em hospitais públicos, mas se notamos urgência, acabamos indo a um hospital particular, por exemplo. O mesmo vale para escolas. Se a vaga na escola estiver demorando, matriculo na particular mesmo”, acrescenta. 
 

(Foto: Michelly Matos)

 
Paulo* explica que a família deixa tudo preparado. “Agora estamos com essa faixa de atendimento mais voltada para recém-nascidos e bebês menores. Como eles requerem mais atenção, quase 24 horas, temos por hábito deixá-los no nosso quarto com um berço. Temos alguns itens também: roupas, banheira, carrinho. Temos um enxoval já preparado para meninos e meninas. Sempre que preparamos um novo acolhimento, formamos novos enxovais, muita coisa vai com os bebês e também ganhamos muitas outras coisas”, completa. 
 
Desafios
Apesar dos bons resultados, a expansão do programa ainda enfrenta desafios. O maior deles, segundo o coordenador da Área da Infância e Juventude do Ministério Público de Goiás (MPGO), o promotor Pedro de Mello Florentino, é cultural. “O Brasil tem uma cultura muito forte de institucionalização. É um grande desafio fazer as pessoas entenderem que o cuidado em família é mais benéfico que o cuidado em instituições. Por melhor que seja o abrigo, ele nunca vai proporcionar o que uma família pode oferecer”, diz.
 

Sede Ministério Público de Goiás (Foto: MPGO)
 
Outro desafio é encontrar famílias dispostas e com o perfil adequado para o acolhimento temporário. “É comum haver confusão com a adoção. A família acolhedora precisa compreender que o acolhimento é provisório. Ela vai exercer um papel de cuidado, afeto e proteção por um tempo determinado, até que a criança possa voltar à família de origem ou ser adotada por outra família”, explica.
 
A juíza Célia Regina Lara ressalta a importância do suporte adequado para as famílias para que o desligamento do serviço se dê de forma mais natural, tranquila e que não cause sofrimento, nem para o acolhido, nem para a família acolhedora. Mesmo com a dor das despedidas, o promotor destaca que o vínculo construído é sempre transformador. “Quando a criança volta para casa ou vai para a adoção, ela leva boas lembranças. Aquela vivência afetiva positiva vai acompanhá-la para o resto da vida. Isso é o que mais nos motiva: garantir não só um futuro melhor, mas um presente melhor para essas crianças”, afirma.
 
Outro grande desafio, segundo Célia, envolve a necessidade de formar e manter equipes técnicas interdisciplinares nos municípios (psicólogos, assistentes sociais) para a seleção, capacitação e acompanhamento contínuo das famílias acolhedoras e de origem. “Digo isso considerando a rotatividade de profissionais e a precariedade dos contratos de trabalho.”
 
Experiências nacionais x adesão em Goiás 
O serviço ainda é recente em Goiás. Em cidades como Campinas (SP), o acolhimento familiar existe desde a década de 1990. Uberlândia (MG) é outro exemplo de sucesso: não há mais nenhuma criança menor de 10 anos em abrigos, todas estão em famílias acolhedoras, segundo o promotor de justiça Pedro de Mello. “As experiências têm sido muito positivas. E quando olhamos para estados como Paraná e São Paulo, que já têm o programa há décadas, vemos que os benefícios são enormes”, avalia o promotor. “É o que esperamos ver acontecer também em Goiás. À medida que a sociedade se familiariza com essa política, mais famílias se interessam e mais crianças têm a chance de crescer em um lar de verdade”, complementa. 
 
“Sem famílias acolhedoras suficientes, o serviço simplesmente não consegue operar de modo adequado-efetivo: ele requer residências, vínculos comunitários, cuidado individualizado, disponibilidade afetiva e tempo para acompanhar cada criança ou adolescente. As Orientações Técnicas apontam que cada família acolhedora deve ser previamente selecionada e preparada, e que o processo de divulgação, seleção e acompanhamento é essencial para qualidade.  Então, famílias que se dispõem a acolher estão colaborando para que o Estado ofereça respostas mais adequadas e humanas às crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade”, acrescenta o titular da 3ª Defensoria Pública da Infância e Juventude da Capital, defensor público João Pedro Carvalho. 
 
