Adriana Marinelli
Salvador - Grande parte das fissuras nas paredes não existe mais, as esquadrias receberam preenchimento para reparar imperfeições e a ferrugem deu espaço a peças ricas em detalhes. Detalhes que desenham uma verdadeira joia da arquitetura soteropolitana: o Palacete Tira-Chapéu. Localizado no encontro da Rua do Tira-Chapéu com a Rua Chile, considerada a primeira via do Brasil, o Palacete é uma das mais importantes e representativas edificações do Centro Histórico de Salvador (BA). Concebido pelo arquiteto italiano Rossi Baptista e inaugurado em 1917 como sede da Associação dos Empregados do Comércio da Bahia (AECB), o prédio de três pavimentos acabou evidenciando ao longo dos anos o desgaste provocado pelo tempo e as marcas do vandalismo. Realidade que começou a mudar em fevereiro de 2021, quando foi iniciado um minucioso trabalho de restauro do local.
(Fotos: reprodução/Instagram @palacetetirachapeu)
Ano da inauguração presente na fachada do Palacete (Foto: palacetetirachapeu.com.br)
É um serviço a várias mãos, conduzido pela Organização Social Elysium Sociedade Cultural, com investimento privado por parte da Elo Serviços S.A., admistradora de cartões de crédito, e com apoio da Lei Rouanet de incentivo à Cultura. Tombado individualmente pelo pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac-BA), entidade estadual de proteção ao patrimônio, ligada ao Governo do Estado, e parte integrante do conjunto urbanístico e arquitetônico do Centro Histórico de Salvador, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1983, o Palacete Tira-Chapéu finalmente volta a apresentar, mesmo que aos poucos, suas características originais, que ficaram escondidas durante anos. “O Palacete deixou de oferecer serviços e foi desocupado em 2012. O espaço ficou desativado por um período de oito anos. Durante todo esse tempo foram registradas ocupações e atos de vandalismo, infelizmente. Várias peças, inclusive, foram furtadas”, lamenta Jéssica Marques, uma das arquitetas responsáveis pela recuperação do espaço.
A convite da Elysium, o jornal A Redação esteve no Palacete para ver de perto o restauro. São cerca de 100 pessoas envolvidas no trabalho, com um grupo de aproximadamente 50 trabalhando diariamente com a mão na massa. A movimentação é intensa. Enquanto alguns fazem a raspagem das esquadrias para posterior restauro da pintura, outros recuperam peças que dimensionam a riqueza do lugar, um verdadeiro símbolo da arquitetura eclética. “Esse ecletismo traz uma mistura de estilos”, destaca Jéssica ao elencar os desafios contidos em um trabalho de restauro. “É o mesmo conceito de uma reforma, mas o trabalho em si é diferente, principalmente pelo fato de você precisar entender a pré-existência. Quando você fala de restauro, muitas vezes você fala até de itens irrecuperáveis. Quando você reforma um prédio de dez anos, por exemplo, você possivelmente ainda encontra no mercado o material usado na construção ou acabamento, seja uma pastilha ou outro detalhe. Aqui [no Palacete Tira-Chapéu], que é caso de restauro de patrimônio, temos a falência de vários itens. Não temos mais quem faça o detalhe do azulejo do hall e outros pontos, por exemplo. Essa é a grande dificuldade. Pra se ter uma ideia, é difícil encontrar até quem trabalhe com esse tipo de arquitetura [eclética]", explica.
Arquiteta Jéssica Marques acompanhou equipe do jornal A Redação em visita técnica (Foto: Renato Conde)
Em alguns casos, em que peças foram furtadas ou são irrecuperáveis, o trabalho no Tira-Chapéu é ainda mais delicado. Balaústres dos balcões do edifício são exemplos. "Diferente da fachada, que estava muito íntegra, onde conseguimos recuperar praticamente tudo, percebemos que faltavam alguns balaústres. Foi aí que tivemos de substituir as peças perdidas. As novas foram feitas a partir de moldes confeccionados por restauradores. São réplicas quase perfeitas, um trabalho muito minucioso mesmo", garante a arquiteta responsável pelo restauro.