O defensor afirma que para a própria família acolhedora essa pode ser uma experiência de grande impacto social. “Acolher é uma forma de exercer solidariedade, responsabilidade social, e permitir que uma criança ou adolescente tenha a possibilidade de uma experiência de vida em família — mesmo que provisória — até que seja resolvida sua situação definitiva (seja retorno à família natural ou extensa, ou adoção). Esse papel fortalece o tecido social, constrói laços comunitários, amplia redes de cuidado e proteção”, finaliza. 
 
Goiânia 
Em Goiânia, o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora foi criado pela Lei nº 10.269 de 2018 e efetivamente inaugurado em junho de 2023, após a lei estadual. Desde que o serviço foi inaugurado, um bebê foi acolhido por uma família habilitada. Essa criança está há 20 meses com a família, o que ultrapassa o limite legal de 18 meses. O caso é uma situação excepcional, como explica a psicóloga e analista em Assuntos Sociais da prefeitura, Geanne Oliveira Rodrigues Dias. “Esse prolongamento do tempo foi determinado pela Vara da Infância e Juventude em nome do melhor interesse da criança. O tempo de acolhimento é variável, sempre de acordo com cada caso. O que importa é garantir que a criança esteja protegida e emocionalmente amparada”. 
 
Segundo Geanne, o bebê vivia em situação de vulnerabilidade. “Depois do acolhimento, ele passou a viver cercado de afeto e segurança. Além dos cuidados básicos, ganhou a oportunidade de conviver na comunidade frequentando parques, mercados e outros espaços do cotidiano, experiências fundamentais para o desenvolvimento emocional”, destaca. 
 

Psicóloga e analista em Assuntos Sociais da prefeitura, Geanne Oliveira Rodrigues Dias (Foto: arquivo pessoal)
 
Para a psicóloga, as diferenças entre o acolhimento em família e o acolhimento institucional são profundas e decisivas para o desenvolvimento infantil. “Estudos mostram que, a cada ano que um bebê ou criança pequena passa em uma instituição, ela perde quatro meses de desenvolvimento saudável. O acolhimento familiar, por outro lado, proporciona à criança um ambiente seguro, consistente e amoroso, com cuidados individualizados e suporte emocional contínuo. Essa convivência dá à criança uma base segura para explorar, aprender e se desenvolver emocionalmente. E o fato de permanecer inserida na comunidade também fortalece suas habilidades sociais”, completa.
 
A expectativa da prefeitura de Goiânia é de que até o fim de 2025 o número de crianças e adolescentes acolhidos chegue a cinco, com a finalização do processo de seleção de novas famílias acolhedoras. Atualmente são 4 famílias habilitadas na capital. “Esperamos que mais famílias se disponham a ser um lugar seguro e de acolhimento para crianças e adolescentes que estão passando por momentos difíceis. Quando o acolhimento é feito com sensibilidade e amor, ele não apenas protege, mas devolve a esperança de viver em um lar e de ser amado novamente”, conclui Geanne. 

Aparecida de Goiânia
Em Aparecida de Goiânia, a proteção à infância ganhou um novo significado. Desde maio de 2024, o município implementa o serviço. A iniciativa faz parte do movimento de descentralização do acolhimento familiar em Goiás, que busca levar a política a cada município, aproximando a proteção das comunidades locais.
 
Desde a implantação, uma criança foi acolhida em Aparecida de Goiânia. Embora o número ainda pareça pequeno, os resultados emocionais e físicos são expressivos. “O acolhimento familiar representa uma chance real de recomeço e de cura emocional. Acolher é devolver à criança o direito de ser amada e de viver o afeto como parte da sua história”, ressalta a secretária de Assistência Social de Aparecida de Goiânia, Mayara Marfim Mendanha.  
 
A secretária conta que a primeira experiência do serviço no município foi marcante. A criança acolhida, um bebê, apresentava rigidez corporal decorrente de situações de violência vividas anteriormente. “Ao ser recebida em um lar repleto de amor, afeto e cuidados, pôde se desenvolver de forma significativa. Os ganhos foram notáveis em vários aspectos: físico, motor, cognitivo e, principalmente, emocional”, relata.
 

Secretária de Assistência Social de Aparecida de Goiânia, Mayara Marfim Mendanha (Foto: arquivo pessoal)
 
Durante o período de 11 meses de acolhimento, a família acolhedora se envolveu de forma profunda, garantindo inclusive o suporte necessário para uma cirurgia corretiva na pálpebra da criança. “Ser família acolhedora é algo grandioso. É abrir o coração e o lar para transformar vidas, oferecendo o que há de mais valioso: o amor”, afirma a secretária.
 
Como todo processo de adaptação, o acolhimento pode trazer desafios. A primeira experiência em Aparecida exigiu da família acolhedora uma reorganização da rotina, mas o resultado foi de sucesso. “Tudo ocorreu dentro do esperado, sem qualquer problema significativo. A família se manteve firme e dedicada até o encerramento do acolhimento. Cada acolhimento é uma história diferente. Quando há dificuldades, a equipe técnica atua imediatamente para dar suporte tanto à família quanto à criança”, ressalta. 
 
Atualmente, o serviço não tem nenhuma criança acolhida, pois o município está na fase de formação e capacitação de novas famílias. A equipe técnica realiza palestras e encontros públicos com o objetivo de ampliar o número de pessoas habilitadas a acolher. “O acolhimento é planejado conforme a realidade de cada um, visando um ambiente seguro, afetivo e capaz de promover o desenvolvimento integral. O mais importante é garantir o direito à convivência familiar e comunitária”, explica Mayara.
 
O serviço é rigorosamente fiscalizado e acompanhado por uma equipe técnica da assistência social, conforme previsto pela Lei nº 12.010/2009 e pelas diretrizes do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). “A equipe realiza visitas periódicas às famílias, avaliando as condições do lar, a convivência e o bem-estar da criança ou do adolescente. Há acompanhamento psicológico e social de ambos, além de registros da evolução e possíveis dificuldades”, detalha a secretária. As famílias acolhedoras também passam por capacitações regulares e contam com suporte técnico constante.
 
Mayara destaca que a diferença entre o acolhimento familiar e o institucional está na proximidade emocional e na atenção individualizada que o ambiente doméstico permite. “Em uma casa, a criança experimenta pequenas coisas que fazem toda a diferença: abrir a geladeira, escolher uma roupa, receber atenção exclusiva. Essas vivências simples fortalecem a autoestima e ajudam a reconstruir a confiança no outro”, explica.
 
Para a secretária, coordenar o programa é mais do que uma atribuição técnica, é um chamado humano. “Estar à frente desse trabalho é uma missão que exige sensibilidade e compromisso. Lidamos com crianças que já tiveram seus direitos violados, e isso demanda de toda a equipe um olhar atento e amoroso. Nosso compromisso é garantir que cada criança seja acolhida com dignidade e novas oportunidades. O Serviço de Família Acolhedora vem justamente para ser essa resposta transformadora, onde o afeto se torna instrumento de cura e reconstrução”, reflete. 
 
Cristalina 
O município de Cristalina oferta serviço regionalizado, ou seja, atende a sua própria demanda e pode atender a dos municípios vizinhos por meio de termo de cooperação desde 2021. Atualmente, dois adolescentes e um bebê estão em famílias acolhedoras. Outras famílias estão em formação para serem habilitadas. 
 