Moldes dos Balaústres (Foto: reprodução/Elysium Sociedade Cultural)
Detalhes dos balaústres (Foto: A Redação)
Restauro e descobertas
São três andares de pura riqueza e história. O resultado do detalhado trabalho de restauro já é visto logo na fachada do Palacete, que ganhou nova pintura. As cores foram escolhidas a partir de análise das prospecções estratigráficas realizadas com o acompanhamento do Iphan-BA. Resultado visto também na porta principal de entrada do Tira-Chapéu. Antes vandalizada, a porta imponente já ganhou nova pintura, também definida em acordo com representantes do Iphan.
Antes e depois da porta da entrada principal do Palacete (Fotos: reprodução/ Elysium Sociedade Cultural)
Escada que liga o térreo ao primeiro pavimento (Foto: Elysium Sociedade Cultural)
Ainda no térreo, que por quase um século abrigou salas comerciais que eram alugadas, uma descoberta chamou a atenção da equipe de restauro. "No lado da Rua Chile tinha a Farmácia Chile, que foi por muito tempo a maior e mais famosa da cidade. No início do ano passado, logo que começamos as visitas para começar o trabalho de restauro, eu tropecei na sala onde funcionava a farmácia e vi que tinha algo na parte de baixo do piso. Era um piso vinílico e tinha uma camada grossa de cola, uma cola bem escura. Aí fomos tirando esse material que estava sobreposto e fomos surpreendidos pelo piso original incrível composto por um mosaico de ladrilho hidráulico", relembra Jéssica. As peças do piso citado pela arquiteta são hexagonais, de aproximadamente 3 centímetros. "Nesse caso, como algumas peças da composição estão faltando, já providenciamos os moldes para completar o conjunto", acrescenta.
Antes e depois do piso do Salão Chile do Palacete Tira-Chapéu (Fotos: Elysium/ Renato Conde)
Conforme levantamentos feitos pela equipe da Elysium Sociedade Cultural, no térreo também funcionou o chamado Café das Meninas. "Que era muito famoso, inclusive. As mulheres que frequentavam estavam sempre muito produzidas", comenta Jéssica Marques ao completar que, diferente do térreo, os outros dois pavimentos eram destinados às salas administrativas e de serviços da AECB. "Tinha uma biblioteca incrível e temos informações de que também funcionava uma clínica no pavimento superior", completa. Ainda de acordo com a arquiteta, o trabalho de restauro mais desafiador deve ser, de fato, no térreo, justamente pelo elevado número de intervenções na edificação ao longo dos anos. "Para se ter uma ideia, tem parede que recebeu ao menos sete camadas de pintura", diz. Ainda assim, com os trabalhos em ritmo acelerado, a expectativa é que a primeira fase do projeto de restauro, referente justamente ao pavimento térreo, seja concluída até outubro deste ano. "As demais, se não surgirem outras surpresas e descobertas ao longo do trabalho, podem ser entregues até o final de 2023", projeta.

Vitral que fica na escadaria entre o térreo e o segundo pavimento (Foto: Instagram @palacetetirachapeu)
Detalhes dos pavimentos superiores (Foto: reprodução Elysium Sociedade Cultural)
Mais desafios...
O grupo de trabalho no Palacete Tira-Chapéu conta com uma equipe de arquitetos multidisciplinar. Marcelo Safadi é um dos profissionais que atuam na obra e, de acordo com ele, um dos grandes desafios que compõem a ideia do restauro de prédios históricos é a compatibilização entre o edifício, o restauro e a adaptação para novo uso. "É que o novo uso vai implicar em uma série de soluções técnicas que muitas vezes vão ter que contracenar com a parte da restauração. No caso de um edifício que vai receber ar condicionado, por exemplo, é preciso projetar uma forma para que as tubulações não afetem partes importantes, do ponto de vista histórico e de patrimônio, mas que garantam que a eficácia técnica seja realizada", explica o arquiteto.