Uma adolescente de 15 anos está há cinco meses no lar de Amanda*, de 45 anos, que é mãe de seis filhos. Desde então, a casa tem sido palco de aprendizados, desafios e muito amor. “Claro que há desafios. A gente precisa se adaptar e ela também. Não é algo que acontece de um dia pro outro, mas está tudo bem. São os desafios da adolescência e isso é normal. Cada um tem suas tarefas em casa, e ela ajuda, participa, faz parte da rotina. É uma menina doce e muito carinhosa”.
 
Amanda* reflete sobre o que essa experiência trouxe para sua própria vida. “A minha visão sobre o mundo é a de que o ser humano tem que ser melhor a cada dia. A gente precisa se unir mais pelo próximo, olhar com mais empatia. Esse projeto me ensinou muito sobre isso. A adaptação exige paciência, diálogo e compreensão de ambos os lados. Mas a recompensa vem em forma de carinho e pertencimento. Esse é um dos desafios mais bonitos que já vivi”, confessa.
 
Para a coordenadora do serviço Família Acolhedora de Cristalina, Jackelinne Kenia Botelho, as mudanças são nítidas, tanto para quem acolhe quanto para quem é acolhido. As adolescentes relatam que, ao entrarem em um lar acolhedor, passaram a enxergar novas possibilidades para o futuro. “Elas dizem que se sentem amadas, seguras e com mais perspectivas. Aprendem sobre valores, princípios e oportunidades que antes não tinham”, conta a coordenadora.
 
O acompanhamento é constante. A equipe técnica, formada por assistentes sociais e psicólogos, realiza visitas semanais, ligações, mensagens e acompanha o desenvolvimento nas escolas e hospitais. O objetivo é oferecer suporte integral tanto às famílias quanto às crianças, garantindo um ambiente estável e seguro.
 

Coordenadora do serviço Família Acolhedora de Cristalina, Jackelinne Kenia Botelho (Foto: arquivo pessoal)
 
A coordenadora reforça a diferença desse atendimento em relação ao acolhimento institucional. “No abrigo, o atendimento é feito por plantões, e a criança não tem uma pessoa de referência. Já no acolhimento familiar, ela cria vínculos, tem estabilidade emocional e se sente pertencente a um lar. Isso é fundamental para o desenvolvimento emocional e cognitivo. Estudos reforçam o que a experiência comprova: crianças e adolescentes acolhidos em famílias apresentam melhor rendimento escolar, comportamento mais equilibrado e maiores chances de construir um futuro saudável”. 
 
A coordenadora fala com emoção sobre o papel que desempenha. “Estar à frente desse serviço me ensina todos os dias a ser uma pessoa melhor. É um exercício de empatia, entrega e amor. Devolver a esperança e transformar histórias é o que me move. Nem sempre as coisas acontecem como gostaríamos, mas tenho tranquilidade em afirmar que minha equipe trabalha com excelência, dedicação e, principalmente, com amor. Estamos unidos por um mesmo objetivo: devolver a essas crianças e adolescentes o direito de sonhar”.
 
Crianças amadas e protegidas
 

Psicóloga Laura Oliveira (Foto: arquivo pessoal)
 
A psicóloga Laura Oliveira explica como a ruptura da relação da criança ou do adolescente com a família biológica afeta diretamente a forma como eles enxergam o mundo e a si mesmos. “A ausência dos cuidadores principais, mesmo quando substituídos por outros afetos, deixa marcas emocionais que precisam ser cuidadosamente acolhidas. Mesmo uma referência ruim ainda é uma referência. Quando ela se perde, a criança sente que perdeu seu lugar no mundo. É uma ferida que precisa ser tratada com muito cuidado e presença”.
 
Nesse contexto, o acolhimento em família acolhedora surge como uma alternativa humanizada e protetiva, capaz de atenuar os efeitos dessa separação, segundo ela. “Estudos mostram que, especialmente até os três anos de idade, a criança não precisa de um grupo grande de interações sociais, mas de uma presença constante e cuidadosa. Ter alguém que olhe por ela de forma individual, que ofereça afeto e estabilidade, faz toda a diferença na reconstrução da confiança e da segurança emocional”, ressalta a psicóloga.
 
Laura ressalta que o acolhimento familiar não elimina o impacto da separação, mas diminui os danos emocionais, oferecendo à criança a possibilidade de vivenciar novamente o cuidado e o amor em um ambiente seguro e afetivo. “Quando a família acolhedora consegue oferecer um suporte individualizado, atento às necessidades daquela criança específica, ela ajuda a reestruturar o sentimento de pertencimento e a capacidade de confiar novamente nos adultos”.
 
No entanto, ela destaca que esse processo precisa ser cuidadosamente planejado e acompanhado pela equipe técnica responsável. O desligamento da criança da família acolhedora, seja para retorno à família de origem ou para adoção, também exige sensibilidade e preparo emocional. “A separação não pode ser abrupta. É fundamental trabalhar o vínculo durante todo o período de acolhimento, conversando com a criança, explicando de forma carinhosa e sincera o que vai acontecer. Ela pode não verbalizar de maneira madura, mas entende muito bem o que vive”.
 

(Foto: Michelly Matos)
 
A psicóloga reforça que o diálogo aberto e constante é uma das chaves para um acolhimento saudável, tanto entre a família e a criança, quanto entre a equipe técnica e os cuidadores. “As famílias precisam ser capacitadas para esse processo. Estamos falando de crianças que já chegam machucadas emocionalmente, em situação de vulnerabilidade. É necessário preparo emocional, empatia e um olhar verdadeiramente acolhedor para lidar com cada história”.
 
Para Laura, cada criança é única e deve ser acolhida de forma personalizada, considerando sua trajetória, idade e necessidades específicas e, por isso, o acolhimento familiar não pode ser algo padronizado. "Ele precisa respeitar o ritmo e o modo de ser de cada criança. A ideia é que, mesmo fora da família de origem, ela continue experimentando o cuidado individualizado que é essencial para o desenvolvimento emocional saudável”.
 
A psicóloga acredita que o sucesso do serviço de Família Acolhedora depende diretamente da preparação das famílias e da qualidade do acompanhamento técnico. Mais do que um abrigo temporário, o acolhimento familiar representa uma ponte de reconstrução emocional, um caminho para que a criança volte a acreditar no afeto e na segurança que um lar pode oferecer. 
 
Como participar do projeto?
 

Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Goiás (SEDS) (Foto: Divulgação)
 
Para se tornar uma família acolhedora é necessário passar por um processo de seleção que envolve entrevistas, visitas domiciliares, entrega de documentos e a realização de um curso de formação. Sendo considerada apta, a família realizará o acolhimento de crianças e/ou adolescentes dentro do perfil definido. 
 
Durante o acolhimento, cada família e criança/ou adolescente acolhido recebem o acompanhamento da equipe técnica do serviço, composta por um psicólogo e um assistente social, que estarão à disposição para atender às demandas necessárias. A equipe técnica também é responsável por conduzir as visitas da criança com sua família de origem, quando houver, e enviar os relatórios necessários à Vara da Infância e Juventude de Goiânia.
 
Para se tornar uma família acolhedora em Goiânia, é preciso:
Residir na cidade há pelo menos 1 ano;
Ter no mínimo 21 anos;
Ter saúde física e mental;
Ter a concordância de todos os membros da família;
Não estar inscrito no Cadastro Nacional de Adoção;
Não ter dependentes químicos na residência;
Não possuir antecedentes criminais.
 
Interessados podem entrar em contato pelo WhatsApp (62) 99205-6826 ou pelo formulário disponível no Instagram @familiaacolhedoragoiania  e no site: https://goias.gov.br/familia-acolhedora/
 
Nomes fictícios foram usados a fim de preservar a identidade da família acolhedora, a pedido dos órgãos envolvidos*
 

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62 9.9850 - 6351