Arquiteto Marcelo Safadi (Foto: A Redação)
Para Safadi, a questão envolvendo o novo uso após o término do restauro pode ser vista como um dos grandes desafios institucionais do Brasil quando o assunto é o resgate do patrimônio histórico. "Percebo que o País tem grande dificuldade em restaurar prédios e manter esses prédios ativos. E é por isso que você vê edifícios que são restaurados várias vezes sem nunca ter tido uso, porque nem sempre o uso é considerado de maneira efetiva. Uma das fases desafiadoras do restauro é justamente preparar o prédio para que ele seja utilizado para novos usos", pontua o arquiteto ao enfatizar o compromisso com a longevidade do investimento feito no trabalho de recuperação do espaço.
Juntos pelo Patrimônio
O restauro do Tira-Chapéu é resultado de parceria público-privada. Paulo Marques, diretor da Fera Investimentos, grupo responsável pelo Palacete, vê essa união de esforços como forma de valorizar uma edificação que pode enriquecer ainda mais o Centro Histórico de Salvador. "Eu acho que essa região da cidade é muito correlata a esse tipo de financiamento. Você pega verba pública de incentivo e você destina para restaurar imóveis, visto que essa região do Centro Histórico é considerada o maior parque histórico das Américas, eu não vejo local mais pertinente para esse tipo de verba. Estamos falando de parcerias para restaurar imóveis seculares", enfatiza.
Paulo Marques, diretor da FERA Investimentos (Foto: divulgação)
Para o engenheiro Wolney Unes, diretor da Elysium Sociedade Cultural, a união entre o público e o privado representa o caminho mais pertinente e completo para garantir a preservações de patrimônios, como o caso do Palacete Tira-Chapéu. "É dinheiro privado para cuidar das coisas públicas. É a inversão da lógica atual do Brasil e, na minha opinião, é o caminho", acrescenta. Wolney faz questão de acompanhar de perto os trabalhos de restauro, como mostra no vídeo abaixo, feito durante a visita do jornal
A Redação à obra:
Aliança com importância reconhecida também pelo Iphan. Segundo o superintendente do Iphan-BA, Bruno Tavares, esse é justamente um dos pontos para utilização do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). "É um mecanismo importante no que diz respeito à preservação do patrimônio cultural do País, pois permite que a Sociedade Civil e o Estado Brasileiro atuem juntos no incentivo a projetos de restauração como o do Palacete, ampliando a disponibilidade orçamentária para a realização de recuperação de patrimônios protegidos, por exemplo", cita. "Além disso, projetos aprovados através deste mecanismo devem, obrigatoriamente, apresentar alguma ação de contrapartida social em seu escopo, como a realização de ações formativas culturais em suas atividades, como cursos de formação, programas de visita guiadas, atividades de educação patrimonial, dentre outras", completa.
Superintendente do Iphan-BA, Bruno Tavares (Foto: reprodução/Twitter)
E é justamente esse o projeto para o Tira-Chapéu. Apesar de os trabalhos estarem concentrados na fase de revitalização, o pós-restauro também receberá uma atenção especial dos envolvidos. A ideia é promover a ocupação inteligente do espaço com projetos culturais, principalmente com foco em crianças da região. Também há discussões envolvendo futuras operações gastronômicas para atrair o público de forma democrática para o local. "O Palacete vai ser aberto ao público. Queremos isso. A ideia é que todos possam visitar e contemplar, sempre de forma democrática, o imóvel que estará revitalizado", finaliza o representante da Fera Investimentos ao citar que ações para qualificação profissional de jovens da região também estão no radar.